Saúde

De pires na mão

O governo federal sanciona a lei que regulamenta os gastos, mas não resolve o impasse do subfinanciamento do SUS

A política macroeconômica nacional parece desconhecer a importância do investimento na saúde pública. Foto: Raul Spinassé / Ag. A Tarde / AE
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Após mais de uma década de debates acalorados no Congresso, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o projeto que regulamenta a Emenda Constitucional 29.

Publicada no Diário Oficial da União na segunda-feira 16, a lei define claramente o que pode ou não ser considerado gasto em saúde. Estados e municípios ficarão impedidos de usar brechas legais para cumprir os seus porcentuais mínimos de investimento.

Antes, era comum governos estaduais e municipais classificarem como “gasto em saúde” despesas com aposentadorias, programas de alimentação, saneamento básico, limpeza urbana, assistência social e até mesmo obras de infraestrutura. A maquiagem nos dados retirava do sistema público de saúde ao menos 3 bilhões de reais por ano.

Apesar do avanço, o texto final da lei frustrou as expectativas de profissionais da saúde que defendiam um maior investimento estatal. O próprio ministro reconhece que a regulamentação não resolveu o problema da falta de recursos. “Ela foi um passo de uma caminhada que nós ainda temos de trilhar para debater o financiamento da saúde. Precisamos fazer com que o Brasil se aproxime de outros países da América Latina que investem mais”, afirmou Alexandre Padilha.

Aprovada em 2000, a Emenda 29 fixou um patamar mínimo de investimento das três esferas de governo no sistema público de saúde. Com a regulamentação, não houve alteração nos porcentuais.

A União continua obrigada a aumentar os gastos conforme a variação do PIB no ano anterior. Estados e municípios precisam empregar, respectivamente, 12% e 15% de suas receitas no setor. A nova lei prevê, porém, punições ao gestor público que investir menos que a meta ou inflar artificialmente os gastos em saúde com despesas de outra natureza. Os 3 bilhões de reais adicionais dão algum fôlego, mas são insuficientes para tirar o Sistema Único de Saúde (SUS) da situação de penúria.

Com a sexta maior economia do mundo, o Brasil ocupa o 72º lugar no ranking de gasto per capita em saúde. O investimento público no setor é de 317 dólares por brasileiro ao ano, segundo o último levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado em setembro de 2011.

O desempenho é 40% inferior à média internacional (517 dólares). Está a léguas de distância de vizinhos sul-americanos, como Uruguai e Chile, e é 20 vezes menor que o investimento feito pela Noruega e Mônaco, os líderes da lista, com despesas anuais superiores a 6,2 mil dólares por habitante.

Duas tentativas de aumentar os investimentos em saúde fracassaram no Congresso. A oposição barrou a proposta de criar um novo imposto, com recursos vinculados à saúde. E a bancada governista tratou de sepultar a sugestão do ex-senador Tião Viana (PT), atual governador do Acre, de obrigar a União a investir 10% de sua receita na área. Caso fosse aprovado o parecer de Viana, a União teria de desembolsar 45 bilhões de reais a mais por ano.

Algo que muitos governistas consideravam viável desde que fosse aprovada uma nova fonte de receita para o governo federal.

“O problema é que o debate sobre o financiamento da saúde não está sendo tratado com seriedade. Todos pregam mais gastos em saúde, mas poucos dizem de onde tirar o dinheiro”, alertava, antes mesmo de o projeto ser encaminhado ao Senado, o deputado Pepe Vargas (PT-RS), relator da Emenda 29 na Câmara.

O parlamentar era um dos principais entusiastas da Contribuição Social da Saúde (CSS). O tributo só seria cobrado de quem tem renda superior ao teto previdenciário, hoje fixado em 3.916 reais. Na prática, 95% da população estaria isenta. Apesar da alíquota baixa (0,1% sobre a movimentação financeira), isso seria o suficiente para garantir 19 bilhões de reais para a saúde.

O governo vetou 15 pontos do projeto de regulamentação, aprovado no fim de 2011 pelo Senado. Quase todos dizem respeito a questões técnicas que não alteram o objetivo central da lei. Mas ao menos um deles deve animar a oposição na tentativa de desgastar o governo: excluiu-se o artigo que previa “créditos adicionais” para a saúde na hipótese de revisão do valor nominal do PIB.

De acordo com a justificativa do governo, “a necessidade de constante alteração nos valores a serem destinados à saúde pela União pode gerar instabilidade na gestão fiscal e orçamentária”. O líder do DEM na Câmara, deputado ACM Neto (BA), prometeu, porém, reacender a disputa no Congresso: “Isso vai manter na pauta o debate sobre o financiamento da saúde, que continua insuficiente. Vamos fazer um cabo de guerra contra os vetos”.

A estratégia conta com o apoio do senador tucano Aécio Neves (MG), que prometeu envolver a bancada do PSDB na peleja.

Alheios à disputa entre os grupos políticos, os especialistas concordam num ponto: o Brasil perdeu uma oportunidade única de elevar os investimentos na combalida saúde pública. Nenhuma nova fonte de recursos foi criada, apenas disciplinou-se a forma como os gastos devem ser feitos – e fiscalizados.

“O Brasil gasta 2 reais por habitante a cada dia para fazer tudo o que está sob a responsabilidade do SUS, do combate ao mosquito da dengue às cirurgias de alta complexidade. É muito pouco. Gastamos em saúde cerca de 8% do PIB, mas 4,5% é investimento privado, somente o restante é público. Na Europa é diferente, os governos arcam com 75%, em média, dos gastos na área”, afirma o médico Nacime Salomão Mansur, superintendente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina.

“Na prática, o governo federal conseguiu congelar os seus gastos no setor.”

Para justificar o seu ponto de vista, Mansur lembra que cerca de 70% da arrecadação tributária no País fica com a União, mas ela é responsável por apenas 45% dos gastos públicos no setor.

“Os governos estaduais e municipais, que ficam com a menor fatia dos impostos, estão encarregados da maior parte da conta”, argumenta o especialista.

“Essa estagnação dos investimentos federais pode ter um efeito catastrófico, porque os gastos em saúde só tendem a aumentar, por causa do avanço da tecnologia e dos novos medicamentos. Para se ter uma ideia, os EUA investiam perto de 7% do PIB em saúde na década de 60. Hoje, eles gastam 17%. Detalhe: o sistema de saúde deles não é universal, como é o nosso, e exclui 46 milhões de americanos.”

A situação é especialmente preocupante porque mais de 90% da população brasileira depende, de forma exclusiva ou parcialmente, do SUS. E talvez nem fosse necessária a criação de uma nova fonte de receita para elevar os gastos no setor.

“O Brasil perde até 30 bilhões de reais no Imposto de Renda com isenções fiscais para tratamento médico, com os serviços prestados a clientes de planos de saúde que não são ressarcidos e com o pagamento de convênios médicos particulares para funcionários de estatais”, comenta Mansur. “Não consigo entender como sobram 30 bilhões para subsidiar a saúde privada, para uma parcela restrita da população, e faltam recursos para o sistema público.”

Após mais de uma década de debates acalorados no Congresso, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o projeto que regulamenta a Emenda Constitucional 29.

Publicada no Diário Oficial da União na segunda-feira 16, a lei define claramente o que pode ou não ser considerado gasto em saúde. Estados e municípios ficarão impedidos de usar brechas legais para cumprir os seus porcentuais mínimos de investimento.

Antes, era comum governos estaduais e municipais classificarem como “gasto em saúde” despesas com aposentadorias, programas de alimentação, saneamento básico, limpeza urbana, assistência social e até mesmo obras de infraestrutura. A maquiagem nos dados retirava do sistema público de saúde ao menos 3 bilhões de reais por ano.

Apesar do avanço, o texto final da lei frustrou as expectativas de profissionais da saúde que defendiam um maior investimento estatal. O próprio ministro reconhece que a regulamentação não resolveu o problema da falta de recursos. “Ela foi um passo de uma caminhada que nós ainda temos de trilhar para debater o financiamento da saúde. Precisamos fazer com que o Brasil se aproxime de outros países da América Latina que investem mais”, afirmou Alexandre Padilha.

Aprovada em 2000, a Emenda 29 fixou um patamar mínimo de investimento das três esferas de governo no sistema público de saúde. Com a regulamentação, não houve alteração nos porcentuais.

A União continua obrigada a aumentar os gastos conforme a variação do PIB no ano anterior. Estados e municípios precisam empregar, respectivamente, 12% e 15% de suas receitas no setor. A nova lei prevê, porém, punições ao gestor público que investir menos que a meta ou inflar artificialmente os gastos em saúde com despesas de outra natureza. Os 3 bilhões de reais adicionais dão algum fôlego, mas são insuficientes para tirar o Sistema Único de Saúde (SUS) da situação de penúria.

Com a sexta maior economia do mundo, o Brasil ocupa o 72º lugar no ranking de gasto per capita em saúde. O investimento público no setor é de 317 dólares por brasileiro ao ano, segundo o último levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado em setembro de 2011.

O desempenho é 40% inferior à média internacional (517 dólares). Está a léguas de distância de vizinhos sul-americanos, como Uruguai e Chile, e é 20 vezes menor que o investimento feito pela Noruega e Mônaco, os líderes da lista, com despesas anuais superiores a 6,2 mil dólares por habitante.

Duas tentativas de aumentar os investimentos em saúde fracassaram no Congresso. A oposição barrou a proposta de criar um novo imposto, com recursos vinculados à saúde. E a bancada governista tratou de sepultar a sugestão do ex-senador Tião Viana (PT), atual governador do Acre, de obrigar a União a investir 10% de sua receita na área. Caso fosse aprovado o parecer de Viana, a União teria de desembolsar 45 bilhões de reais a mais por ano.

Algo que muitos governistas consideravam viável desde que fosse aprovada uma nova fonte de receita para o governo federal.

“O problema é que o debate sobre o financiamento da saúde não está sendo tratado com seriedade. Todos pregam mais gastos em saúde, mas poucos dizem de onde tirar o dinheiro”, alertava, antes mesmo de o projeto ser encaminhado ao Senado, o deputado Pepe Vargas (PT-RS), relator da Emenda 29 na Câmara.

O parlamentar era um dos principais entusiastas da Contribuição Social da Saúde (CSS). O tributo só seria cobrado de quem tem renda superior ao teto previdenciário, hoje fixado em 3.916 reais. Na prática, 95% da população estaria isenta. Apesar da alíquota baixa (0,1% sobre a movimentação financeira), isso seria o suficiente para garantir 19 bilhões de reais para a saúde.

O governo vetou 15 pontos do projeto de regulamentação, aprovado no fim de 2011 pelo Senado. Quase todos dizem respeito a questões técnicas que não alteram o objetivo central da lei. Mas ao menos um deles deve animar a oposição na tentativa de desgastar o governo: excluiu-se o artigo que previa “créditos adicionais” para a saúde na hipótese de revisão do valor nominal do PIB.

De acordo com a justificativa do governo, “a necessidade de constante alteração nos valores a serem destinados à saúde pela União pode gerar instabilidade na gestão fiscal e orçamentária”. O líder do DEM na Câmara, deputado ACM Neto (BA), prometeu, porém, reacender a disputa no Congresso: “Isso vai manter na pauta o debate sobre o financiamento da saúde, que continua insuficiente. Vamos fazer um cabo de guerra contra os vetos”.

A estratégia conta com o apoio do senador tucano Aécio Neves (MG), que prometeu envolver a bancada do PSDB na peleja.

Alheios à disputa entre os grupos políticos, os especialistas concordam num ponto: o Brasil perdeu uma oportunidade única de elevar os investimentos na combalida saúde pública. Nenhuma nova fonte de recursos foi criada, apenas disciplinou-se a forma como os gastos devem ser feitos – e fiscalizados.

“O Brasil gasta 2 reais por habitante a cada dia para fazer tudo o que está sob a responsabilidade do SUS, do combate ao mosquito da dengue às cirurgias de alta complexidade. É muito pouco. Gastamos em saúde cerca de 8% do PIB, mas 4,5% é investimento privado, somente o restante é público. Na Europa é diferente, os governos arcam com 75%, em média, dos gastos na área”, afirma o médico Nacime Salomão Mansur, superintendente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina.

“Na prática, o governo federal conseguiu congelar os seus gastos no setor.”

Para justificar o seu ponto de vista, Mansur lembra que cerca de 70% da arrecadação tributária no País fica com a União, mas ela é responsável por apenas 45% dos gastos públicos no setor.

“Os governos estaduais e municipais, que ficam com a menor fatia dos impostos, estão encarregados da maior parte da conta”, argumenta o especialista.

“Essa estagnação dos investimentos federais pode ter um efeito catastrófico, porque os gastos em saúde só tendem a aumentar, por causa do avanço da tecnologia e dos novos medicamentos. Para se ter uma ideia, os EUA investiam perto de 7% do PIB em saúde na década de 60. Hoje, eles gastam 17%. Detalhe: o sistema de saúde deles não é universal, como é o nosso, e exclui 46 milhões de americanos.”

A situação é especialmente preocupante porque mais de 90% da população brasileira depende, de forma exclusiva ou parcialmente, do SUS. E talvez nem fosse necessária a criação de uma nova fonte de receita para elevar os gastos no setor.

“O Brasil perde até 30 bilhões de reais no Imposto de Renda com isenções fiscais para tratamento médico, com os serviços prestados a clientes de planos de saúde que não são ressarcidos e com o pagamento de convênios médicos particulares para funcionários de estatais”, comenta Mansur. “Não consigo entender como sobram 30 bilhões para subsidiar a saúde privada, para uma parcela restrita da população, e faltam recursos para o sistema público.”

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