Saúde

Em busca da cura da covid-19

Um instituto, duas linhas de pesquisa, milhares de testes questionados e o Brasil na pandemia

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Com quase 2 milhões de casos confirmados e mais de 78 mil mortes pelo coronavírus em quatro meses de pandemia, os números oficiais, descontada a subnotificação, indicam o Brasil perto do chamado “platô”. Na cidade de São Paulo, o número de mortes cai há três semanas consecutivas. Sob autorização da prefeitura, academias, bares e restaurantes reabriram. O mesmo ocorre no Rio de Janeiro e em Manaus, igualmente arrasadas pela Covid-19 entre março e junho. O País segue com uma média superior a mil mortes por dia, agora mais prevalentes nas regiões Sul e Centro-Oeste.

Não quer dizer, porém, que a doença esteja sob controle. De acordo com o diretor-geral do Instituto Butantan, Dimas Covas, se o isolamento no estado mais populoso for mantido como está, com cerca de metade dos habitantes em casa, a taxa de contágio deverá se estabilizar de fato, ou atingir o valor “um” – cem pessoas infectadas estão transmitindo a doença a outras cem – entre setembro e novembro de 2020, o que significa que a curva de casos confirmados e óbitos só começará a declinar no próximo ano.

“Estamos tendo em torno de 300, um pouco mais de 300 óbitos por dia no estado de São Paulo, o que corresponde a um Boeing 747. É a explosão de um Boeing 747 por dia e pode ser que isso ainda se prolongue até 2021”, declarou, durante um debate virtual promovido pela entidade na terça-feira 14.

São Paulo é, de longe, o estado que mais tem realizado testes. Foram cerca de 280 mil até o mês passado, segundo dados do Sistema Informatizado de Vigilância Epidemiológica. Um dos grandes braços dessa iniciativa é a Fundação Butantan, entidade privada criada no fim dos anos 1980 que mantém o Instituto de mesmo nome, público e centenário.

Desde o início da crise sanitária, o Butantan investiu do próprio caixa cerca de 500 milhões de reais no combate à pandemia – a título de comparação, o governo paulista, segundo dados do Portal da Transparência, desembolsou até agora 2,66 bilhões de reais. Seu principal front de atuação são os testes. O instituto coordena uma plataforma de laboratórios para diagnóstico da Covid-19. No fim de março e início de abril, havia mais de 15 exames para Sars-CoV-2 represados aguardando análise pelo Instituto Adolfo Lutz, laboratório público até então responsável pelo processamento das amostras no estado. Para aliviar essa fila, o governador João Doria anunciou, em 2 de abril, a criação de uma rede de 50 laboratórios públicos e privados, coordenada pelo Butantan, para testar as amostras colhidas de pacientes com suspeita de Covid-19.

A Fundação Oswaldo Cruz fez um acordo para testar a vacina desenvolvida por cientistas italianos ligados à Universidade de Oxford

Foram adquiridos dois milhões de testes sorológicos. Esse tipo de testagem é visto com ressalvas por especialistas. Tem boa precisão para os positivos, mas ainda assim só acerta 50% dos casos negativos. Por isso, pode dar aos pacientes um falso passaporte de imunidade. Também foram adquiridos 1,3 milhão de kits dos testes RT-PCR, mais confiáveis. A fila, contudo, não cessou. A média de processamento do complexo é de 11,7 mil testes por dia. E o laboratório construído pela entidade às pressas para processá-los, segundo funcionários ouvidos sob anonimato por CartaCapital, opera muito aquém da capacidade.

Logo no início da pandemia, a Coreia do Sul promoveu uma testagem em massa de todos os infectados pela doença e daqueles que entraram em contato com os doentes. E os isolou. Conseguiu, dessa forma, manter a epidemia sob controle. No caso do Brasil, como a testagem massiva nunca se concretizou, sua efetividade exigiria um investimento astronômico. E é preciso entender como o resultado orienta a política de saúde. Um levantamento do epidemiologista Otávio Ranzani, com base em dados do Sistema Informatizado de Vigilância Epidemiológica (Sivep) mostra que, nos hospitais, 89% dos casos de Covid-19 confirmados em laboratório foram feitos por testes RT-PCR. Na média geral, cai para 39%. Falsos positivos ou falsos negativos podem, por exemplo, indicar uma taxa de mortalidade equivocada, distorcer o avanço da pandemia, provocando aberturas ou fechamentos apressados.

O Butantan também tem feito doações. Em abril, o governo paulista recebeu 575 mil testes do tipo PCR sul-coreanos importados pela fundação. O investimento chegou a 15,6 milhões de dólares. Também foram doados ao governo paulista 1,5 mil respiradores importados da Turquia, no valor de quase 29 milhões de dólares. Em maio, época da compra, o gasto somou 174 milhões. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo investiga esta última compra. De acordo com o laudo apresentado pela fiscalização do tribunal, houve sobrepreço comparado ao apurado pela Controladoria Geral da União para aquisições realizadas por estados e municípios. O tribunal quer saber ainda por que essa aquisição foi feita pela Fundação Butantan, entidade privada, para ser doada à Secretaria da Saúde, ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e à Prefeitura de São Paulo. Em junho, foram adquiridos mais 350 respiradores da mesma companhia por 6,9 milhões de dólares.

O Butantan rejeita as acusações. Diz a fundação, em nota, que a compra apresentava o menor preço e prazo de entrega compatível com o cenário epidemiológico. “A agilidade de entrega dos equipamentos permitiu a ampliação de leitos de UTI no SUS de São Paulo, primordial para garantir que nenhum cidadão com quadro grave de Covid-19 fique sem atendimento.” A utilização dos recursos da fundação – cujo principal cliente é o Ministério da Saúde e cuja transparência é há tempos questionada – de forma tão dispendiosa desperta desconfiança não só do TCE, mas de alguns interlocutores que acompanham de perto a instituição. “O Butantan é uma instituição de pesquisa, desenvolvimento e produção de vacinas e imunobiológicos. De repente, começa a comprar respirador, a fazer testes sem estrutura e histórico”, diz um ex-funcionários do alto escalão do instituto que preferiu não se identificar. Não é consenso. Para o pesquisador Lanfranco Troncone, diretor de Farmacologia do Butantan, é a oportunidade de mudar a relação entre governo e institutos de pesquisas. “Nossa missão é garantir a saúde pública. E estamos cumprindo o papel que o estado precisa neste momento. Do ponto de vista estratégico, é uma outra questão.”

O Butantan também tem contribuído com sua maior especialidade. Foi firmado recentemente um acordo com o laboratório chinês Sinovac para a transmissão da tecnologia para a produção de uma vacina que, caso dê certo, será distribuída ao SUS. A instituição fará testes da fase três. Nove mil voluntários poderão recebê-la. Quase 600 mil se apresentaram. Noutra ponta, a Fundação Oswaldo Cruz firmou parcerias para testar a vacina desenvolvida por cientistas italianos ligados à Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca. O processo é complexo, não dá para apostar em um único antígeno. As dificuldades para se chegar a uma vacina segura contra o novo coronavírus são inéditas, e o prazo, exíguo. Em entrevista à Rádio Gaúcha, Doria fez previsões: no cenário otimista, segundo ele, a vacina seria distribuída até o início do mês de dezembro. No cenário realista, entre dezembro e janeiro. E no cenário pessimista, em maio. A conferir.

Publicado na edição nº 1115 de CartaCapital, de 16 de julho de 2020

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