Alva Helena de Almeida

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Enfa. Mestre em Saúde Pública, Doutora em Ciências. Ativista pelo SUS público, de qualidade e SEM RACISMO. Integrante da Soweto Organização Negra.

Opinião

Entender a historiografia da enfermagem para compreender o presente

História de exclusão e apagamento de pessoas negras na enfermagem produzem consequências até os dias de hoje?

O cirurgião negro. Obra de Debret.
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Desde as primeiras organizações humanas era reconhecida a necessidade de cuidar para preservar a vida e protelar a morte. O exercício destas atividades foi imposto às mulheres, visto que os “cuidados” eram práticas do âmbito doméstico e inerentes à natureza “feminina”. Com a divisão social do trabalho, a prática de cuidar foi se transformando em ofício exercido por mulheres que detinham conhecimentos sobre o funcionamento do corpo, parto, amamentação e os efeitos das ervas. Elas preocupavam-se em transmitir seus conhecimentos a outras mulheres, sem os documentar.

Em torno do Século X, essas mulheres, consideradas sábias pelo povo, mas bruxas pela Igreja foram afastadas de seus fazeres os quais foram apropriados pelos homens, que passam a dominar métodos e técnicas de curar. Coube a eles prestar cuidados médicos aos membros das elites e o cuidado dirigido aos pobres era feito em parte pelos religiosos, práticos, parteiras e mulheres que cuidavam dos doentes. Há de se reconhecer assim, o processo inicial de desvalorização dos conhecimentos das mulheres em razão da dominância do gênero masculino, e uma representação hierarquizada, explicitando dupla desigualdade: a de gênero e a de classe.

Entre os séculos XVI e XIX têm destaque os enfrentamentos entre os conhecimentos médicos – científicos provenientes da dominância europeia e norte-americana e os saberes das artes de curar dos grupos africanos e indígenas. As mudanças de ordem social e política buscavam destruir os alicerces do período colonial. No Brasil a prática de cuidados exercida pelas mulheres indígenas e negras como parteiras, amas de leite, cuidadoras de doentes, velhos e crianças foram violentamente excluídos da história, e duplamente segregados. A condição feminina aliada ao traço negro afrodescendente desqualificava ainda mais a participação da mulher negra na história, frente à representação como escrava, praticante do sexo venal, doméstica, depreciada em seus padrões moral e de beleza.

Tal exclusão fundamentava-se nas teorias eugenistas: a eugenia seria uma forma de ‘higiene social’, a ‘solução’ para o desenvolvimento do país. Buscavam respaldo na biogenética, nos estudos de Galton, para excluir negros e deficientes de todos os tipos. Assim, apenas os brancos de descendência europeia povoariam a ‘nação do futuro’. Há de se reconhecer o determinante racial, o terceiro a implicar na desvalorização das práticas exercidas pelas mulheres.

A introdução do modelo de produção capitalista determinou o surgimento de cenários assentados na importação de modelos sanitários de combate às epidemias, e de conhecimentos norteadores dos processos educativos ‘formais’, em resposta às demandas emergenciais.

“Em 1890, fora criada a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (Alfredo Pinto), momento em que, sob atuação dos médicos,  guardas e serviçais da instituição passaram a ser educados a fim de atuar como enfermeiras (os)s para os hospícios, hospitais civis e militares, em substituição às irmãs de caridade e serventes.

A partir da década de 1920, através de ação conjunta entre o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) e a Fundação Rockefeller, teve início uma delimitação do campo de prática profissional retirando do cenário os visitadores sanitários, agentes leigos que assistiam à população, ao mesmo tempo em que regulamentava a enfermagem como profissão estratégica para a organização sanitária do país. Em 1923 ocorre a fundação da escola de enfermeiras do DNSP, posteriormente chamada D. Anna Nery.

Através de ações educativas, preventivas e de cuidado, a enfermagem atuaria na reorganização da saúde pública e do serviço hospitalar, ‘sob o olhar hierarquicamente superior do médico’. Em curto período de tempo, tanto os médicos como a população reconheciam a profissão nascente, e a colocavam sob a égide da ‘caridade’, do ‘conforto de espírito’ e das exigências morais. Na capa de um impresso de 1921, que veiculava um ‘Apelo às moças brasileiras’, encontram-se os ‘signos’ da ‘enfermagem moderna’:

“O Brasil precisa de enfermeiras e convida-vos ao desempenho do maior serviço que uma mulher prendada e educada pode prestar – a assistência inteligente e piedosa aos doentes”.

Os rituais de admissão e formação, movidos pela moral e os costumes se dariam sob o regime de internato, pois favoreceria o controle e a disciplina. Ao curso com duração de dois anos e quatro meses, espelhado no modelo americano, foi incluído um conteúdo de Psicologia, para ‘enfatizar o conhecimento dos instintos, emoções, a formação de hábitos’. Nos relatórios há referência ao coeficiente de inteligência das estudantes em associação direta à origem de classe. A posse do diploma da Escola Normal era pré-requisito e facilitava a triagem social l das candidatas.

Contudo, havia outro pré-requisito não formalizado: ser de ‘raça branca’. Barrou-se o acesso à profissão não apenas às mulheres das classes menos favorecidas, como também do contingente populacional majoritário de negros e mestiços. A urgência de garantir prestígio social para a enfermagem exigia critérios rigorosos que afastassem a lembrança de que as tarefas de cuidado e gestão dos espaços cabiam, nos hospitais, aos negros analfabetos e, posteriormente, aos visitadores de enfermagem sem nenhuma formação escolar.

Dito isso: em que medida esse passado implica nas condições da enfermagem no presente?

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