

Opinião
Saúde paralela
O Projeto Zoé, que leva cuidados profissionais para as populações ribeirinhas da Floresta Amazônica, inclui até um barco-hospital


Não é segredo que existem, em nosso país, vários Brasis. Há desde grandes centros urbanos, com infraestrutura razoavelmente adequada – apesar das disparidades – até pequenas aldeias dispersas no interior de cada estado, e com infraestruturas precárias. Na área da saúde, essa desigualdade é óbvia. Passam os anos, e continuamos sem estratégia governamental sólida para oferecer cobertura de saúde básica a toda a população, independentemente de sua localização geográfica.
Na falta de estratégias oficiais, existem projetos de saúde “paralela”, criados e levados a cabo por grupos de voluntários, médicos e paramédicos, que tentam, com grandes sacrifícios, levar uma medicina decente a lugares esquecidos pelos governos regionais e federais. Um desses projetos brilhantes está sendo executado na Região Amazônica: o Projeto Zoé. Tive o privilégio de conhecer essa iniciativa muito oportuna e conversar com o doutor Marcelo Averbach, cirurgião-geral em São Paulo e fundador da ONG Zoé, e Plínio Averbach, diretor-executivo desta ONG.
CC: Por que o projeto naquela região?
MA: A Zoé leva saúde para as populações ribeirinhas da Floresta Amazônica, uma região na qual a distância média de qualquer lugar para um serviço de urgência é de 15 quilômetros. Como este é um grande território, escolhemos o Pará, que não só é o estado onde a expectativa de vida menos cresceu nos últimos anos como também tem a menor proporção de médicos a cada mil habitantes, que é de 1,07.
CC: Como vocês escolheram este centro para iniciar as atividades da Zoé?
MA: Nós tínhamos experiência na região. Havíamos realizado, em Belterra, um trabalho de rastreamento do câncer colorretal. Foram 19 expedições entre 2014 e 2017, nas quais fizemos colonoscopias e endoscopias digestivas altas.
CC: Qual é a frequência do projeto?
PA: Em 2021, fizemos duas expedições e, este ano, planejamos fazer ao menos dez. Isso, obviamente, não depende só de nós. Precisamos de doadores para viabilizá-las.
CC: O projeto baseia-se em voluntários. Como vocês cobrem as demais despesas?
PA: Empresas do ramo da saúde provêm quase todo o material de insumo de que precisamos, recebemos doações de pessoas físicas e esperamos, no futuro, recebê-las das pessoas jurídicas. Quase metade dos custos refere-se a transporte aéreo.
CC: Projetos que se baseiam somente no voluntariado tendem a não se sustentar por muito tempo. Como vocês pretendem garantir o Zoé no longo prazo?
PA: De fato, sempre há postos que devem ser remunerados. Hoje, já não nos baseamos 100% em trabalho voluntário. Nosso diretor-executivo, por exemplo, é remunerado.
CC: Há planos para a expansão do projeto para outras localidades?
MA: O projeto baseia-se em duas frentes. A primeira são as atividades no Hospital Municipal de Belterra, onde participamos, em conjunto com a prefeitura, de melhorias nas instalações do hospital e fazemos atendimentos de diversas especialidades. A segunda frente é no barco-hospital Abaré, em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará. A embarcação faz atendimentos regulares às populações ribeirinhas do Rio Tapajós, nos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro. Esse modelo de atendimento, que engloba unidades fluviais e em terra, pode ser replicado em outros polos da região com características que dificultam o deslocamento. Além disso, estamos criando um braço visando o atendimento aos índios Xingu da região nordeste do estado de Mato Grosso e aos Zoé, tribo de isolada que habita uma região do norte do estado do Pará.
CC: Vocês pensam em expandir o número de voluntários?
MA: Não. O número de interessados é bastante grande para as nossas necessidades. Temos, em média, 25 candidatos para cada vaga aberta. Nossos esforços estão direcionados para obter doações de recursos financeiros e de parcerias com empresas para viabilizar as expedições.
CC: Qual a estimativa de gastos anuais em cada localidade?
PA: Contabilizando somente custos fixos e variáveis para dez expedições anuais, chegamos em algo em torno de 650 mil reais. Nesse valor não são considerados as horas de trabalho dos médicos e outros profissionais voluntários, os medicamentos e os equipamentos doados. Ao final de cada expedição, avaliamos os aspectos financeiros e as oportunidades de diminuir os custos. Passamos, por exemplo, a utilizar a hospedagem em casas e, às vezes, é possível dormir em barracas. A Zoé precisa conquistar a sustentabilidade, e pessoas e empresas que se identificarem com o nosso propósito e desejarem contribuir, podem fazer isso por meio do site ongzoe.org. Qualquer quantia é bem-vinda, e somos muito transparentes em relação à utilização dos recursos a nós doados. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Saúde paralela”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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