Política
De brecha em brecha
Crescem os números de casos de Covid-19 entre crianças e adultos que não tomaram todas as doses da vacina


A sensação é de impotência, sentimento horrível, porque estamos lidando com um vírus novo e não sabemos o que realmente ele causa em um bebê indefeso, que não fala. A gente não sabe nem o que ele está sentindo.” A declaração revela a angústia da administradora Priscila Farias, mãe de Felipe, de 5 meses, diagnosticado com Covid-19 no fim de outubro. Depois de um dia inteiro com febre de 39 graus, a criança fez o teste e confirmou a contaminação pelo Coronavírus. Felipe faz parte de uma estatística crescente nas últimas semanas, em decorrência do avanço da doença, a partir do surgimento de uma sublinhagem da Ômicron, a BQ.1. Os principais alvos dessa subvariante são os menores de 4 anos e quem não completou o ciclo de vacinação, ou seja, aqueles que não tomaram as quatro doses. Até o momento, os sintomas para quem está imunizado têm sido leves, mas os especialistas temem o início de uma nova onda da pandemia no País.
Segundo dados das secretarias estaduais de Saúde, nas duas primeiras semanas de novembro, os casos de Covid-19 aumentaram 71% e aos menos três mortes podem ser creditadas à nova variante. Na madrugada do domingo 6, o Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco (Cisam), maternidade de referência no Recife, registrou um surto da doença entre bebês prematuros. Sete foram diagnosticados, um em estado grave. “Um bebê apresentou apneia. Foi encaminhado à unidade de cuidados intensivos e foram feitas várias condutas no sentido de melhorar o estado geral dele. Um dos exames de sangue detectou uma infecção que poderia ser causada por vírus, aí a gente lançou mão de testá-lo para Covid e deu positivo”, explica Benita Spinelli, diretora-executiva do Cisam. O surto foi controlado e alguns bebês já receberam alta.
Aprovada desde setembro pela Anvisa, só agora o Ministério da Saúde começou a liberar as doses de vacinas para bebês a partir de 6 meses e, mesmo assim, apenas para aqueles com algum tipo de comorbidade e para indígenas. Em outubro, durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro voltou a relativizar os riscos da Covid-19 e fez um discurso no qual negava os efeitos da doença em crianças. Chegou a dizer que, praticamente, não há registro de mortes nessa faixa etária. “Alguém viu alguma criança morrer de Covid? É coisa rara. O que acontecia nesse caso é que chegava uma criança no hospital com traumatismo craniano que caiu da bicicleta e alguns hospitais, maldosamente, botavam na UTI de Covid”, declarou na ocasião. Segundo as entidades, foram registradas mais 12 mil hospitalizações de crianças infectadas neste ano, com mais de 400 mortes confirmadas. Em 10 de novembro, o ministério começou a enviar aos estados as vacinas Pfizer Baby, direcionadas a quem tem entre 6 meses e 2 anos e 11 meses. Nesta primeira etapa terão prioridade pacientes com diabetes, hipertensão arterial e pulmonar, doenças cardiovasculares, neurológicas crônicas e renais, imunocomprometidos, obesidade, Síndrome de Down, hemoglobinopatias graves e cirrose hepática. Em algumas cidades, como São Paulo, as prefeituras criaram um serviço chamado de xepinha, por meio do qual crianças sem comorbidades poderão ser cadastradas para receber o imunizante remanescente.
Arthur Chioro, ex-ministro: “É fundamental compreender que a pandemia não acabou”
A vacinação para as crianças é composta de três doses, a segunda aplicada depois de três semanas da primeira e a terceira oito semanas após a segunda. Entre 3 e 4 anos, a criança deve tomar a Coronavac e, a partir de 5 anos, pode tomar tanto Pfizer quanto Coronavac. O problema é que em alguns estados, entre eles Pernambuco e Minas Gerais, o imunizante para essa faixa etária está em falta. Pelas redes sociais, o prefeito do Recife, João Campos, do PSB, cobrou as vacinas ao Ministério da Saúde: “É um absurdo ter de suspender a vacinação desse grupo por falta de planejamento nacional na aquisição e distribuição de vacinas”.
A disseminação de uma sublinhagem da Ômicron não se deu apenas por conta da não vacinação em crianças. É grande o número de adultos que não completaram o ciclo vacinal. Quase 70 milhões de brasileiros não tomaram a terceira dose, equivalente à primeira dose de reforço. “Temos uma constatação absolutamente clara de que a pandemia nunca acabou, que a Covid-19 continua presente como um risco, como uma ameaça, e merece toda a atenção dos cientistas por meio da avaliação genômica, como vem acontecendo desde o surgimento da primeira cepa, identificando o potencial de variação. É fundamental compreender que a pandemia não acabou”, explica o médico sanitarista Arthur Chioro, professor da USP e ex-ministro da Saúde. O Ministério da Saúde publicou há poucos dias uma nota técnica, na qual orienta a população a retomar os cuidados iniciais, como o uso de máscara em locais fechados e higienização com álcool em gel, além de evitar aglomerações.
A Sociedade Brasileira de Infectologia também publicou um documento com o intuito de convocar a população a completar a vacinação e cobrou do Ministério da Saúde a universalização do imunizante, inclusive para todas as crianças, independentemente de terem comorbidade ou não. A entidade pressiona o governo a implantar a vacina bivalente de segunda geração, em uso nos Estados Unidos e outros países, que alcança as novas linhagens da Ômicron, sob o risco de acarretar um novo pico da Covid-19 no Brasil. Está em análise, na Anvisa, uma vacina bivalente que alcança as variantes da Ômicron. “Podemos estar diante de uma nova onda, assim como na Europa e nos EUA. Circulam algumas variantes da Ômicron e entre elas a mais frequente é a BQ.1, que tem grande capacidade de transmissão, com fator de replicação maior que 1. As atuais vacinas não protegem da doença, mas entre aqueles com o esquema completo tem sido evidenciada a diminuição de 26% dos casos graves e da mortalidade”, explica Bernadete Antunes, professora de Saúde Coletiva da Universidade de Pernambuco. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De brecha em brecha”
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