Saúde

Submissão do governo à indústria de ultraprocessados ameaça os brasileiros, alerta estudo da USP

No Brasil, cerca de 20% das calorias ingeridas vêm de ultraprocessados. A indústria vê potencial para chegar a 60%, como nos EU

Não consegue resistir à cena? Cuidado, você corre o risco de desenvolver câncer, disfunções renais e várias outras doenças. (FOTO: iStockphoto)
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Macarrão instantâneo,­ ­nuggets de frango, pizza congelada, hambúrguer, salsicha, salgadinho de pacote, refrigerante, refresco. É grande a lista dos alimentos ultraprocessados que se impõem como itens sempre presentes na dieta de milhões de brasileiros, sobretudo aqueles com baixa renda e moradores das favelas e periferias das grandes cidades. O prejuízo à saúde humana causado por tais alimentos tem sido comprovado por centenas de estudos científicos realizados mundo afora, mas, no Brasil, a indústria de ultraprocessados não para de crescer e seus representantes exercem influência cada vez maior nos governos, em nível federal e estadual.

O Brasil ainda não é um paraíso para a indústria de ultraprocessados, mas é um de seus principais alvos. Nos EUA e na Inglaterra, 60% das calorias ingeridas pela população vêm desses produtos. Por aqui, o porcentual gira em torno de 20%. Mas é justamente o potencial de crescimento do mercado brasileiro que torna o País vulnerável.

Em setembro, a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU discutirá os malefícios trazidos pelos alimentos ultraprocessados. Uma conferência preparatória ao evento está marcada para julho e as posições pró-indústria do governo de Jair Bolsonaro chamam atenção por baterem de frente com as evidências científicas, a exemplo do que ocorre com a pandemia de Covid-19.

“Há outros países que têm o mesmo perfil de baixo consumo de ultraprocessados, como, por exemplo, o Uruguai. Só que o Uruguai tem 3,4 milhões de habitantes e o Brasil, 220 milhões. Se chegarmos a um patamar de 60%, serão mais de 130 milhões de consumidores. O Brasil é um gigante a ser conquistado”, afirma a professora Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo de Dilma Rousseff.

Campello é uma das organizadoras do estudo elaborado na USP, pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde e pela Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, sobre o impacto dos alimentos ultraprocessados na saúde humana. Fruto do trabalho de 23 pesquisadores e da contribuição de 80 especialistas das áreas de epidemiologia, nutrição, saúde e meio ambiente que participaram de um evento online realizado em maio, o documento aponta para a necessidade de redução imediata da produção e do consumo de ultraprocessados.

“Na última década, pesquisas conduzidas em vários países demonstraram claramente que o consumo de produtos ultraprocessados é, hoje, o principal fator de deterioração da qualidade da alimentação. Ao mesmo tempo, um conjunto robusto de trabalhos científicos deixa claro que o aumento do consumo de ultraprocessados é uma das principais causas da atual pandemia de obesidade e diabetes e de várias doenças crônicas relacionadas a essas duas condições”, diz o documento da USP, a mencionar mais de 400 estudos relacionados ao tema. Os cientistas explicam que os ultraprocessados têm maior densidade energética, mais açúcar, gorduras saturadas e trans, além de menor ­teor de fibras dietéticas, proteínas, micronutrientes e compostos bioativos. Em geral, esses produtos têm também perigosas técnicas de produção, “que retiram a água dos alimentos, afetando os sistemas controladores de saciedade no organismo”.

Os estudos confirmam que o consumo de ultraprocessados provoca ganho de peso e aumento da adiposidade, diabetes, hipertensão e outras doenças cardiovasculares, depressão, cânceres em geral (em particular o de mama), asma e disfunções renais. A dieta com alimentos ultraprocessados também reduz a expectativa de vida: “Seus efeitos atingem todas as faixas etárias, da obesidade infantil à fragilidade em idosos, e impactam a saúde a curto, médio e longo prazo”, diz o documento. “As consequências são agravadas na atual situação de pandemia, com a fragilização do estado nutricional da população, normalmente impactado pelo aumento da fome”.

Muitos não têm acesso a alimentos saudáveis, lamenta Tereza Campello. (Foto: Isadora Pamplona)

Estudo do Datafolha encomendado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor mostra que os brasileiros de 45 a 55 anos estão consumindo mais alimentos ultraprocessados durante a pandemia. O consumo nessa faixa etária, que era de 9% em outubro de 2019, saltou para 16% em junho deste ano. “O levantamento abordou pessoas entre 18 e 55 anos pertencentes a todas as classes econômicas e de todas as regiões do Brasil, e revela que salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados foram os produtos campeões de consumo em comparação com o levantamento realizado em 2019, subindo de 30% para 35%”, conta Janine Coutinho, coordenadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec.

Além do potencial do mercado brasileiro, a indústria de ultraprocessados enxerga uma “janela de oportunidade” com Bolsonaro no poder. “Eles sabem que o governo não está preocupado com a saúde, com o meio ambiente”, diz Campello, a apontar uma estreita colaboração da atual­ gestão com a indústria e o setor varejista: “Quando Paulo Guedes chocou todo o mundo, falando que iria distribuir restos de alimentos para a população, ele estava em uma reunião com supermercadistas. Hoje, os grandes varejistas e a indústria de ultraprocessados são uma coisa só”.

Para uma alimentação mais saudável, os cientistas apontam a necessidade de intervenções estruturais. Isso passa pela adoção de políticas públicas para a rotulagem dos alimentos, a criação de medidas regulatórias para o setor de ultraprocessados e a divulgação de guias alimentares para orientar a população. O estudo da USP sugere a rotulagem frontal nas embalagens, com a adoção do Perfil Nutricional da Organização Pan-Americana de Saúde, como “a abordagem mais eficaz para desencorajar a aquisição de produtos ultraprocessados”. Esse padrão é adotado em países como México, Chile, Uruguai e Peru, e, segundo pesquisas, é o que apresenta melhor entendimento por parte do consumidor, por informar de maneira clara, simples e visível sobre o alto conteúdo de componentes associados a problemas de saúde, como sódio, açúcares e gorduras.

O Brasil foi uma referência internacional nesse debate, sobretudo após a publicação, em 2014, da segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira e do posterior Guia Alimentar para Crianças Menores de 2 Anos. A maioria dos guias difundidos mundialmente ainda adota como critério principal os nutrientes ou os grupos de alimentos. Mas, desde o lançamento do guia produzido pelo Ministério da Saúde do Brasil, outros países passaram a adotar como critério também o nível de processamento dos alimentos. Estão nesse grupo França, Canadá, ­Israel, Uruguai, Peru e Equador, entre outros. Em 2018, foi criada a primeira rede internacional de guias alimentares sobre produtos ultraprocessados. Tanto prestígio não impediu que Bolsonaro anunciasse, no ano passado, o desejo de eliminar o documento. Em uma reunião de preparação para a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, realizada pelo governo em maio, havia apenas representantes do agronegócio e das redes de supermercados, além de alguns estudiosos, pagos pela indústria, que defendem os ultraprocessados.

Para Campello, o Brasil precisa estabelecer um “patamar de resistência” para impedir o crescimento do consumo de ultraprocessados: “Ao contrário de outros países, temos tradição de políticas públicas voltadas à alimentação saudável, como é o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar e também do Guia Alimentar da População Brasileira. Outra questão é que o Brasil tem uma agricultura familiar muito forte, que produz comida de verdade”, diz. Na avaliação da ex-ministra, a população brasileira gosta de se alimentar de forma saudável, mas muitas vezes não tem dinheiro suficiente ou não tem acesso aos alimentos orgânicos: “Em muitas favelas e bairros da periferia não há feiras de produtos, mas há sempre aquela loja cheia de ultraprocessados. No entanto, se a população tiver dinheiro e oferta, vai preferir comer arroz, um feijãozinho e uma carne moída com quiabo do que macarrão instantâneo com salsicha”.

Publicado na edição nº 1163 de CartaCapital, em 29 de junho de 2021.

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