Saúde

O que o dinheiro não compra?

No momento em que o Brasil alcança o patamar de 4 mil mortes diárias, o Congresso libera o fura-fila para empresários

Para evitar o colapso funerário, a cidade de São Paulo passou a realizar enterros noturnos e a usar vans escolares para o transporte de corpos. FOTO: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP
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O pesadelo não tem fim. Na terça-feira 6, o Brasil ultrapassou, pela primeira vez, a marca de 4 mil mortes por Covid-19 em 24 horas. Com o lento ritmo da campanha de vacinação e a circulação de variantes do Coronavírus mais contagiosas e agressivas, o número de óbitos não para de crescer. A sobrecarga nos hospitais continua em níveis críticos. O próximo passo é o colapso do sistema funerário, alertam especialistas. Para dar conta do aumento da demanda, a cidade de São Paulo passou a realizar enterros noturnos e a usar vans escolares para o transporte de corpos. Somente em março, foram realizados 9.728 sepultamentos e cremações na capital paulista, alta de 63% em relação ao mês anterior, mais curto.

Dezenove estados e o Distrito Federal estão com taxa de ocupação dos leitos de UTI superiores a 90%, atesta o mais recente boletim da Fiocruz, divulgado no mesmo dia em que o País rompeu a barreira das 4 mil mortes diárias. As medidas restritivas impostas por prefeituras e governos estaduais produziram êxitos localizados, que podem reduzir a transmissão do vírus nas próximas semanas. Seu efeito na diminuição do número de óbitos e nas internações hospitalares pode tardar, no entanto, em decorrência do acúmulo de casos graves, advindos da exposição ao Coronavírus ainda em março. No mês passado, 66 mil brasileiros morreram por Covid-19, mas a perspectiva para abril é ainda mais sombria. Segundo um estudo do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington, o País deve registrar ao menos 98 mil óbitos neste mês. No cenário mais otimista, com 95% da população usando a máscara de proteção de maneira apropriada. No cenário mais provável, com a circulação de indivíduos não vacinados no mesmo patamar de 2020 e com 25% dos imunizados retomando o nível de mobilidade de antes da pandemia, haverá um acréscimo de 100 mil óbitos. 

Embora seu impacto pareça tímido nas mortes de abril, o uso universal da máscara se expressaria de forma muito mais clara nos meses seguintes. Se 95% da população usasse o equipamento de proteção da forma correta, o Brasil chegaria em 1º de julho com 507 mil óbitos acumulados desde o início da pandemia. No cenário atual, seriam 562 mil. Ou seja, se os brasileiros respeitassem ao menos essa recomendação das autoridades sanitárias, ao menos 55 mil vidas poderiam ser salvas. Lamentavelmente, muitos ainda acreditam que a máscara é um acessório dispensável, talvez influenciados pelo comportamento do presidente da República, que chegou a divulgar uma pesquisa fake – na verdade, uma enquete aberta no site de uma universidade alemã – sobre os supostos “efeitos colaterais” das peças, como “irritabilidade”, “diminuição da percepção de felicidade” ou “recusa a ir para a escola ou creche” em crianças.

“Toda projeção estatística tem uma margem de erro, mas me parece bastante factível o Brasil chegar a 100 mil mortes em abril, pois basta analisar o contexto”, afirma o sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz. “Quando batemos a marca de 4 mil óbitos diários, somente 10% da população havia recebido uma dose de vacina e menos de 3% estava completamente imunizada. Novas cepas do vírus, ainda mais transmissíveis, circulam livremente pelo País, e o sistema hospitalar entrou em colapso na maioria dos estados. Só no Rio de Janeiro, ao menos 300 pacientes morreram à espera de uma vaga de UTI neste ano.”

Mesmo quem consegue leito enfrenta uma perversa roleta-russa, acrescenta o ex-ministro. Oito em cada dez pacientes que precisam de ventilação mecânica no Brasil não sobrevivem, revela um estudo publicado na revista científica The Lancet Respiratory Medicine. Além disso, 59% dos internados em UTIs vieram a óbito. As conclusões partem de uma análise retrospectiva de mais de 254 mil brasileiros internados com diagnóstico de Covid-19 entre 16 de fevereiro e 15 de agosto de 2020. À época, pouco se sabia sobre a evolução da doença, é preciso ponderar. Ainda assim, os números são escandalosos. “Por conta dessa conjunção de fatores, não dá para menosprezar o alerta da Universidade de Washington”, diz Temporão. 

A opinião é compartilhada pelo infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP e integrante do Centro de Contingenciamento do Coronavírus em São Paulo. “Se março foi o pior mês de nossas vidas, abril será ainda pior”, lamenta. “Começamos o mês com um nível muito alto de transmissão. Em alguns lugares até houve uma redução do ritmo de crescimento, mas o número de casos continua em um patamar elevadíssimo. As medidas restritivas determinadas por estados e municípios demoram a surtir efeito, sobretudo nas internações e nos óbitos. Evidentemente, precisamos manter o isolamento social, mas só veremos os frutos desse esforço no fim de abril, começo de maio.”

Como de hábito, Bolsonaro faz pouco caso da situação. Na noite da terça-feira 6, ao conversar com apoiadores na porta do Palácio da Alvorada, o presidente não fez um único comentário sobre os mais de 4 mil óbitos registrados em 24 horas, a despeito das insistentes perguntas feitas por uma mulher do grupo. Em vez disso, voltou a criticar as medidas de isolamento social, segundo ele responsável pelo agravamento de casos de depressão, diabetes e obesidade. “Quando você prende o cara em casa, o que ele faz? Duvido que ele não aumentou um pouquinho de peso. Duvido. Até eu cresci um pouquinho a barriga”, disse, pouco antes de debochar dos seus críticos. “O pessoal entrou naquela pilha de homofóbico, racista, fascista, torturador. Agora é o quê? Agora eu sou… aquele que mata muita gente, como é que é o nome? Genocida. Agora eu sou genocida.”

O ex-capitão não é, porém, a única autoridade empenhada em sabotar o distanciamento social. Na véspera da Páscoa, o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar autorizando a realização de missas e cultos religiosos em todo o Brasil. Nomeado por Bolsonaro e “terrivelmente católico”, ele sustenta que estados e municípios não podem impor obstáculos à liberdade religiosa. “A proibição categórica de cultos não ocorre sequer em estado de defesa ou estado de sítio. Como poderia ocorrer por atos administrativos locais? Certo, as questões sanitárias são importantes e devem ser observadas, mas, para tanto, não se pode fazer tábula rasa da Constituição”, escreveu o magistrado, sempre disposto a engrossar as fileiras dos que fazem tábula rasa da ciência.

Em novembro, pesquisadores da Universidade de Stanford publicaram um artigo na revista científica Nature demonstrando que poucos pontos de aglomeração foram responsáveis por oito a cada dez novos casos de Covid nos EUA nos primeiros meses da pandemia. Segundo os autores, templos e igrejas figuram na sexta colocação entre os locais com maior risco de contágio, à frente de consultórios médicos e mercados, e atrás apenas de restaurantes, academias, hotéis, bares e lanchonetes.

O estudo baseia-se em dados de movimentação de mais de 98 milhões de norte-americanos em dez áreas metropolitanas, como Nova York, Los Angeles e Miami. “Construímos um modelo de computador para analisar como os indivíduos de diversas origens demográficas e bairros visitam diferentes tipos de lugares, que estão mais ou menos lotados”, explicou, no site da Universidade de Stanford, o cientista da computação Jure Leskovec, que liderou o esforço, a envolver ainda pesquisadores da Universidade de Northwestern, em Ilinions. “Com base em todos esses dados, podemos prever a probabilidade de novas infecções ocorrerem em qualquer lugar ou hora.”

A decisão de Marques acabou cassada pelo plenário do STF na quarta-feira 7. Aliviados, os especialistas não escondem a perplexidade com o ato do magistrado. “Não tem a mínima lógica liberar cultos religiosos no atual estágio da pandemia. Na Europa, numerosos estudos indicaram que é elevadíssimo o risco de contrair o vírus em uma igreja ou templo”, comenta Boulos. “Claramente, trata-se de uma decisão sem qualquer lastro científico. Infelizmente, muitos confundem medidas sanitárias com política, mas o vírus não está nem aí para a torcida de um lado ou de outro.”

Embora defenda publicamente o distanciamento social e o uso da máscara, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deixou claro quais são os limites de sua atuação. “Evitar o lockdown é a ordem”, disse no sábado 3, após participar de uma reunião promovida pela Organização Mundial da Saúde. Por ora, uma das poucas medidas efetivas do cardiologista à frente da pasta foi substituir os militares trazidos pelo antecessor, o general Eduardo Pazuello, por profissionais de perfil técnico. Nem por isso Queiroga ousa tocar em outros privilégios da turma. Os hospitais das Forças Armadas estão com até 85% das vagas de UTI ociosas, pois se recusam a atender civis, atestam dados repassados pelo governo ao Tribunal de Contas da União.

Ao liberar a compra de vacinas por empresários, a Câmara compromete a imunização dos mais pobres, como Esmeralda Moraes, de 78 anos.


Farinha pouca, meu pirão primeiro, e a lógica não é seguida apenas pelos militares. Na terça-feira 6, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que afrouxa as regras para o setor privado comprar vacinas. Pelo texto, as empresas ficam autorizadas a adquirir imunizantes que não foram aprovados pela Anvisa, basta o aval de qualquer agência reguladora estrangeira reconhecida pela OMS, e desobriga a doação de todas as doses para o SUS. Caso a mudança seja aprovada pelo Senado, os empresários poderiam ficar com metade das doses.

“É importante esclarecer que o Congresso Nacional tinha aprovado um PL que permite às empresas a compra vacinas, desde que elas sejam aprovadas pela Anvisa e doadas ao SUS até que todo o grupo prioritário esteja vacinado”, observa o deputado petista Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde de Dilma Rousseff. “Com essa mudança, um banqueiro de 50 anos de idade poderá tomar a vacina antes de um aposentado com 63 ou 64 anos, que aguarda na fila. E não adianta dizer que os funcionários também serão beneficiados. O empregado de 40 anos desse banqueiro passará na frente de outro cidadão, talvez com a mesma idade, mas que possui doença cardíaca, doença pulmonar, diabetes ou alguma outra complicação.”

Na avaliação do ex-ministro Temporão, não há qualquer argumento, do ponto de vista sanitário ou epidemiológico, que sustente essa decisão. “Trata-se de uma vergonhosa e imoral tentativa de furar a fila de vacinação, quebrando o princípio da equidade do SUS e demolindo os critérios de imunização, focados nos grupos com maior risco de desenvolver as formas graves da doença”, diz. “Em um contexto de escassez global de vacinas, problema agravado pela omissão do governo federal, que tardou a celebrar contratos com os laboratórios, o Congresso dispôs-se a tirar os imunizantes de quem mais precisa para favorecer quem pode pagar.”

Difícil saber o real impacto da medida, pois não existem tantas vacinas à disposição no mercado. Aqueles que se imunizaram às escondidas em Belo Horizonte caíram, na verdade, no golpe de uma falsa enfermeira, detida pela Polícia Federal. Uma perícia constatou que o material apreendido com a mulher era soro fisiológico, e não o caríssimo imunizante pago por empresários e políticos mineiros. Que pena das vítimas, não?

Fonte: Secretarias Estaduais de Saúde/Elaboração: Ministério da Saúde Óbitos


A liberação das compras pode, porém, dar margem a outro golpe, alerta o advogado e médico sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Instituto de Direito e Saúde da Universidade de Paris. “As grandes farmacêuticas disseram várias vezes que não vão vender a empresas, só a governos. Ao aprovar a compra de vacinas sem autorização da Anvisa, o objetivo pode ser o de adquirir qualquer coisa para chamar de vacina, dizer que os empregados estão vacinados e justificar a abertura da economia”, escreveu no Twitter. Como se nota, o Coronavírus não é a única ameaça. O Brasil também padece de uma incontrolável epidemia de esperteza.

Publicado na edição nº 1152 de CartaCapital, em 8 de abril de 2021.

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