Saúde

“O mosquito não respeita fronteiras”, diz especialista em febre amarela

Maurício Nogueira Lacerda, da Sociedade Brasileira de Virologia, explica o surto da doença e critica falta de diálogo do governo com pesquisadores

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Desde 1940 não se via uma epidemia tão grave de febre amarela silvestre no Brasil. E o pior: o surto está atingindo regiões desprotegidas, onde grande parte da população adulta não está vacinada.

O alerta é do médico Maurício Lacerda Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e chefe do departamento de Virologia na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. 

Até 15 de março, ao menos 1.558 casos já foram notificados, a maioria em Minas Gerais e no Espírito Santo. Desses casos, 933 estão sendo investigados, 424 foram confirmados e 201, descartados. Até agora, 259 pessoas morreram. 

CartaCapital: Qual é o quadro de febre amarela que temos atualmente no Brasil?

Maurício Lacerda Nogueira: De certa forma, uma epidemia de febre amarela era mais ou menos esperada nesta época, pois a circulação da doença ocorre em ciclos de 8 anos. A ultima foi em 2008.

O que não era esperado, de certa forma, é a magnitude que estamos tendo agora. Trata-se da maior epidemia da era moderna da febre amarela. Desde a erradicação da febre amarela urbana, em 1940, não se via uma epidemia tão grande. Essa é a situação: esperávamos algo, mas não tão grande.

CC: Que explicações temos para essa epidemia?

MN: O mais importante é que ela atingiu uma área despreparada. Na verdade, ela não está restrita a essa área, o vírus também tem circulado no interior de São Paulo, em Goias e na região Oeste de Minas Gerais, mas essas são regiões que são preparadas, regiões onde há uma cobertura vacinal muito grande.

O que acontece dessa vez é que a doença está circulando em áreas que não estavam preparadas, por uma série de razões. Por isso você tem esse grande número de casos em humanos em Minas Gerais, um número de óbitos significativos e um aparecimento da febre amarela no Espírito Santo e no Rio de Janeiro.

CC: O que levou ao surto atual de febre amarela? Ele é diferente dos demais?

MN: Acho que exatamente essa é a particularidade importante: atingiu uma área que não estava preparada. Embora devesse estar, porque de certa forma o surto foi previsto 8 anos atrás, quando o ministério da Saúde mudou a área de cobertura vacinal. De certa forma, o ministério anteviu o que ia acontecer. O erro foi não vacinar a população adulta nessa região.

CC: Por que, na sua opinião, a estratégia de vacinação contra a febre amarela deve ser revista?

MN: Ela está atingindo uma área que não estava antes. Você vai ter que vacinar o Rio de Janeiro, o Espírito Santo. A pergunta óbvia é o seguinte: e o litoral de São Paulo? O que eu acho importante notar é que a estratégia de vacinação está seguindo mais as divisas estaduais do que os biomas.

CC: Como assim?

MN: Por que era obrigatório vacinar até a divisa de Minas e do Espírito Santo e não no Espírito Santo? O vírus vai perceber que é a divisa e vai parar? Não, isso não vai acontecer. Toda a região de mata atlântica entre Minas e o Espírito Santo deveria ser vacinada – e agora o Rio de Janeiro. Posteriormente, a mata atlântica em São Paulo. O mosquito não respeita fronteiras.

CC: Houve também surtos de zika e de dengue. Em geral, as campanhas governamentais são focadas na ação individual, como não deixar água parada. Você acredita que essa estratégia é suficiente?

MN: Essa é uma pergunta extremamente complexa. O fato é que existe uma passividade enorme da sociedade esperando o governo tomar atitudes que são inerentemente pessoais. Cuidar do próprio quintal é uma responsabilidade do cidadão. Essa passividade do cidadão é uma coisa bem brasileira. É lógico que o Estado – e me refiro às três esferas, municipal, estadual e federal – tem uma culpa enorme no cartório ao abaixar a guarda, não investir etc. Mas o cidadão tem uma culpa muito grande. Nós, como sociedade, temos uma culpa muito grande de aguardar o Estado fazer tudo. Na minha opinião, é uma culpa compartilhada.

CC: Por que o senhor afirmou que a decisão do governo estadual do Rio de Janeiro de vacinar contra a febre amarela foi tomada tardiamente?

MN: Como eu disse, a epidemia começa em Minas em dezembro. Era óbvio que o vírus não ia respeitar a fronteira com o Rio de Janeiro. E o Grande Rio está numa situação complicadíssima: é uma área historicamente de febre amarela. Quem foi o [médico sanitarista] Oswaldo Cruz? Foi o cara que erradicou a doença no Rio em 1900. Então, a febre amarela sempre existiu lá.

Agora, você tem duas situações no Rio de Janeiro: uma é a maior mata urbana do mundo, um grande reservatório de febre amarela. E o segundo é uma cidade, principalmente na baixada fluminense, infestada de aedes. Então, você tem uma população que não é vacinada, em uma área infestada de aedes e uma área de circulação de febre amarela próxima.

A última notícia que lembro disso foi Lagos, na Nigéria, no ano passado, que gerou uma epidemia monstruosa de febre amarela urbana. O Rio de Janeiro tem a receita correta para ter febre amarela urbana. É diferente do que temos no interior de São Paulo.

CC: Como é a situação em São Paulo? 

MN: Nós temos febre amarela e aedes em São Paulo. Mas não tem epidemia porque temos uma população vacinada, então não teremos um surto de febre amarela no interior paulista. Pode ter um caso isolado, um óbito ou outro, em geral são de população migrante, que veio de outra região e não se vacinaram e acabam expostas. Mas não tem a condição para ter essa febre amarela urbana.

CC: E o Rio?

MN: O Rio de Janeiro não pode se dar ao luxo de ter mais uma desgraça. A ressaca pós olimpíada e pós-Cabral [o ex-governador Sérgio Cabral] já cobra um custo muito alto. O Rio de Janeiro é o nosso cartão postal para o mundo. Não podemos ter a cidade exposta numa situação dessa. É um lugar que sempre teve febre amarela. Mas você tem duas situações: a maior mata urbana do mundo, um reservatório de febre amarela, e áreas infestadas por aedes e uma população suscetível. 

CC: E a situação econômica do Rio já está dificil… 

MN: Já está caótica. Imagine que vamos tomar a decisão e vacinar 15 milhões de habitantes no Rio de Janeiro. Quem vai vacinar? O sistema de saúde, falido, subfinanciado, com pessoas sem receber salário? Qual ânimo elas terão para trabalhar e vacinar 15 milhões? Isso é culpa dos nossos governantes.

CC: Como foi o trabalho de imunização no interior de São Paulo?

MN: Em São José do Rio Preto já partimos de uma situação confortável, porque a vacina contra febre amarela está no calendário. Então, a criança com 9 meses já está vacinada. Por exemplo, o primeiro óbito dessa nova safra foi aqui [em São José], no ano passado. Quando isso aconteceu, começamos a trabalhar na cidade. Procuramos o migrantes para vacinar e vacinamos os adultos, porque as crianças já estão vacinadas. Existe um calendário vacinal para as crianças, o problema é o adulto. As crianças são menos expostas e são vacinadas, quase não há casos. O grande erro de Minas Gerais foi não ter feito uma campanha de vacinação para os adultos.

CC: O que a população pode fazer para evitar a doença?

MN: Por enquanto, a febre amarela está restrita à silvestre, ou seja, em regiões de mata. O primeiro ponto é evitar as regiões de mata se você não estiver vacinado. O outro é vacinar. Mas se vacinar depende da disponibilidade da vacina, depende do local. Não adianta os 15 milhões de habitantes do Rio formarem uma fila hoje, porque não haverá vacina para todos. Aí vai caber aos nossos representantes estabelecerem estratégias que sejam claras, discutidas com a sociedade ou pelo menos apresentadas claramente a ela. Senão induz ao caos.

O governo do estado do Rio não pode ficar questionando se os laudos da Fiocruz estão certos ou errados, eles precisam fazer uma estratégia de ação, a discussão sobre o resultado do exame é técnica e precisa ser feita tecnicamente, não via manchete de jornal.

O que tem que ir pra manchete é como o estado responderá a isso. E não é questionando o problema que vai resolver. A visão é clara, se você tem um exame suspeito, considera positivo e começa a vacinar, depois a gente resolve o exame.

Em Minas e no Espírito Santo [o surto] já está acabando, espero que no Rio de Janeiro não crie condições maiores. Mas o fato que daqui quatro meses esse problema estará encerrado, teoricamente, não resolve a situação. A situação ainda precisa de uma discussão muito séria sobre as estratégias de vacinação no País.

A discussão precisa ser feita com técnicos, com universidades, com a Organização Mundial da Saúde, com pessoas que possam dar uma contribuição isenta para o Estado.

CC: E o senhor vê essa movimentação, esse diálogo, acontecer?

MN: Não, pelo contrário. O que vemos na comunidade cientifica é o Estado fechado em ele mesmo, sem dialogo com a comunidade científica, com as universidades ou com as associações. Eu tenho diversos especialistas associados na área na Sociedade Brasileira de Virologia, pessoas ouvidas aqui e fora do Brasil por organismos internacionais, mas o governo continua fechado entre os seus técnicos para reagir. Acho isso um erro. Ser autossuficiente é um erro. Em todas as esferas. O municipal, pelo menos aqui somos ouvidos, no estado, somos ouvidos em alguma coisa, mas, o federal, está surdo. A pergunta é: existe o ministério da Saúde?

CC: Como o senhor vê essa situação?

MN: O ministério da Saúde virou uma moeda de troca política. Você não pode usar o ministério da Saúde assim. Esse é o resultado quando você politiza o setor.

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