Saúde

Brasileiras relatam drama para realizar abortos durante a pandemia

Para conseguir interromper a gravidez, muitas mulheres viajam para outros países, onde a prática é legalizada

Foto: Arquivo/Fernando Frazão/Agência Brasil
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*Por Sarah Cozzolino, correspondente da RFI no Brasil

O Brasil só autoriza o aborto em casos de violências sexuais, anencefalia do feto ou risco para a vida da mãe. Para conseguir interromper a gravidez, muitas mulheres viajam para outros países, onde a prática é legalizada. Com a pandemia de coronavírus e o fechamento das fronteiras, a situação ficou bem mais difícil.

Mariana* tem direito de abortar legalmente no Brasil. Ela engravidou depois de ter sido estuprada, logo antes da pandemia. Mas no Pará, onde ela mora, os hospitais já estavam em colapso por causa do coronavírus.

Um levantamento feito pela ONG Artigo 19, em parceria com a Revista AzMina e a Gênero e Número, para identificar o serviço de aborto legal no Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia, aponta que só metade desses serviços estão funcionando do país.

“O meu vizinho morreu por falta de leito. As pessoas que estão com covid não têm atendimento… Então fiquei muito preocupada”, ela lembra. Mariana conta que nessa situação crítica, ela pensou em se matar. Ela mora numa pequena cidade, no interior do Pará. “Um lugar com muito machismo e muito preconceito, Não falei pra ninguém que queria abortar, nem pra minha irmã”, explica.

Foi pesquisando na internet que Mariana encontrou a página “Milhas pela vida das mulheres”, uma ONG brasileira que ajuda as mulheres a abortar de forma legal no Brasil ou a realizar viagens para países vizinhos onde o aborto é legalizado nos casos em que não é permitido pela legislação brasileira.

No caso de Mariana, ela precisou viajar para São Paulo para realizar o procedimento. Ao chegar na cidade, no entanto, soube que tudo tinha sido adiado porque a médica que iria fazer a operação havia contraído o coronavírus. Mas, depois de duas semanas, Mariana conseguiu abortar.

Voos cancelados

Graças a doações, a ONG recolhe “milhas” para financiar voos, e assim permitir que mulheres com dificuldades financeiras consigam pagar uma passagem para abortar fora do país.

Criada em 2019, a ONG conseguiu organizar cerca de vinte voos em alguns meses, principalmente para a Colômbia. Mas no final do mês de março, as fronteiras fecharam por causa da pandemia. Juliana Reis, presidente da ONG, tinha planejado um voo com nove mulheres. “São dramas, histórias épicas. Tivemos casos de mulheres que queriam atravessar a Amazônia a pé para entrar na Colômbia”, ela conta.

Abortos clandestinos 

Paula* estava grávida de dez semanas quando conseguiu abortar clandestinamente no interior da Bahia. Entre o cancelamento do voo e o aborto, foram seis semanas de desespero.

Paula tomou vários comprimidos de Misoprostol, além de vários chás com supostas propriedades abortivas, sem nenhum efeito. A mulher de 35 anos já tem uma filha de 15 anos, e engravidar de novo não estava nos planos. “Sempre tomei anticoncepcional, mas tive que tomar um antibiótico, e fiquei grávida porque interferiu na contracepção”, explica Paula. Infelizmente, ela não sabia dessa possibilidade de interferência, nem estava mencionado na bula do remédio.

Ela finalmente achou um médico que aceitou praticar o aborto. “Foi muito doloroso, tanto fisicamente como psicologicamente. Senti muita culpa, muita tristeza”, ela lembra.  Há algumas semanas, Paula começou a ter um acompanhamento psicológico, e diz se sentir melhor. “Eu acho que o Brasil está muito atrasado nessa questão”, lamenta.

Hipocrisia da sociedade

Abortar é um risco muito grande para a maioria das mulheres. Mesmo se for ilegal, uma mulher pode conseguir abortar com segurança pagando muito dinheiro, afirma Juliana Reis. Por outro lado, mulheres pobres podem perder o útero, ser presas, ou até morrer tentando abortar.  “E as mais vulneráveis são as mulheres negras, pobres, e de periferia”, afirma Juliana.

Segundo estimativas da PNA (Pesquisa Nacional de Aborto), do Ministério da Saúde, e de outras entidades, entre 500 mil e um milhão de brasileiras abortam cada ano, e só 1.600 abortam de forma legal.

Mesmo quando uma mulher se encaixa nas condições para conseguir abortar legalmente, muitas vezes ela é vítima de preconceitos. Várias vezes, a ONG  “Milhas” teve que denunciar situações de abuso por parte da equipe médica, dos psicólogos, ou dos trabalhadores sociais no procedimento do aborto.

“Tem muitas experiências de revitimização. Às vezes a mulher é obrigada a contar até cinco vezes o que aconteceu, quase como se fosse uma investigação policial, para que ela cometesse um erro ou caísse em contradição”, lamenta Juliana. Ela denuncia a hipocrisia da sociedade brasileira sobre a questão do aborto.

 

Quando Juliana ajuda uma mulher, tenta estabelecer um perfil e começa a fazer perguntas como idade, diploma, região onde vive, religião, posição sobre o aborto… Dados que ajudam a constituir uma “radiografia dessa hipocrisia”, segundo ela. Juliana calculou que quatro mulheres entre dez chegam com a opinião que o aborto não deve ser legalizado no Brasil.

Foi o caso de Alice, mulher evangélica que era completamente contra o aborto. “Eu estive no lugar de tantas outras mulheres e senti o peso dessa situação. As negações, frustrações, o desespero, a depressão… A sensação de impotência, de não ter escolha sobre o seu próprio futuro, de não ser respeitada, isso é tão frustrante”, conta Alice.

Ao ver que o seu voo para Colômbia foi cancelado, Alice começou um episódio depressivo: “Foi como se eu perdesse o chão, que o mundo desabasse na minha cabeça.” Ela explica que a Juliana lhe ajudou a perceber que ela se encaixava nas leis brasileiras: engravidou porque o parceiro tirou a camisinha sem seu consentimento. Mas Alice não sabia que isso podia ser considerado  um abuso sexual.

Para todas as mulheres contatadas, abortar foi um episódio muito difícil, tanto fisicamente como psicologicamente. Muitas delas não contaram para ninguém. Numa mensagem de WhatsApp, Mariana chora, dizendo com um tom indignado: “Tem mulheres que morrem tentando abortar, de forma clandestina. Crianças são abandonadas… A gente precisa falar desse tema!.”

*Todos os nomes foram modificados a pedido das entrevistadas

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