Política
Transição interrompida
O preço da testosterona, em falta no SUS, dispara nas farmácias e impede pessoas transgênero de dar sequência à terapia hormonal


É um pesadelo. A sensação é de perder tudo o que conquistei, como se fosse acordar e ser uma mulher cisgênero de novo.” Assim Oliver Olívia descreve a angústia de estar há três meses com a terapia hormonal atrasada, devido à falta de testosterona na rede pública de saúde e o preço proibitivo do medicamento comercializado nas farmácias. Por volta de 10 horas da manhã, o professor e diretor de teatro saía de unidade básica de saúde do Centro da capital paulista frustrado, porque a atendente informou que o hormônio estava em falta, e não sabia precisar uma data para o retorno.
Com o atraso na terapia, Oliver começou a sentir mudanças indesejadas no corpo. “Antes, a menstruação não era algo que incomodava. Agora, está muito bagunçada, não é mais como era antes da transição. Minha voz começou a mudar também e tudo isso afeta minha saúde mental. Passei a ter pesadelos, como se meu corpo estivesse mudando, tipo aqueles filmes de body horror, sabe?” Ao conversar com amigos, ele descobriu não ser o único a enfrentar o problema. “O preço disparou na farmácia e todo mundo que fez a transição não encontra mais o hormônio pelo SUS. Tudo começou a desandar no fim do governo Bolsonaro.”
Oliver Olívia conta que fez a transição pelo SUS por se sentir mais amparado dessa forma. “Identifico-me como uma pessoa trans não binária, e fiquei com medo de tomar testosterona sozinho. Na rede pública, o atendimento é humanizado, nunca senti que estava fazendo algo anormal. Desde o primeiro momento fui bem atendido e tive acompanhamento criterioso para chegar ao resultado que queria, com doses menores do remédio. No sistema particular, os médicos parecem transfóbicos.”
Desde 2008, o SUS disponibiliza o processo em unidades básicas de saúde em todo o País. A população tem acesso a diversos procedimentos, como terapia hormonal, cirurgias de modificação corporal e genital, além de acompanhamento multiprofissional. Esse cuidado é estruturado tanto na atenção básica quanto na especializada. A primeira refere-se à rede responsável pelo contato inicial com o sistema de saúde. Já a segunda é dividida em duas modalidades: a ambulatorial, no que diz respeito ao acompanhamento psicoterápico e à hormonioterapia; e a hospitalar, para realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório. Para ter acesso aos serviços de atenção básica é necessário ter, no mínimo, 18 anos. Para a especializada, a idade sobe para 21 anos.
O problema é que, desde o fim do ano passado, os serviços estão desfalcados. Na unidade básica onde Oliver Olívia buscou atendimento, uma das mais procuradas da cidade de São Paulo para tais procedimentos, os atendentes não souberam informar quando as coisas voltarão ao normal. Se o remédio falta na rede pública, o movimento imediato de quem está em transição é procurá-lo nas farmácias. Aí surge outro problema: o preço. Até setembro de 2022, uma caixa de cipionato de testosterona, conhecido pelo nome comercial de Deposteron, custava, em média, 50 reais. Uma liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região permitiu a fábrica do medicamento, a Farmacêutica EMS, aumentar em 380% o valor de comércio do Deposteron, e hoje a mesma caixa chega a custar até 250 reais.
A comunidade LGBTQIA+ cobra uma intervenção do governo Lula, após o custo da droga quintuplicar
A empresa alega que o medicamento estava com valor defasado desde 1992, quando obteve o registro sanitário para fabricá-lo. “Permitir esse aumento abusivo soa como descaso, pois é óbvio que muita gente não terá condições de dar sequência à terapia hormonal, e isso significa um adoecimento físico e mental. Físico, porque o resultado de anos de esforço começa a regredir. E mental, porque afeta diretamente a nossa saúde como um todo, é um retrocesso que pode levar muito tempo para ser revertido”, explica Theodoro Rodrigues, membro do Conselho Nacional de Saúde e diretor regional da União Nacional LGBT.
A deputada federal Duda Salabert, primeira mulher transgênero a ser eleita vereadora em Belo Horizonte e, agora, uma das duas parlamentares trans da Câmara Federal, ao lado de Érika Hilton, garante que essa liminar pode cair com enfrentamento institucional, mas que só isso não basta. “Falta um diálogo substancial com o Ministério da Saúde para mostrar que essas medicações são fundamentais, não só por questões de saúde, mas para a construção da dignidade da pessoa trans.”
Salabert explica que a terapia hormonal não está relacionada apenas “a algo meramente estético”, e sim à promoção da saúde integral da população trans. A fim de resolver o problema do preço da testosterona, a deputada solicitou uma reunião com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, para buscar a derrubada da liminar. “Nesse encontro, pretendo também abordar a ampliação das políticas públicas disponíveis nos postos de saúde.”
Para a parlamentar, o governo Bolsonaro é o principal responsável por esses retrocessos. “As questões ligadas à saúde da população trans foram deixadas de lado e até criminalizadas. Com a vitória de Lula, tenho certeza que haverá espaço para a construção de novas políticas públicas que deem conta de abarcar a saúde da população trans de maneira integral.”
A violência contra a população transgênero não está apenas nas questões ligadas à saúde. Mais uma vez, pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. As mulheres transgênero são as principais vítimas. É o que mostra o relatório de 2023 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, conhecida pela sigla Antra.
Para combater a violência transfóbica, Salabert disputa uma vaga na Comissão de Segurança Pública no Congresso, onde pretende propor a construção de políticas públicas voltadas à proteção de pessoas transexuais e da população LGBTQIA+ em geral. “Quando fui vereadora em Belo Horizonte, criamos o programa Cintura Fina, com o objetivo de zerar o assassinato de pessoas LGBT em dez anos e de formar a Guarda Municipal para atender melhor esse grupo. Meu objetivo é replicar essas políticas em nível federal e, assim, retirar o Brasil desse ranking vergonhoso.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Transição interrompida”
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