Saúde
Zumbido ensurdecedor
Há 40 anos o Brasil perde a batalha contra o Aedes aegypti, mas não por falta de soluções tecnológicas


As vésperas dos festejos de Carnaval, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, decretou situação de emergência na saúde pública, em decorrência do avanço dos casos de dengue. Somente em janeiro deste ano, a capital fluminense teve mais de 11 mil casos confirmados da doença, que resultaram em 362 internações. A explosão no número de pessoas infectadas pelo mosquito Aedes aegypti também obrigou os governadores do Acre, Distrito Federal, Goiás e Minas Gerais a adotar a mesma medida. Com a rede pública sobrecarregada, Brasília e Rio estão montando até hospitais de campanha para atender exclusivamente os pacientes com a moléstia, assim como ocorreu na pandemia da Covid-19. Até a segunda-feira 5, o Ministério da Saúde registrou mais de 345 mil casos prováveis de dengue no País. Foram confirmadas 36 mortes e outros 234 óbitos seguiam sob investigação.
Embora a rápida propagação da doença seja motivo de preocupação, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ainda não reconhece a existência de uma epidemia nacional. Prefere definir o problema como “surtos epidêmicos” concentrados em estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Técnicos da pasta estimam, porém, que o Brasil pode ter 4,2 milhões de infectados até o fim do ano, número muito superior ao de 2023, quando foram contabilizados 1,5 milhão de casos e pouco mais de mil mortes em decorrência da doença, com um índice de letalidade acima da média mundial. Segundo estudos do Global Burden of Disease 2017, publicado em EClinical Medicine, enquanto a taxa de letalidade estimada para o mundo foi de 4 mortes para cada grupo de 10 mil infectados, o Brasil registrou um índice de 6,6 no ano passado.
Pesquisadores descobriram uma bactéria capaz de neutralizar o vetor, mas não tiveram o apoio de Temer e Bolsonaro
Entre as causas apontadas pelo Ministério da Saúde para a explosão de casos de dengue no início deste ano, bem como para o ressurgimento dos sorotipos 3 e 4 da arbovirose, figura o El Niño, que intensificou as ondas de calor e tempestades, e deve continuar fazendo estragos até abril. Todo verão é quente e chuvoso, mas o fenômeno climático permitiu a expansão da doença para regiões de menor incidência, como no Sul do País, que vem enfrentando nos últimos meses grandes enchentes. O Paraná e Santa Catarina estão entre os estados que mais registraram óbitos pela doença, assim como Minas Gerais e o Distrito Federal. Até 5 de fevereiro, sete pessoas morreram no Paraná e cinco em Santa Catarina, em decorrência da moléstia. “O mosquito adaptou-se a áreas geograficamente mais frias”, lamenta o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Ele acrescenta que, nas altas temperaturas, o período reprodutivo do mosquito fica mais curto e ele se reproduz com maior velocidade, facilitando a proliferação da doença.
Segundo o especialista, os ovos do Aedes aegypti na água parada levavam de dez e 14 dias para se transformar no mosquito e, com o aumento da temperatura, o tempo foi reduzido para uma semana. “A gente passou a ter ciclos de vida mais curtos, fazendo com que haja mais mosquitos no ambiente e, com isso, aumente a transmissão da doença.” Não bastasse, o vetor vem se adaptando ao ambiente ao longo dos anos. A reprodução já não se dá apenas em água limpa, como anteriormente, e a proliferação pode ocorrer em todas as épocas do ano, não somente no verão. Antes, a escalada dos casos de dengue começava em dezembro, atingia seu ápice entre março e abril, mas começava a refluir a partir de maio. Além disso, mutações geraram novas cepas do vírus, que tornaram a doença mais grave.
“Em boa parte do Brasil, de julho a novembro, era praticamente zero o número de casos. Isso deixou de acontecer, continuamos tendo um volume de casos razoável ao longo do inverno e da primavera, e já chegamos no verão seguinte com um número considerável de pessoas infectadas. Se a epidemia começa com força, ela atinge níveis elevados e os picos também são mais altos”, explica o médico sanitarista Claudio Maierovitch, pesquisador da Fiocruz em Brasília. “A estação de chuvas passou a ser mais intensa, com alagamentos e inundações. Há muito mais água nas áreas urbanas em momentos agudos, facilitando a multiplicação do mosquito.”
A ministra Nísia Trindade reconhece que a vacinação não terá efeito na atual crise – Imagem: Walterson Rosa/MS
Com a previsão de um número maior de casos de dengue nos próximos meses, uma das questões postas é a capacidade de atendimento do SUS para suprir a crescente demanda. Vai exigir do Ministério da Saúde mais planejamento. “Isso requer um plano de contingência que indique como abrir novas unidades de atendimento e treinamento da equipe técnica. O ideal é atender o paciente precocemente, reconhecer os sinais de alarme para proceder a hidratação endovenosa, capaz de evitar o óbito. É preciso preparar os estados e municípios. Por vezes, a população espera de quatro a seis horas para ser atendida nas superlotadas unidades de saúde. É nessas situações que a doença pode se agravar e provocar mortes”, destaca Croda.
Diante deste novo e desafiador cenário, o Brasil ainda não tem um protocolo para mitigar os impactos da dengue, assim como já aconteceu com outras infecções graves, a exemplo da poliomielite. Desde 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, os investimentos em pesquisa para combater a doença despencaram. Um estudo desenvolvido em Niterói e outros dez municípios mostra ser possível vencer o Aedes aegypti, mas as gestões Temer e Bolsonaro optaram em não ampliar o projeto. Os pesquisadores descobriram que vetores infectados com bactéria Wolbachia não são capazes de transmitir o vírus da dengue. Eles apostam na criação de uma nova geração de mosquitos inofensivos aos seres humanos.
“Inicialmente, isso é feito injetando a bactéria dentro do ovinho com o microscópio. À medida que se consegue ter populações de mosquitos já infectados, eles são levados para os lugares onde o projeto é implantado, de forma que essa nova geração já nasce com a bactéria e sem poder de contaminação. Os resultados observados têm sido bastante positivos. Poderíamos, ao longo desse tempo, ter tido um investimento para desenvolver o projeto em escala maior”, lamenta Maierovitch.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação / Ministério da Saúde
Elaboração: Cláudio Maierovitch / Fiocruz
O uso da bactéria Wolbachia é uma tecnologia implantada em outros países, sobretudo na Austrália. No Brasil, está desenvolvida pela Fiocruz. O governo Lula anunciou investimento de 30 milhões de reais para a ampliação do método, um valor modesto diante da dimensão do problema. Outra técnica eficiente são as armadilhas com larvicidas, que atraem os vetores em fase de reprodução. “O larvicida não mata o mosquito que vai lá colocar ovos, mas mata as larvas. A substância fica impregnada nas patas e no corpo do mosquito e, quando ele visita outros recipientes que existem na região, espalha esse larvicida, de forma que, ao colocar ovos nos lugares onde ele faria isso naturalmente, esses ovos geram larvas que vão morrer.”
Em paralelo às técnicas de combate ao vetor, a vacina contra a dengue é apontada como uma alternativa promissora, embora o resultado só será visível a médio e longo prazo. O governo Lula aposta todas as fichas no imunizante, que começa a ser aplicado ainda neste mês, mas para um público reduzido e específico, as crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos de idade, que apresentam uma alta taxa de hospitalização no País.
Segundo o Ministério da Saúde, a população idosa é ainda mais vulnerável à doença, mas ainda não existe uma vacina autorizada para essa faixa etária. “Com eficácia de 65%, o imunizante disponível só será capaz de produzir um grande impacto, do ponto de vista epidemiológico, se alcançar 95% da população. Menos que isso, é pesquisa de campo”, opina o médico Antônio Bandeira, diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Em 2024, o país pode registrar até 4,2 milhões de casos de dengue
Trindade pretende ampliar a vacinação, mas reconhece que isso não será possível a curto prazo. Nesta primeira etapa, apenas 521 dos mais de 5 mil municípios brasileiros serão contemplados. Pelo menos 757 mil doses da vacina estão no Brasil e outras 600 mil devem chegar ainda este mês. A previsão é de que, até o fim do ano, o Brasil receba outras 5,2 milhões de doses, o suficiente para imunizar 3,2 milhões de pessoas, com duas doses num intervalo de três meses. Para 2025, já foram encomendadas 9 milhões de doses. “Todo o nosso esforço será para ampliar essa oferta, mas não vai ter impacto nesse intervalo inicial de poucos meses”, lamenta a ministra.
O imunizante que será aplicado é do tipo Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda, produto já comercializado pela rede privada desde julho do ano passado a um custo médio de 400 reais cada dose. “A vacina, pela limitação de doses disponíveis para o SUS neste momento pelo fabricante, é uma das estratégias que se somam às demais ações de combate à dengue que já estão em andamento. O Ministério da Saúde adquiriu todo o estoque disponível de vacinas da dengue do laboratório fabricante: 5,2 milhões de doses, que serão entregues entre fevereiro e novembro de 2024. Além dessas, também serão distribuídas 1,32 milhão de doses fornecidas sem custo ao governo federal”, explicou, em nota, o Ministério da Saúde. Na segunda-feira 5, o laboratório Takeda afirmou que vai priorizar o governo brasileiro na venda de vacina, restringindo o imunizante para a rede privada.
Além da Qdenga, a esperança é a vacina que está sendo produzida pelo Instituto Butantan. A previsão é de que 20 mil doses do imunizante nacional estejam disponíveis para o SUS no ano que vem. Diferentemente da vacina japonesa, a nacional será de dose única e deve alcançar os quatro sorotipos da dengue, não apenas o 1 e 2, como a Qdenga. “O Butantan pode contribuir muito para acelerar a imunização em massa no Brasil. A vacina japonesa tem levado a proteção até quatro a seis anos, com 57 meses de acompanhamento, principalmente para as formas graves da doença. Com isso, não vai ser necessário vacinar todos os anos”, observa Croda. “Teremos, portanto, a oportunidade de expandir essa cobertura vacinal no Brasil, sobretudo depois que o Butantan começar a ofertar o seu imunizante.”
Por ora, apenas crianças e adolescentes de 10 a 14 anos serão imunizados. O aquecimento global favorece a proliferação do vetor – Imagem: Prefeitura de Belford Roxo/GOVRJ e Daniel Tavares/Prefeitura do Recife/GOVPE
A vacinação é parte do controle, mas não basta para conter a doença. O médico infectologista Marcos Boulos, professor e pesquisador da USP, chama atenção para os problemas urbanos e sociais que contribuem para a proliferação do Aedes aegypti. “A diminuição da transmissão está diretamente relacionada à redução do mosquito nos imóveis urbanos. Não podemos desprezar também o empobrecimento populacional, que leva um contingente significativo de pessoas a viver em condições impróprias em ‘aglomerados’, facilitando a transmissão”, explica. “A vacina é o nosso instrumento de esperança em relação a um problema de saúde pública que se arrasta há quase 40 anos. Finalmente, temos uma vacina, é algo para celebrar. Mas, no quantitativo que o laboratório tem hoje para nos entregar e diante da necessidade de aplicação de duas doses, numa situação como a que vivemos hoje, não pode ser apontada como solução”, admitiu Nísia Trindade, destacando a necessidade de o Ministério da Saúde atuar de forma mais incisiva nos focos do mosquito e no atendimento às pessoas infectadas.
“Temos de lidar, principalmente, fazendo o controle dos focos e cuidando de quem adoece por dengue. Estas são as medidas. A vacina é um instrumento, mas não é o único e não é o de maior impacto neste momento”, finalizou a ministra. Segundo o Ministério da Saúde, três em cada quatro mosquitos são gerados em poças d’água residenciais. “A maioria dos focos é intradomiciliar, 75% deles estão dentro das casas das pessoas. Quando a gente depende de medidas que passam pela mudança de atitude da população, a eficácia geralmente é de 30% a 40%”, estima Croda.
Maierovitch aponta a ausência de planejamento urbano, o adensamento populacional em determinadas áreas e a falta de investimento em saneamento básico como outros fatores que contribuem para a multiplicação do Aedes aegypti. “Se a população gera mais resíduos que se transformam em criadores de mosquitos, se ela cuida menos do seu espaço, isso favorece a proliferação. Da mesma forma, se o Poder Público deixa de fazer as campanhas para o combate ao vetor com as suas equipes próprias, isso também favorece o avanço da doença”, diz o sanitarista. O Ministério da Saúde informa ter destinado 256 milhões reais para o enfrentamento da doença, entre repasse para estados e municípios e ações da Vigilância em Saúde. A pasta também criou um Centro de Operações de Emergências e a Sala Nacional de Arboviroses, além de investir em campanhas publicitárias para conscientizar a população para o combate aos focos do vetor.
A vacina ainda é uma promessa. Não há doses suficientes para imunizar toda a população
De acordo com Marcos Boulos, as grandes epidemias de dengue acontecem, em média, a cada quatro ou cinco anos, uma vez que as pessoas infectadas adquirem certa imunidade, reduzindo o número de casos nos anos subsequentes. A última foi em 2019, sinalizando a previsibilidade da grande quantidade de contaminação em 2024. “Com o aumento de novos membros na comunidade, o surgimento de novas cepas do vírus e as oscilações no meio ambiente, a epidemia recrudesce com maior intensidade”, observa, acrescentando que, neste ano, além da diminuição da imunidade, houve um aumento na transmissão da dengue tipo 2, o ressurgimento do sorotipo 3 e a presença do El Niño. Na série histórica, o pico da doença começou em 2010 e intensificou-se em 2013, 2015 e 2019.
“O que o Brasil precisa fazer para conter a dengue, ainda mais nesta perspectiva de aumento da temperatura global e das arboviroses, é investir em ciência e tecnologia e vacinar o maior número possível de pessoas. A gente espera que o Butantan possa produzir a vacina, mas eventualmente a própria Fiocruz pode ter um acordo de transferência de tecnologia com a Takeda, para ampliar a capacidade de produção interna no País. Sem as inovações que a gente tem, principalmente o programa da bactéria Wolbachia e a vacina, vai ser muito difícil ter redução do número de casos e da taxa de hospitalização nos próximos anos, porque a mudança climática já impõe esse desafio. Só a ciência e a inovação podem reduzir e reverter esse cenário mais pessimista”, finaliza Julio Croda.
Além dos recentes surtos de dengue, a proliferação do Aedes aegypti pode desencadear também a escalada de casos de zika e chikungunya, já que o vetor de transmissão é o mesmo. Minas Gerais, inclusive, já registrou uma morte por chikungunya. “Não é que uma epidemia leve a outra, mas, se a presença do Aedes aegypti aumenta, também cresce o risco de esse vetor propagar outras doenças”, salienta Maierovitch. “Os sintomas podem, inclusive, ser muito parecidos. É preciso haver uma orientação muito benfeita aos profissionais de saúde e para os laboratórios de saúde pública para que façam a testagem e identifiquem qual das três doenças está circulando.” •
Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Zumbido ensurdecedor’
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