Demora em conter avanço do coronavírus e falta de testes aumentam subnotificação

Há 9,85 milhões de testes armazenados e que não podem ser usados por falta de reagentes

Foto: Alex Pazuello/Semcom

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Na segunda-feira 3, o diretor do programa de emergência da Organização Mundial da Saúde, Michael Ryan, afirmou que a crise no Brasil continua a ser “muito preocupante” e que países com altas taxas de transmissão precisam se preparar para uma grande batalha: “A saída é longa e requer um compromisso sustentado”, disse, antes de pedir uma “redefinição” de abordagem em algumas localidades. “Alguns países terão que dar um passo atrás agora e realmente dar uma olhada em como estão lidando com a pandemia dentro de suas fronteiras.”

Ryan não citou, mas o Brasil é um desses casos. Quase cinco meses desde o início da crise, o coronavírus continua a ceifar no País, em média, mil vidas por dia. É só a ponta do iceberg. Literalmente. A crise assemelha-se a um enorme bloco de gelo, com apenas os casos mais graves e os óbitos expostos. Ainda não se sabe, porém, qual é o tamanho da porção submersa.

 

A subnotificação deve-se, em grande parte, à demora do Estado em conter o avanço da doença rumo aos grotões. As equipes de Saúde da Família e os agentes comunitários – cerca de 260 mil servidores – foram deixados de lado. A chave para um rastreamento de contatos bem-sucedido é justamente a janela de três dias, quando o indivíduo foi exposto, mas ainda não transmite o vírus. Além disso, faltaram testes. Em Minas Gerais, estado campeão nacional em subnotificação, o governo estadual criou 1,6 mil leitos de terapia intensiva, 3,4 mil leitos de enfermaria e comprou mil respiradores. Por outro lado, as testagens têm sido baixíssimas. “É como acabar com as campanhas antitabagismo porque se ampliaram os hospitais de câncer”, ironiza o epidemiologista João Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP. O número de mortos por causas indeterminadas em Minas só começou a ser contabilizado em junho, quando o problema ganhou o noticiário. Até então, eram registrados a cada semana, em média, 1,2 mil mortes. Nas últimas três semanas, a média a cada sete dias foi de 115.

Entre o início de março e o fim de julho, o Ministério da Saúde distribuiu 5,3 milhões de testes RT-PCR para os Laboratórios Centrais de Saúde Pública. Menos da metade foi realizada. Há ainda outros 9,85 milhões de testes armazenados e que não podem ser usados por falta de reagentes. Sem uma quantidade adequada desse tipo de testes, considerado o “padrão ouro”, é difícil identificar os assintomáticos. Os testes de modalidade sorológica, menos eficazes, tiveram 8 milhões de unidades encaminhadas. Um pouco mais da metade, 4,4 milhões, foi aplicada. O fato de o Ministério da Saúde considerar os testes feitos nas duas modalidades na soma de casos confirmados põe em xeque a veracidade de dados como as taxas de letalidade e contágio. Também faltam dados sobre os testes comprados e concluídos pelos estados e municípios, que não têm sido disponibilizados de forma rotineira.


Outro gargalo são os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), cujo avanço está intimamente ligado ao coronavírus e indica sinal amarelo em relação à subnotificação. São classificados nessa categoria os pacientes que apresentaram sintomas de febre, tosse ou dor de garganta associados a falta de ar, baixa saturação de oxigênio no sangue ou dificuldade de respirar. Até o mês passado, o Brasil contabilizou 479.819 de SRAG hospitalizados. Destes, 49,4% foram confirmados como Covid-19. As estatísticas de morte nesses casos são as mais confiáveis. Mas não totalmente. Do total de 126.108 óbitos pela síndrome registrados até o fim de julho, 66,6% – ou seja, quase 84 mil – foram confirmados para Covid-19, outros 3.840 ainda estão sob investigação.

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O verdadeiro tamanho da crise talvez só seja conhecido ao final. Lotufo vai iniciar, em outubro, uma pesquisa para tentar medir o fenômeno. O objetivo é identificar todas as mortes por Covid-19 ou suspeitas da doença em São Paulo. Com esses dados em mãos, ele e sua equipe irão em busca do prontuário médico, ou da família do falecido. “Com isso, vamos ter uma noção, mais ou menos, do que aconteceu. É uma metodologia que dominamos bem.” Os resultados, contudo, só devem ser conhecidos dentro de um ano.

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