Saúde

“Campanhas de saúde sexual são desonestas e ineficazes”, avalia infectologista

No carnaval, governo aposta em medo e conservadorismo para dialogar sobre ISTs e gravidez precoce – uma estratégica historicamente falha

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Carnaval, a época do ano em que muitos brasileiros esquecem os problemas e saem às ruas para celebrar a nossa cultura. Definido pela igreja como a “festa da carne”, o feriado geralmente é comemorado com muita música e bebida alcoólica, o que proporciona um ótimo cenário para beijar e transar.

Ciente disso, o governo federal aproveita a ocasião para lançar suas campanhas de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e gravidez indesejada. Neste ano, porém, a gestão do ex-capitão Jair Bolsonaro tem optado pelo caminho da igreja e vem apostando no medo e na abstinência como prevenção.

A estratégia começou ainda em 2019. Em outubro, o Ministério da Saúde lançou um vídeo em que atores jovens são questionados se já haviam visto algum sintoma de ISTs. Diante da resposta negativa, eles buscam fotos dessas infecções e reagem com espanto e nojo. No fim, um narrador reforça o quão ruim pode ser ficar doente e os personagens recomendam o uso da camisinha.

Em janeiro deste ano, outra pauta sexual também recebeu tratamento conservador. Na campanha “Adolescência primeiro, gravidez depois”, que prega a abstinência sexual, jovens aparecem fazendo atividades compatíveis com a idade enquanto a narração, em tom de suspense, reforça que “gravidez não combina com adolescência e traz consequências para toda a vida”.

Já neste carnaval, a estratégia em tom ameaçador. Sem citar outras maneiras de prevenção que poderiam criar uma ideia de que o sexo está “liberado”, o Ministério da Saúde lançou uma campanha pelo uso da camisinha com uma linguagem dita jovem e o slogan “Usar camisinha é uma responsa de todos”.

De fato, a camisinha é o melhor jeito de se prevenir contra as ISTs e gravidez, mas não a única. Para o médico infectologista Rico Vasconcelos, da Universidade de São Paulo (USP), o governo tem errado na produção de suas campanhas.

“Não funciona. O Brasil é a maior prova disso: enquanto repetíamos, nos anos 90, que era preciso usar camisinha, botando medo na cabeça das pessoas, a epidemia do HIV cresceu na maior velocidade da história”, explica Rico, que comanda os estudos sobre a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) no Brasil, um tratamento para evitar que as pessoas se infectem com o vírus do HIV.

Além da PrEP, o SUS disponibiliza também a PEP (Profilaxia Pós-Exposição), mas o governo optou em não falar sobre o assunto em suas campanhas recentes. Rico “É falando sobre sexualidade que vamos conseguir bons resultados nas campanhas, não silenciando o debate. Não estimulando, mas capacitando o jovem a gerenciar sua vida da melhor maneira possível”.

CartaCapital: Como você avalia as campanhas de prevenção de ISTs e gravidez precoce do governo atual?

Rico Vasconcelos: É um desserviço para o Brasil porque não comunica o que precisa ser comunicado. Essa campanha é desonesta com a população porque fazer um direcionamento unificado da comunicação de prevenção não funciona. Dizer “use camisinha e ponto” ou “use camisinha e seja abstinente”, por exemplo, são coisas que não funcionam.

O Brasil é a maior prova disso: enquanto repetíamos, nos anos 90, que era preciso usar camisinha, botando medo na cabeça das pessoas, a epidemia do HIV cresceu na maior velocidade da história. Em outras palavras, estamos gastando dinheiro público em uma estratégia que a gente sabe que não vai funcionar, que é a do medo.

CC: Como seria uma campanha eficaz? O que deve mudar?

RV: O que funciona, dentro da prevenção, é capacitar a pessoas para gerenciar a sua própria vida sexual. É fazer com que ela entenda o que gosta sexualmente, mostrar as vulnerabilidades disso e apresentar as ferramentas disponíveis para ter uma vida sexual de qualidade, minimizando os desfechos negativos associados a isso.

Os anticoncepcionais são um bom exemplo disso. Há mulheres que se dão bem com a camisinha, outras nem tanto. Tem mulheres que têm segurança com a pílula, outras não. Com o DIU, a mesma coisa. Portanto, achar que uma estratégia única de prevenção vai funcionar é um grande erro, mas os governos ainda insistem nisso. É claro que não tínhamos muitas opções antes, mas agora temos.

Ficar repetindo somente “use camisinha” é insistir em uma estratégia que não deu certo. Por isso, o mais eficaz seria investir em campanhas de empoderamento e capacitação, oferecendo às pessoas o conhecimento mais atual disponível e permitir que ela, sozinha, gerencie sua vida sexual, minimizando os riscos de gravidez e ISTs.

Mais do que adotar uma atitude prescritiva, o legal seria dialogar com as pessoas. Mais do que falar “use camisinha”, é descobrir se elas gostam de utilizar camisinha. Mais do que falar “use a PrEP”, é descobrir se querem usar a PrEP.

Se adesão é algo fundamental para a eficácia de uma campanha, nada melhor do que dar à pessoa a possibilidade de escolher o que funciona na sua própria vida. E isso você não faz com medo, você não faz com uma arma na cabeça. Só se faz com o diálogo aberto e franco.

E o mais importante: é falando sobre sexualidade que vamos conseguir bons resultados nas campanhas, não silenciando o debate. É falando sobre sexo, sobre diversidade sexual, sobre sexo na adolescência! Não estimulando, mas capacitando o jovem a gerenciar sua vida da melhor maneira possível.

CC: Para encerrar, tem alguma dica para se prevenir no Carnaval?

RV: Tenha em mente todos os componentes da prevenção combinada: camisinha, PEP, PrEP, anticoncepcional e pílula do dia seguinte. É bom saber também que, se uma pessoa vive com HIV e está indetectável, ela não transmite o vírus. Ela não deve ser uma fonte de pânico, caso aconteça algo.

Se uma pessoa está tomando a PrEP direitinho, ela tem poucas chances de ser infectado com o HIV. Tendo essa informação, e associando isso ao uso da camisinha, dá para ter diferentes possibilidades de sexo com qualidade.

Sexo oral também transmite ISTs, principalmente as bacterianas como sífilis, gonorreia e clamídia. Justamente por isso, quando passar o carnaval, é legal repetir os exames para ver se não houve alguma infecção. Vale lembrar também que a falta de sintoma não significa que não exista IST. Existem doenças totalmente assintomáticas e por isso é necessário repetir os testes sempre que possível.

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