Sociedade

O velório do meu pai em meio à resistência estudantil no Largo São Francisco

A jornalista Marcia Mendes de Almeida lembra de que maneira o golpe militar tomou os estudantes nos anos 1960

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Estudantes, ao ocupar em junho de 68, a veneranda Faculdade de Direito do Largo de São Francisco queriam um início de reforma universitária e, como lembrou Marcio Valente, criar o pior clima político contra a ditadura e o general Costa e Silva. A ocupação tornou-se afinal um ato de impensável desafio ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e uma provocação especial a dois luminares escribas dos atos institucionais – Gama e Silva e Alfredo Buzaid, ambos ministros da Justiça.

A Faculdade de Direito tinha lá sua coleção de cafajestes. Estava abrigada no CCC, mas não apenas. Era uma escola para homens. Estudantes mulheres e a turma da pesada (pró-luta armada) não eram tantos. Interessantes, criativos e mais barulhentos eram os jovens ébrios, com muitas nuances políticas. Sabiam bem mais o que não queriam. Fizeram da ocupação um complicado ato de bravura.

Cheguei a subir no telhado da escola onde havia um estudante-sentinela, com arma de cano longo, à espreita de um ataque do CCC ou, depois, da Força Pública (atual PM). A reintegração de posse, marcada para sábado, dia 13 de julho, seria feita por esse contingente e o dos bombeiros.Todo o andar térreo e o pátio estavam lambuzados de gasolina para tacar fogo caso a invasão se desse pelas três grandes portas da frente. Por fora elas eram defendidas por tijolos empilhados. Por dentro, havia centenas de carteiras de madeira também obstruindo a entrada. Ao tentar atingir o primeiro andar, um estudante quebrou a perna.

Acontece que meu pai, professor e católico conservador, amigo pessoal de Gama e Silva e de Alfredo Buzaid, morrera. Era querido pelos alunos, inclusive pelo CCC. A praxe era o velório dos professores ser feito no Salão Nobre. Meu pai amava a Faculdade de Direito e amava ensinar. Tratativas entre nós, filhas, e dirigentes como Marco Aurélio Ribeiro (presidente do tradicional XI de Agosto) e Sidnei Agostinho Beneti (do diretório oficial) chegaram ao consenso de que a escola seria aberta para velar meu pai no Salão Nobre.

Para limpar o andar térreo foi um sufoco. Nos outros andares havia pichações e, notei, todos os grandes e pequenos quadros de vultos das ciências jurídicas pátrias estavam de ponta-cabeça.

A imprensa, em meio à ferrenha disputa entre estudantes e o diretor Alfredo Buzaid, só dava vez a ele. Em 8 de julho arrebanhara a adesão da maioria dos professores para assinar um manifesto contra os alunos.

O nome de meu pai, Fernando Henrique Mendes de Almeida, que estava em São José dos Campos onde faleceu, estava incluso. Havia os ausentes na manobra de Alfredo Buzaid: meu tio Canuto Mendes de Almeida, os formidáveis Fabio Konder Comparato, Cesarino Jr., Dalmo Dallari, Alberto da Rocha Barros, Gofredo da Silva Telles Jr., que entendiam os alunos. Destes, quatro iriam velar meu pai, manifestando amizade e coragem.

Alfredo Buzaid ficou furioso com a decisão da família. Conta Sidnei Agostinho Beneti que a imprensa divulgava falsidades sobre orgias dos alunos, nas sacrossantas Arcadas. O diretor apregoava seus pavores: que a faculdade, tomada por subversivos comunistas e guerrilheiros a tudo dispostos, teria seus professores sequestrados. Dizia que queriam matá-lo, pois sabia dos estudantes armados lá dentro e com grande estoque de coquetéis Molotov.

Era verdade: havia no prédio estoques e estudantes armados. Aliás os membros do CCC sempre podiam circular armados e ameaçadores na escola, sem representar perigo nenhum para as instituições. No velório de meu pai, havia pouca afluência e muita tensão. Temia-se a entrada do CCC e seus moleques armados. Eu só fazia chorar. Minha irmã mais velha, Ângela Mendes de Almeida, estava convencida que meu pai não poderia ter assinado manifesto algum em 8 de julho. Cesarino Jr. fez um discurso contra a congregação que me comoveu muito. O que disseram João Miguel, ex-presidente do XI de Agosto, e Marco Aurélio Ribeiro foi algo mais contemporizador.

Outros professores aguardavam o corpo de meu pai, com Alfredo Buzaid, no cemitério da Consolação. Eram os estupefatos com a ocupação. Queriam por meios vários expressar seu apoio à ditadura, seus objetivos e métodos que nós, ingênuos, aprendemos muito lentamente a reconhecer.

A caça às bruxas na faculdade começou sob forma de processo administrativo, sendo eu também chamada como testemunha. Decepcionei os inquisidores; só defendi os estudantes. A congregação acabou por extinguir a ação judicial de indenização contra alunos. Há os que não esqueceram essas jornadas – eu muito menos.

*Marcia Mendes de Almeida, jornalista, era estudante de Ciências Sociais no prédio da USP da rua Maria Antonia no ano de 1968. Seu relato é parte de uma série de artigos para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe militar.

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