Por que não água?

Anos de pesquisas sem base e marketing da indústria propagaram, sem razão, o uso de isotônicos entre esportistas

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A revisora de pesquisas da mais importante revista inglesa de medicina e uma das mais respeitadas no mundo, a British Medical Journal, avaliou centenas de estudos sobre as bebidas para esportistas e concluiu que, além de não ter benefício algum, elas podem até prejudicar a saúde. Há décadas, maratonistas eram orientados a se hidratar com moderação, pois o peso extra de líquidos os tornaria mais lentos. Hoje, o conceito médico é de orientar a hiperidratação até antes de se iniciarem os exercícios. Por que isso mudou? Uma das conclusões do estudo é que a indústria dessas bebidas patrocinou pesquisas de baixa qualidade e associações médicas ligadas aos esportes, para que se criasse um falso conceito de que todo mal-estar provocado pelo esforço físico prolongado ocorre única e exclusivamente por desidratação, principalmente o fenômeno da hipertermia de que sofrem alguns atletas maratonistas.

A primeira medida foi minar o conceito de que o nosso corpo sabe quando precisamos de água e sal. Esse equilíbrio em nosso corpo é o mais primitivo e mais perfeito que existe. Desde que o primeiro organismo vivo existe ele precisou criar um mecanismo de equilíbrio entre o conteúdo intracelular e o ambiente extracelular. Isso se chama homeostase. Os organismos multicelulares precisaram criar um sistema que simulasse esse ambiente marítimo entre suas células, por isso a ­quantidade de sal que temos no sangue é próxima à da água do mar e é extremamente estável: qualquer mudança intensa ou brusca para cima ou para baixo no teor de sal do nosso sangue terá consequências catastróficas.

O estudo da BMJ descobriu que com a criação da maratona de Nova York houve um boom de atletas em todo o mundo e a indústria descobriu um novo nicho de negócios, suplementos e bebidas para ­esporte. Nos anos 60, a primeira bebida com sódio, potássio e açúcar foi desenvolvida especificamente para corredores por um nefrologista da Universidade da Flórida. Torcedor do time de futebol americano Gators, o doutor Robert Cade deu um toque de limão no drink e o nomeou Gatorade. Hoje, a indústria de bebidas esportivas fatura 1,6 bilhão de dólares e é dominada pela mesma que produz os refrigerantes, hoje condenados como causa da obesidade infantil e juvenil.

De acordo com os revisores dos estudos, tudo começou em 2005, quando o imbatível time de críquete da Austrália perdeu para a Inglaterra e o pesquisador de um estudo patrocinado pela Gatorade que estava em andamento com jogadores declarou à imprensa que 50% dos atletas terminaram a partida desidratados e por isso teriam perdido o jogo. A partir daí, uma enxurrada de estudos apareceu culpando a desidratação por quase tudo.

O grupo de revisores da BMJ avaliou todos os estudos enviados pelas empresas que produzem essas bebidas. Foram 106 trabalhos os analisados e 76 deles apresentavam graves falhas nas conclusões dos resultados. A dra. Cohen alerta que a grande maioria das orientações médicas feitas por entidades como a Associação Americana de Treinadores de Atletas e o Comitê Olímpico de Nutrição em Esportes é patrocinada pelas indústrias desses produtos. Além dos atletas, crianças e sedentários também recebem um bombardeio de informações errôneas divulgadas pela mídia leiga e especializada, de que essas soluções isotônicas são melhores que a água, e que não se pode confiar no mais primordial sentido de preservação, a sede.

Para os autores, tem ocorrido a criação de uma doença com fins mercantilistas. O uso abusivo de líquidos durante os exercícios também é perigoso, pois dilui o sal do corpo e provoca a hiponatremia, que pode levar a vômitos, dor de cabeça, cãibras e convulsões. Além do potássio e do sódio, as soluções são ricas em carboidratos e aumentam o risco de obesidade, e a falsa impressão de que essas bebidas são “fisiológicas” estimula seu consumo entre as crianças. Os autores da revisão chamam a atenção para a doença criada pela indústria de bebidas, que promove a hiperidratação. E recomendam: os atletas devem confiar não na propaganda, mas na sede.


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