Saúde

“Nosso futuro depende da quarentena”, diz José Gomes Temporão

O ex-ministro também critica a postura de Bolsonaro diante da pandemia: ‘É dramático e constrangedor’

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde
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Em meio à pandemia, o futuro dos brasileiros depende do sucesso da quarentena, mas fica difícil alcançar o objetivo com o presidente da República jogando contra, lamenta o ex-ministro José Gomes Temporão. Na avaliação do sanitarista e pesquisador da Fiocruz, é absolutamente descabida a ideia de um isolamento vertical, só para quem tem mais de 60 anos ou histórico de doenças pré-existente, como propõe Bolsonaro. “Como isolar todos os idosos que moram na Rocinha, nas comunidades pobres do Rio de Janeiro? Vamos separá-los de suas famílias e colocá-los onde? Em hotéis?”, indaga o ex-ministro.  “Que autoridade científica dá suporte à proposta do presidente? São os filhos dele? É dramático e constrangedor”.

CartaCapital: Como o senhor avalia a condução do governo federal?
José Gomes Temporão: A pandemia exige do governo não apenas um esforço forte e coordenado do sistema de saúde, mas também robustas iniciativas para preservar a economia e dar suporte social à população. Cerca de 60 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza ou miséria. Temos 11 milhões de desempregados, quase 40 milhões de trabalhadores na informalidade, sem qualquer tipo de proteção. Dentro desse cenário mais amplo, a resposta do governo é péssima.

CC: Por quê?
JGT: Vemos coerência nas medidas adotadas pelo Ministério da Saúde e pelos secretários estaduais e municipais da área, mesmo com todas as dificuldades. No entanto, pelo lado da economia e da assistência social, as ações são pontuais e paliativas. Não fosse a pressão do Congresso, talvez o governo se limitaria a distribuir vouchers de 200 reais. Falta uma visão integrada, setorial e transversal. O grande articulador dessa estratégia deveria ser o presidente da República, mas ele demonstra absoluta incapacidade de lidar com a crise. Falta compreensão, conhecimento e liderança. A todo instante, Bolsonaro relativiza o que a ciência diz, colocando em risco a segurança do País e a vida dos brasileiros.

CC: A condução do Ministério da Saúde é correta?
JGT: A pasta faz o que pode. Recomenda o isolamento social, busca ampliar o número de pacientes testados, monta leitos de UTI, importa equipamentos, capacita técnicos. São iniciativas consistentes, mas tudo isso fica fragilizado se não houver um esforço robusto nas outras dimensões. Se não houver a garantia de uma renda mínima para as famílias, se não houver políticas de suporte aos empresários e microempreendedores, fica muito difícil manter o distanciamento social.

CC: Existe alguma base científica para o tal “isolamento vertical” proposto por Bolsonaro, a ideia de manter em quarentena somente os idosos e grupos de risco?
JGT: A Covid-19 tem algumas características importantes. Primeiro, não há medicamento ou tratamento. Segundo, não há previsão de vacina antes de um ano ou um ano e meio. O que, então, fazer se ao menos 5% das pessoas que tiverem contato com o vírus irão desenvolver quadros graves da doença? A alternativa é reduzir a velocidade de transmissão do vírus na sociedade, para permitir que o sistema de saúde se prepare para as milhares de internações que vão ocorrer.

A todo instante, Bolsonaro relativiza o que a ciência diz, colocando em risco a segurança do País

A única recomendação validada cientificamente são as medidas de distanciamento social, como o cancelamento de eventos públicos, a suspensão das aulas, o fechamento do comércio, a recomendação para as pessoas ficarem em casa. Talvez alguns países, com características diferentes das nossas, possam adotar outras estratégias. No caso do Brasil, é um argumento irrefutável. Temos 30 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, parte importante deles com doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.

CC: Não funciona a quarentena só para esse grupo?
JGT: Como é possível isolar essas pessoas dos seus filhos, netos, sobrinhos, cuidadores. No Brasil, temos famílias amplas, todo mundo tem contato com todo mundo. Como isolar todos os idosos que moram na Rocinha, nas comunidades pobres do Rio de Janeiro? Vamos separá-los de suas famílias e colocá-los onde? Em hotéis? O presidente é uma pessoa ignorante em termos de saúde pública, deveria confiar na equipe técnica do Ministério da Saúde Deveria seguir o que a OMS recomenda, o que os especialistas propõem. Que autoridade científica dá suporte à proposta do presidente? São os filhos dele? É dramático e constrangedor.

CC: O Imperial College de Londres projeta 529 mil mortes no Brasil com isolamento só de idosos. Se o distanciamento social valer para todos, os óbitos caem para 44 mil. Quão confiável é esse tipo de projeção?
JGT: Precisamos trabalhar com cenários, para nos preparar melhor, mas é difícil predizer o que vai acontecer. Mas posso garantir que, se conseguirmos manter as pessoas em casa, teremos um achatamento da curva de casos, uma redução da velocidade de disseminação do vírus. E isso significa a ocorrência de menos casos graves, internações e mortes. Nosso futuro depende do sucesso da quarentena. Infelizmente, estamos o tempo todo sendo tencionados por essa postura irracional e irresponsável do presidente, que nega a ciência e insiste em uma proposta que todos sabem ser inócua.

Que autoridade científica dá suporte à proposta do presidente? São os filhos dele? É dramático e constrangedor

CC: Quando o Brasil deve atingir o pico de infecções?
JGT: Provavelmente, no fim de abril teremos um cenário mais claro. Como os especialistas têm dito, existe uma montanha a ser escalada e ainda estamos em baixo, no início da caminhada. Todos os dias o Ministério da Saúde atualiza o número de casos de Covid-19 no Brasil, mas posso garantir que eles estão defasados, e todos os especialistas sabem disso. Podemos multiplicar por dez o número informado e, ainda assim, o número real de infectados pode ser maior.

A Fiocruz tem um sistema que monitora os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave no País. Todos os anos, de fevereiro até o meio do ano, milhares de brasileiros contraem vários tipos de vírus que causam problemas pulmonares e respiratórios que necessitam de internação. Em anos anteriores, tínhamos cerca de 550 pessoas internadas por essa causa. Neste ano, a média é superior a dois mil casos.

CC: Essas internações podem ser atribuídas ao coronavírus?
JGT: Acredito que parte importante delas tem, sim, relação com a Covid-19. Quando aumentarmos a testagem da população, vamos perceber que o número de casos de infecção por coronavírus é muito maior do que vemos hoje. Por isso, as próximas semanas serão críticas, cruciais. Se nós persistirmos, se perseverarmos no distanciamento social, vamos colher frutos lá na frente. Com as pessoas em casa, é possível reduzir a velocidade de transmissão do vírus, o que nos permite preparar o sistema de saúde para as internações que virão. Nesse momento, no Rio de Janeiro, cerca de 500 leitos de UTI, talvez mais, estão sendo montados no Maracanã, na UFRJ, na Fiocruz, na Barra da Tijuca. E precisamos de ao menos dez dias para colocar tudo para funcionar.

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