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Os enigmas da consciência: nossa vida interior é só uma história contada?

O neurocientista Anil Seth enxerga a mente humana como uma máquina de previsão altamente evoluída

Busca sem-fim. “Quero compreender a mim mesmo e, por extensão, aos outros”, diz o pesquisador cuja palestra TED foi assistida mais de 11 milhões de vezes – Imagem: Bret Hartman/TED e iStockphoto
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Durante séculos, os filósofos teorizaram sobre a questão mente-corpo, discutindo a relação entre a matéria física do cérebro e a atividade mental consciente que ela cria. Mesmo com os avanços da neurociência e das técnicas de imagens cerebrais, grandes partes dessa relação fundamental continuam teimosamente misteriosas.

Em 1995, o cientista cognitivo David Chalmers cunhou o termo “o problema difícil” para descrever a questão de como exatamente o nosso cérebro realiza a experiência consciente subjetiva. Alguns filósofos continuam a insistir que a mente é inerentemente distinta da matéria. Avanços na compreensão do funcionamento do cérebro minam, porém, as ideias de dualidade.

Anil Seth, professor de neurociência cognitiva e computacional na Universidade de Sussex, na Inglaterra, está na vanguarda dessa última pesquisa. Sua palestra TED sobre consciência foi assistida mais de 11 milhões de vezes. Seu novo livro, Being You (Sendo Você, inédito em português), propõe a ideia da mente humana como uma “máquina de previsão altamente evoluída”, baseada nas funções do corpo e “constantemente alucinando o mundo e o ser” para criar realidade.

The Observer: Uma das coisas que apreciei em sua abordagem foi o modo como muitos fenômenos que o senhor investiga brotam da sua experiência. A sensação de retornar à consciência depois de uma anestesia, ou como sua mãe, experimentando o delírio, não era mais reconhecível. É sempre importante ter em mente essa estrutura do mundo real?
Anil Seth: O motivo pelo qual me interesso pela consciência é intrinsecamente pessoal. Quero compreender a mim mesmo e, por extensão, aos outros. Mas também sou superinteressado em desenvolver modelos estatísticos e métodos matemáticos para caracterizar coisas como a emergência, um comportamento que envolve a mente como um todo e que não envolve um componente pessoal.

“Corremos o risco de não entender o mistério central da vida, escapando para alguma forma de pensamento mágico”

TO: O senhor montou sua equipe em Sussex como um grupo multidisciplinar, com matemáticos puros, psicólogos e cientistas da computação, assim como neurocientistas cognitivos. Por quê?
AS: Eu tinha receio da academia porque minha primeira experiência em educação foi de especialização progressiva. Ainda me lembro que, aos 15 anos, tive de escolher entre artes e ciências, e aquilo pareceu uma maluquice. Eu temia que uma carreira acadêmica científica consistisse em aprender uma quantidade enorme de coisas sobre algo que não interessasse a mais ninguém. Foi um alívio quando essa ideia se mostrou falsa. Tentamos manter uma pergunta na mente e usar ferramentas diferentes para respondê-la.

TO: Que pergunta o senhor mantém na mente?
AS: De modo mais geral, é a pergunta de como desenvolver uma explicação científica satisfatória sobre a experiência consciente.

TO: O problema mente-corpo nunca será totalmente resolvido?
AS: Não, mas eu gostaria de avançar. Trata-se de continuar fazendo ciência rigorosa, em vez de propor alguma solução genial para o “problema difícil”. Corremos o risco de não entender o mistério central da vida, escapando para uma ou outra forma de pensamento mágico. Há muito a fazer para uma compreensão materialista simples de como o cérebro se relaciona com a experiência consciente.

TO: Me interessei, no livro, pela parte sobre Clive Wearing. Em ­consequência de uma infecção cerebral devastadora, ele perdeu a memória consciente e vive em um tempo presente permanente, como se acordasse perpetuamente de um coma. Mas os estudos mostram que ele demonstra um amor duradouro pela mulher. Como se explica isso?
AS: Não conheço Clive nem a mulher dele, só li sobre o caso, que mostra que algumas das coisas que consideramos necessárias para a identidade pessoal, obviamente, não o são. Há todo tipo de formas de memória. A memória autobiográfica é apenas uma delas. Em pacientes neurológicos, você vê como a mente é construída por processos que não vemos na vida normal.

TO: Lembro-me do escritor ­Nicholson Baker sugerindo que todos os pensamentos que valem a pena são mais ou menos do tamanho de um guarda-roupa e têm a complexidade de um carrinho de mão. O que o senhor pensa sobre os pensamentos?
AS: O filósofo William James disse: “Os próprios pensamentos são os pensadores”. Acho que há uma verdade nisso. Talvez seja um erro pensar nos pensamentos sendo produzidos ou observados por um ser interior precursor. O pensamento é fundamental para a psicologia, mas é uma das coisas mais difíceis de estudar. Você não pode controlar o pensamento da mesma maneira que consegue manipular sistematicamente a percepção no laboratório. Por isso evito investigar como a mente divaga.

Fora do divã. Seth se diz cético em relação às explicações psicanalíticas, derivadas de Sigmund Freud, de que há um subconsciente tentando entrar na nossa vida mental e nos dar ideias que, de outro modo, seriam reprimidas. – Imagem: Max Halberstadt/Biblioteca do Congresso dos EUA

TO: Mas em seus estudos o senhor começa a observar que há uma espécie de humor embutido na consciência.
AS: Há uma espécie de estímulo criativo interno na variação de nossas vidas mentais. Mas de onde vêm os pensamentos? Sou cético em relação às explicações psicanalíticas que sugerem que há um subconsciente tentando entrar lá e lhe dar ideias que, de outro modo, seriam reprimidas. Para mim, elas são a versão maximamente abstrata da percepção

TO: Seu livro é cheio de bons aforismos. Um central em sua argumentação sobre o como e o porquê da consciência é a ideia de que “eu prevejo a mim mesmo, portanto sou”. O que é o “eu” nessa sentença?
AS: É uma coleção de previsões perceptivas. É uma sentença ­bem-humorada. O “eu” é de­li­be­ra­da­men­te ambíguo. Ele diz que há uma experiência brotando do fato de eu ser um indivíduo simples e uno, com todos esses atributos diferentes: memórias, laços emocionais, experiências corporais.

TO: Esse sentimento da primeira pessoa é muito teimoso. A maioria das pessoas tem um senso muito forte de continuidade entre nossas experiências na infância e o nosso ser atual. Essa unidade percebida é essencialmente uma espécie de estratégia darwiniana?
AS: Há muita discussão sobre a função evolucionária da consciência. Mas as respostas que você recebe dependem da distinção que está tentando fazer. Se estiver tentando dizer por que uma coisa é consciente, em vez de simples mecanismos evoluindo em desenhos no escuro, você está, simplesmente, indo contra o “problema difícil”. Mas, se você pensar sobre qual é o benefício evolucionário para o organismo ter essas experiências específicas, então verá que uma experiência da individualidade é importante, porque ela maximiza as chances de sobrevivência do organismo

“Passei muito tempo estudando os polvos. Eles realmente demonstram uma maneira totalmente diferente de ser”

TO: Por que não é possível para a inteligência artificial, pelo menos, imitar essa percepção orgânica e, portanto, imitar outros aspectos da individualidade consciente?
AS: Eu acho que, provavelmente, é muito possível a IA imitar isso. Na verdade, no livro eu digo que o ritmo dessa capacidade de imitar é realmente assustador, com a combinação de coisas “profundamente falsas” com máquinas de processamento de linguagem natural. Mas a instanciação é outra coisa.

TO: O que o senhor chama de instanciação?
AS: Construir um sistema de IA ou um robô que experimente subjetivamente ter uma individualidade, em oposição a ser uma máquina sofisticada que dá a aparência de ter uma identidade, mas com nada realmente acontecendo.

TO: Mas se pegarmos a definição de consciência de Daniel Dennett como “um trilhão de robôs inconscientes dançando”, onde está a diferença?
AS: Dan Dennett é uma das minhas inspirações e um dos meus mentores mais antigos. A oportunidade, nos últimos anos, de discutir com ele foi um grande prazer. Eu dei uma palestra TED em 2017 e das 3 mil pessoas presentes –muitos fundadores, investidores e pessoas famosas –, a única que me aterrorizava era Dennett, que eu sabia que estava na plateia. E com razão. Em certo momento da palestra, descrevi as experiências perceptivas como uma espécie de “filme interior”. Mais tarde, ele me disse: “Ah, foi ótimo, exceto o filme. Porque: quem está assistindo ao filme?” É uma crítica muito boa. Não há filme porque não há ninguém assistindo.

TO: Mas há uma narrativa embutida, não importa como a descrevemos. Nossa vida interior é só uma história contada?
AS: Dennett se equivoca um pouco sobre o que ele considera a experiência perceptiva ou fenomenal, se ela existe ou não. Eu embarco nessa, porque acho que podemos ir muito longe explicando as funções e disposições das coisas a se comportarem de determinadas maneiras. Mas sou agnóstico sobre se, no fim desse programa de tentar explicar em termos físicos as propriedades da experiência, ainda sobrará algum resíduo de mistério.

Espelho. Outras espécies vivem experiências e têm a capacidade de sentir dor e prazer – Imagem: iStockphoto

TO: Seus pensamentos sobre isso já assumiram alguma tendência espiritual, em termos de por que algo existir, em vez de não existir?
AS: Eu acho que há certa arrogância em supor que tudo se submeterá a um programa de explicação mecanicista. Acho que é honestidade intelectual admitir que a existência da experiência consciente como fenômeno em um universo para o qual geralmente temos explicações físicas parece estranha.

TO: Uma das perguntas colocadas por Thomas Nagel no famoso ensaio Como É Ser Um Morcego? é se um ser humano representa o tipo de consciência mais evoluído. O quanto o senhor tem consciência dos diferentes tipos de seres?
AS: Muito do que sabemos sobre a consciência humana baseia-se em experimentos com animais. Uma das histórias do livro é sobre o tempo que passei estudando os polvos, que foi fantástico. Eles realmente demonstram maneira totalmente diferente de ser. Uma das tensões mais incrustadas em mim é entre usar humanos como referência, o que de certa forma temos de fazer, e reconhecer que os humanos não são a referência pela qual todas as outras espécies conscientes devem ser avaliadas. É importante reconhecer que, se outras espécies têm experiência, as primeiras coisas de que elas serão dotadas pela evolução são as capacidades de sentir dor, prazer ou sofrimento, mais que um pensamento inteligente complexo.

TO: No livro, o senhor conta que só recentemente examinou um cérebro humano vivo, depois de ter sido convidado a assistir a uma operação. Como foi a experiência?
AS: Espantosa. Esse objeto material que estudei por mais de 20 anos estava ali. Enquanto fazia a operação, em que foram removidas partes do cérebro danificadas, o cirurgião cortou um pedaço e me deu para segurar. Foi uma experiência muito importante, um lembrete de que qualquer coisa que esteja acontecendo, de alguma forma, acontece exatamente ali, nesse momento. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os enigmas da consciência”

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