Saúde

Pagamos até hoje a conta da inação de Bolsonaro na pandemia, diz presidente do Conass

Carlos Eduardo Lula afirma que presidente da República escolheu fazer da epidemia uma disputa política

O Presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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O principal ponto de tensão no combate à pandemia de coronavírus, que no Brasil já infectou mais de 6 milhões de pessoas e foi a causa da morte de outras 170 mil, é a politização da doença. A avaliação é do presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Eduardo Lula.

Em entrevista à DW, ele diz que  “o vírus não quer saber se você é vermelho ou azul, se veste a bandeira do Brasil e sai na rua”.  E mesmo assim, afirma, o presidente Jair Bolsonaro escolheu fazer da epidemia uma disputa política.

Carlos Eduardo Lula fala ainda dos avanços que o Conass tem feito no diálogo com o Ministério da Saúde, avalia os resultados do lockdown adotado em São Luís, capital do estado onde atua como secretário de Saúde, ainda no primeiro semestre e opina sobre o movimento antivacina que tem crescido não apenas no Brasil, mas no mundo todo.

DW Brasil: Podemos dizer que o Brasil enfrenta uma segunda onda da Covid-19? Ou sequer saiu da primeira? Em novembro, por exemplo, registrou-se a maior taxa de transmissão desde maio.

Nós não submergimos o suficiente para dizer que estamos em uma segunda onda. Vemos um replique no número de casos, um aumento, muito diferente da situação na qual a Europa se encontra hoje, de enfrentamento de uma segunda onda bem clara. O Brasil está em uma situação parecida com a dos Estados Unidos, que estabilizou [o número de casos] lá em cima. É preocupante, principalmente porque não temos como estabelecer uma análise única no Brasil, já que o país é muito grande. Hoje as situações do Sul e do Sudeste preocupam muito porque tanto os casos quanto as internações têm subido, com uma ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) altíssima.

Esse cenário pede uma coordenação unificada? O Conass considera alguma medida de âmbito nacional ou a melhor saída seriam medidas regionais, tomadas de forma isolada?

O Conass tem pontuado isso muito com o Ministério da Saúde, vez que o papel do ministério não é de execução de política, mas de articulação. Se ele se omite quanto a isso, o que sobra no lugar? O caos, que foi o que vivemos na primeira fase da pandemia, porque não tinha ninguém que coordenasse as ações a nível nacional. Passamos os primeiros meses da pandemia vendo uma guerra entre o Ministério da Saúde e a Presidência da República.

Ao mesmo tempo, se temos uma sincronia, uma harmonia maior entre o ministério e o presidente [Jair Bolsonaro], isso não pode fazer com que, simplesmente, viremos as costas ao que está acontecendo. Muito pelo contrário, já que a situação é grave. Na quinta-feira 26, por exemplo, tivemos uma reunião entre o Conass e o Ministério da Saúde para apontar algumas soluções para as próximas semanas, que vão do aumento da testagem à não diminuição do número de leitos de UTI. Junto a isso, temos uma preocupação com as “sequelas” da Covid-19, as pessoas que deixaram de ir ao hospital [com medo]. O ministério também precisa voltar com esse cuidado, com esse olhar, para que não haja óbitos indiretos. A pessoa que estava tratando um câncer e deixou de fazê-lo, a que precisava de uma cirurgia eletiva, mas não pode fazê-la. Temos, no Brasil, um aumento no número de mortes que têm como causa indireta o coronavírus.

O sr. mencionou que esteve em Brasília recentemente. A impressão é que já há mais diálogo entre o Conass e o Ministério da Saúde. A relação entre o governo federal e os estados mudou na gestão do ministro Pazuello?

Estaria equivocado se não dissesse que mudou. Hoje ao menos conseguimos conversar com o Ministério da Saúde. Não conseguíamos conversar com o ministro [Luiz Henrique] Mandetta porque o cenário era de uma guerra de todos contra todos, e o ministério acabou se perdendo no meio dessa briga, com ações, digamos, boicotadas pela Presidência da República. Já a gestão do [Nelson] Teich não teve tempo de fazer nada. De lá para cá, temos tentado, ao menos, conversar. E temos conseguido dialogar. Se o ministro Pazuello tem um mérito é que ele se senta para conversar conosco [secretários estaduais]. Discordamos, divergimos, apontamos aqui e ali, mas muita coisa melhorou.

No fim das contas, represento todos os secretários, tenho que tentar mediar as soluções e encontrar um meio-termo sempre. Da nossa parte [Conass], não vamos tentar romper [com o ministério]. Já poderíamos ter feito isso, mas não fizemos. Não podemos tomar decisões com o fígado. Muitas vezes, dá vontade de chutar o balde e ir embora, mas a conta tem que ser a saúde das pessoas, o que é melhor para elas.

Qual era o principal ponto de tensão até então?

A politização da doença. Apontar uma saída, e essa saída ser vista sob uma lente da eleição e ser, muitas vezes, boicotada. Existe o risco de um acordo, de repente, ser todo desfeito no outro dia. Esse é o maior risco atual, de um boicote as ações do Ministério da Saúde. Temo que, em razão dessa postura do presidente, isso também impeça muito da ação do ministério.

A politização é péssima. A pandemia poderia ter sido uma causa para unificar o país, mas o presidente resolveu, não sei qual a avaliação que ele fez, politizar a questão. E o vírus não quer saber se você é vermelho ou azul, se veste a bandeira do Brasil e sai na rua. É uma pena, porque o exemplo dele [do presidente] é muito forte. Essa brincadeira da cloroquina… As pessoas iam aos postos de saúde e diziam que queriam ser tratadas com cloroquina, porque o presidente estava dizendo. A figura mais importante do país é importante e reverbera a fala dele nas pessoas.

Por tudo isso, gastamos muita energia com o que não precisávamos. Podíamos ter um Brasil unificado no combate ao vírus, no combate à doença, e ter deixado essa disputa política para outro momento. Ele [Bolsonaro] resolveu não agir assim e estamos pagando a conta até hoje.

Como um gestor da saúde, o quanto a politização da vacina lhe preocupa? Ou, ainda, o negacionismo quanto à vacinação?

Isso é assustador; estamos voltando a uma discussão do início do século 20, da Revolta da Vacina. É uma discussão, de novo, pautada por ideologia, e não sabemos qual será a consequência disso. Precisamos, mais uma vez, escalar uma escada enorme para dizer que a vacinação é importante. A vacina quase sempre foi um direito das pessoas, mas conseguiram colocá-la em xeque, o que exigirá, de novo, um caminho enorme para percorrer, de mostrar que é importante, que protege. O movimento antivacina que tem tomado não só o Brasil, mas o mundo todo, é surreal. É algo que nem como conto de ficção científica eu um dia imaginaria.

Voltando à questão do combate à Covid-19, as características continentais do Brasil impedem a construção de políticas unificadas para conter o avanço da doença?

Temos que pensar em políticas para as regiões. Mesmo no Maranhão, não enfrentei o coronavírus em todo o estado de uma vez. Fomos o penúltimo estado a ter um caso confirmado, mas quando a Covid-19 chegou, chegou com uma violência que eu achava que teria corpos no meio da rua. Projetava isso. Três hospitais ficaram cheios em um período de 12 semanas.

É preciso pensar em políticas diferentes, considerando também a dimensão do sistema de saúde. Temos uma fragilidade muito maior no Norte e Nordeste, por exemplo, até de mão de obra. Se essa questão não estiver muito bem traçada e encaminhada pelo Ministério da Saúde, corremos o risco de elaborar um plano que não vai conversar com a realidade. Precisamos que pensar nesses vários “Brasis”.

São Luís, capital do estado do qual o sr. é secretário de Saúde, foi uma das primeiras grandes cidades do país a adotar o lockdown por pouco mais de dez dias, ainda em maio. Hoje, meses depois, o sr. considera a medida acertada?

É muito difícil tomar uma decisão como gestor em meio à guerra, porque você não pode pensar ou ponderar muito. Ou você toma a decisão ou vai enfrentar consequências econômicas, políticas e sociais. Na época, a medida nos pareceu adequada e foi tomada. Deu certo, mas ainda não é possível afirmar exatamente o porquê, pois ainda desconhecemos muitos aspectos da doença.

Uma medida como o lockdown, ocorre por uma, duas semanas, e depois você terá uma dimensão do número de casos. Em São Luís, curiosamente, começou uma redução absurda no número de casos no pós-lockdown. Em outras capitais, o êxito não foi o mesmo. Talvez tenhamos tomado a decisão no momento certo.

O Conass planeja ou recomenda alguma ação para o fim de ano?

Tenho pedido para que as pessoas não façam festas ou visitem idosos nesse período. E o pior é que tenho a impressão de que as pessoas estão achando que a vida está normal. E que só de vez em quando lembram-se de colocar a máscara, tomar as medidas de precaução. Isso me dá um medo danado. Não sei como será no final do ano. Assim como no Carnaval, ainda não sei o que vai acontecer e como a população reagirá.

O papel do Conass, claro, não se restringe ao coronavírus. E pouco se tem falado sobre os “efeitos colaterais” que a sobrecarga trazida pela Covid-19 tem causado, como o represamento de cirurgias eletivas, o crescimento de doenças relacionadas a saúde mental, entre outros.

Alguns estados que haviam retomado as cirurgias já tiveram que suspender. O número de pessoas que deixaram de fazer cirurgia ou ir ao médico, com medo, receio, é grande, mas ainda não temos a real dimensão do problema, a sociedade não faz ideia do quanto isso representará. Se formos falar de ondas, essa é a segunda onda: a primeira é a pandemia em si, e a segunda são as consequências dela. Há uma consequência gravíssima para o sistema de saúde em geral.

A queda de cirurgias eletivas em 2020 em comparação com 2019 é de mais de 50%. Uma montanha de pessoas ficou sem atendimento em razão da Covid-19. Fora os problemas de ordem de saúde mental. Todos os serviços no Brasil inteiro estão lotados. O que aumentou em vez de diminuir nessa pandemia foi a procura por psicólogo/psiquiatra, de uma maneira bem considerável. Aumentou também a violência doméstica. O coronavírus fez com que tivéssemos que enfrentar dois grandes receios: o da morte e o da loucura. Ainda não temos ideia das reais consequências da doença. Mesmo quando houver vacinação, quando pararmos para contabilizar todos esses elementos paralelos, só então perceberemos o quão assustador foi esse período.

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