Saúde

‘Só veremos o impacto da vacina na redução do contágio no fim de 2021’

Interromper o ciclo de transmissão depende de vários fatores, alerta Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia

(Fotos: Divulgação/iStock)
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Com indesculpável atraso, o Brasil finalmente deve iniciar a imunização em massa contra a Covid-19 na próxima semana. Com transmissão ao vivo pelo YouTube, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária irá se reunir no próximo domingo 17 para decidir se autoriza o uso emergencial das vacinas produzidas pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan.

Uma vez aprovadas, as primeiras doses serão distribuídas aos estados no prazo de quatro dias após a conclusão da análise da Anvisa, prometeu o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde.

Mais de 50 países estavam imunizando a sua população contra a Covid-19 na manhã da sexta-feira 15, e nenhum deles era o Brasil. De acordo com o site Our World in Data, criado por pesquisadores da Universidade de Oxford, ao menos 35,3 milhões de doses de vacinas foram aplicadas pelo mundo até aquele momento.

O ranking era liderado pelos Estados Unidos (11,15 milhões), China (10 milhões), Reino Unido (3,36 milhões), Israel (2,16 milhões) e Emirados Árabes Unidos (1,53 milhões). Os países da União Europeia usaram ao menos 4,33 milhões de doses.

O Brasil, que ao longo de décadas construiu o maior programa nacional de imunização do mundo, tem expertise em grandes campanhas de vacinação. Mas uma conjunção de fatores pode atrasar o esforço de interromper o ciclo de transmissão do coronavírus, alerta Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia. 

Ao usar uma vacina com baixa taxa de eficácia geral, o País terá de imunizar um percentual muito maior da população para adquirir a chamada imunidade de rebanho, afirma o especialista. Gazzinelli alerta ainda para os riscos relacionados à dependência de insumos farmacêuticos importados.

Confira, a seguir, a entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: A Coronavac apresentou uma eficácia geral aquém do esperado, de 50,4%. O que isso significa?

Ricardo Gazzinelli: Normalmente, uma vacina é aprovada com ao menos 70% de eficácia geral. Por conta da urgência da pandemia, a Organização Mundial da Saúde baixou a exigência para 50%. A Coronavac está, portanto, muito próxima desse limiar. É preocupante, especialmente porque o imunizante foi avaliado em um prazo muito curto, pouco mais de quatro meses. As pesquisas devem prosseguir, até porque não sabemos por quanto tempo dura a proteção.

CC: Na semana anterior, o governo paulista disse que a vacina garantia uma proteção de 100% em relação aos casos graves e de 78%, nos casos leves e moderados.

RG: Isso é ótimo. Se a Coronavac é capaz de evitar os óbitos e as hospitalizações, isso já justifica o uso da vacina. No entanto, precisamos ver esses dados certa cautela. O número de casos observados nos ensaios clínicos foi muito pequeno, está no limite da significância estatística. Além disso, ela protege o indivíduo imunizado contra a doença, mas talvez não tenha impacto significativo na transmissão.

CC: A OMS diz que de 60% a 70% da população precisa ser vacinada para se adquirir a imunidade de rebanho.

RG: Isso fica bem mais difícil de ser alcançado quando falamos de uma vacina com apenas 50% de eficácia geral. Temos que pensar na Coronavac como algo capaz de proteger o indivíduo contra os casos graves da doença, mas não exatamente para garantir a interrupção do contágio.

CC: O senhor acredita que a Anvisa pode sofrer interferência política e atrasar a liberação da Coronavac?

RG: O atraso no registro da Coronavac não ocorreu por causa da Anvisa, e sim do Instituto Butantan. O governador paulista prometeu apresentar os resultados sobre a eficácia da Coronavac no início de dezembro, e adiou várias vezes o anúncio. Quando o fez, apresentou dados incompletos. Os apoiadores mais radicais de Bolsonaro não querem nem saber se o imunizante funciona ou não, mas tem muita gente que não é contra vacinas, mas ficou com a pulga atrás da orelha após tantas idas e vindas. Se Doria fosse mais cauteloso, apresentasse os resultados somente quando estivesse tudo certo, o povo não ficaria tão desconfiado.

CC: Mais de 50 países iniciaram a vacinação contra a Covid, e o Brasil não é um deles. Por que tanta demora?

RG: Houve um atraso na submissão dos estudos para a Anvisa. O Butantan e a Fiocruz só entregaram o pedido de uso emergencial de suas vacinas na última sexta-feira (8 de janeiro). Os testes clínicos demoraram um pouco mais do que o previsto pelos laboratórios. O Brasil tem capacidade de vacinar boa parte da população em curto espaço de tempo, estamos habituados a fazer grandes campanhas de imunização. Por outro lado, dependemos de laboratórios estrangeiros para ter acesso ao princípio ativo das vacinas.

CC: Essa dependência representa que risco?

RG: Os princípios ativos são importados. Os laboratórios brasileiros apenas fazem a formulação final e o envase. Se daqui um mês os fornecedores estiverem sobrecarregados com a demanda de outros países, o Brasil terá dificuldade de manter a produção no ritmo esperado. Hoje, o Butantan tem à disposição o equivalente a 6 milhões de doses e a Fiocruz está importando 2 milhões de doses da Índia. É o suficiente para imunizar apenas 4 milhões de brasileiros, se levarmos em conta que cada um precisará receber duas aplicações. Só na área da saúde, temos cerca de 5 milhões de profissionais, que devem ser vacinados prioritariamente. 

CC: A Fiocruz se comprometeu a produzir 100 milhões de doses até julho. E o acordo do Ministério da Saúde com o Butantan prevê a oferta de 46 milhões de doses até abril.

RG: Se a meta for cumprida, entraremos no segundo semestre em uma situação mais confortável. Mas repito: isso dependerá da disponibilidade dos princípios ativos e dos insumos necessários à produção das vacinas.

CC: Não seria o caso de fechar parcerias com outros laboratórios, para reduzir um pouco essa dependência?

RG: O governo diz negociar com outros laboratórios. No caso de uma vacina de alta eficácia, como a produzida pela Pfizer (95%), o ideal seria direcioná-la para os grupos de risco. O problema é que esse imunizante precisa ser armazenado em câmaras de refrigeração, a uma temperatura de menos 70 graus Celsius. Ou seja, só poderia ser usado em grandes centros urbanos, que dispõem dessa estrutura.

CC: O senhor teme a falta de agulhas e seringas?

RG: Não podemos descartar essa possibilidade, pois a demanda é enorme. Precisaremos de ao menos 300 milhões de agulhas e seringas para aplicar duas doses na população adulta. O cenário é um pouco distinto do que estamos habituados. Para proteger a população contra o vírus influenza, da gripe, basta aplicar 80 milhões de doses por ano. Estamos falando de quase quatro vezes esse total. 

Foto: Divulgação/Governo de São Paulo

CC: O Ministério da Saúde não demorou demais para comprar esses insumos? 

RG: De fato, houve certa desorganização da parte deles. Da mesma forma, o governo tem sido cobrado por limitar-se ao acordo com a AstraZeneca, em vez de correr atrás de outros laboratórios ao longo do ano passado. O Brasil pecou por não se antecipar a problemas bastante previsíveis.

CC: Mesmo com o início da vacinação, imagino que não poderemos abrir mão das medidas de prevenção por um bom tempo, ou estou enganado?

RG: Sem dúvida. A imunidade de rebanho só vai acontecer quando vacinarmos a maior parte da população, ainda mais quando temos à disposição uma vacina com apenas 50% de eficácia. Acho pouco provável que isso ocorra no primeiro semestre. Em um cenário mais realista, eu diria que só veremos o impacto dos imunizantes na redução do contágio e das hospitalizações no fim de 2021, começo de 2022. 

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