Política

“Brasil falhou em todos os aspectos na resposta à pandemia”

‘Como é possível naturalizar uma catástrofe deste porte?’, questiona a especialista da USP, que analisa a saúde e a imagem do País lá fora

Ativistas homenageiam vítimais fatais do coronavírus em praia no Rio de Janeiro. Foto: CARL DE SOUZA/AFP
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Catástrofe, vexame, caos, desastre, crime. É extensa a lista de adjetivos usados pela advogada e professora de ética em saúde pública, Deisy Ventura, para tentar definir a gestão sanitária da crise da Covid-19 no Brasil. O país, que registra mais de 1 milhão de casos e 60 mil mortes, se tornou um dos epicentros da expansão do coronavírus desperdiçando, segundo a especialista, a oportunidade de ser um exemplo mundial de combate a essa pandemia.

“O Brasil tinha tudo para ser uma das melhores respostas do mundo. Temos algo que é ambicionado pelo mundo que é a cobertura universal de saúde. Somos o único país em desenvolvimento que tem um sistema de acesso universal e gratuito com uma grande extensão e capilaridade em todo o território nacional. Bastaria ter um investimento pontual significativo dentro deste sistema já estruturado”, explica Deisy, em referência ao Sistema Único de Saúde (SUS).

“O povo brasileiro sabe pouco, mas o SUS é uma referência internacional. Temos excelência em inúmeros programas, estratégia de saúde da família, agentes comunitários, programas de imunização e de respostas a doenças como o HIV/Aids. O Brasil é muito respeitado no campo da saúde global”, diz.

Apesar do impacto no sistema da decisão política de limitar os gastos públicos a partir de 2017, havia tempo para o país adotar tomar medidas acertadas para combater o coronavírus, segundo ela.

“A pandemia encontrou o SUS enfraquecido em diversos de seus fundamentos. Ter investido em pontos que estavam fragilizados, inclusive em vigilância de saúde teria nos dado uma capacidade de resposta”, acredita.

Brasil “teve tempo para se preparar”

Segundo Deisy Ventura, o Brasil teve tempo para se preparar. A OMS declarou o estado de emergência sanitária em 30 de janeiro e Brasil país decretou estado de emergência nacional de saúde pública em 3 de fevereiro, e três dias depois já havia uma nova lei de quarentena. “O Brasil começou bem, e se perdeu de uma forma que não vamos aceitar nunca”, lamenta.

Professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora do doutorado de Saúde Global e Sustentabilidade, Deisy não se conforma com os altos índices de infecção registrados em todo o país.

“É um imenso fracasso. Para quem é da área de saúde é até difícil de assimilar. Como é possível naturalizar uma catástrofe deste porte? É uma ignomínia, uma mancha na história da saúde pública brasileira”, acrescenta, indignada.

“A situação é caótica”

Deisy Ventura tem uma trajetória profissional marcada por estudos e especialização em direito e relações internacionais, com passagens pela Universidade Sorbonne de Paris e experiência na secretaria do Mercosul. Ela orientou sua carreira também para pesquisar e dar aulas sobre políticas de saúde pública. Com sua bagagem, tem muita clareza ao identificar as razões do que considera um imenso fracasso.

“No momento em que todos deveriam estar unidos, instalou-se uma guerra entre governo federal e governos locais. Um dos problemas foi que mesmo em nível regional, governos estaduais adotaram medidas quarentenárias, de resposta e até instalação de hospitais de campanha e de comunicação, mas não foram seguidos por muitos prefeitos que se alinharam ao discurso do presidente Bolsonaro. Há uma grande confusão entre as esferas federativas. Prefeitos, alinhados com o governo federal, resistem a ações de governadores. A situação é caótica”, diz.

 

“Não tem nada subjetivo. O presidente declarou guerra aos governadores e aos prefeitos que adotaram medidas quarentenárias, quando essas medidas, baseadas em evidência científicas, foram fundamentais em muitas cidades e estados. E agora estamos pagando um preço altíssimo pela abertura precipitada em algumas cidades e estados que custam muitas vidas”, acrescenta.

Uma das consequências dessa guerra aberta resultou em um desmonte do ministério da Saúde. Segundo Deisy, grandes técnicos de saúde pública foram ejetados, estavam no ministério independentemente de ideologia e de partidos. O trabalho técnico, de coordenação, formação e captação e de distribuição de recursos ficou comprometido, especialmente com a chegada de dirigentes sem experiência no setor.

“Hoje temos militares sem nenhum conhecimento da área, pessoas que sequer sabemos quem são na área da saúde pública. Eles não conhecem o SUS nem a realidade brasileira na área da saúde, que é bastante complexa, não dominam os mecanismos de financiamento da saúde pública, e estão promovendo um fiasco, um vexame. Como está custando muitas vidas, sofrimento, recursos públicos, vidas de profissionais de saúde que levamos décadas para formar, é muito mais que um fiasco ou um vexame. É uma catástrofe, um crime, uma carnificina, que poderia ser evitada.”, desabafa.

Comunicação falha

Ao lado desses dois fatores, de guerra entre autoridades e de desmonte do Ministério que é um dos pilares do sistema de saúde pública, Deisy enxerga um terceiro aspecto que contribui para este cenário desolador: o da falta da estratégia de comunicação de risco durante uma emergência.

“Quando a gente tem uma doença infectocontagiosa com potencial de propagação, a gente precisa saber falar para as pessoas, é preciso explicar de forma clara até as incertezas científicas que se tem sobre a emergência que está se desenrolando. A Covid-19 era uma doença nova, que não tem tratamento específico e te propagação vertiginosas. A comunicação é essencial”, afirma.

Deisy destaca algumas medidas adotadas que foram seguidas pela população imediatamente, contribuindo no começo para uma resposta eficiente. “A população é inteligente. Tivemos uma adesão ainda na época quando as medidas não eram tão rigorosas. Mas com a partidarização, a ideologização da pandemia, as pessoas ficaram confusas”, relata.

Foto: Reprodução

“Falhamos na testagem, falhamos na vigilância, falhamos na proteção social, pois quando optamos por medidas restritivas temos que dar respostas de proteção social. Muita gente entendeu que era preciso ficar em casa, mas não tem como ficar em casa, quando tem que se escolher entre morrer de fome ou se arriscar a morrer com a Covid”.

Ela cita que em outros países, como a França, a adoção de medidas de confinamento veio acompanhada de anúncios de isenção de taxas, isenção de impostos e de acesso a benefícios sociais que visavam a sobrevivência das pessoas. “No Brasil tivemos a adoção de quarentenas, mas foi implementada de maneira desastrosa”, diz, lembrando das imensas filas nos bancos para receber ajudas sendo que muitos que precisavam não receberam e outros que não tinham necessidade foram contemplados. “Falhamos em todos os aspectos de uma resposta à pandemia”, constata.

Responsabilidade do governo federal

Sua maior crítica visa o governo federal e o presidente Bolsonaro, que relativizou a importância da doença e perdeu uma grande oportunidade de liderar também regionalmente uma resposta eficiente ao coronavírus.

“O Brasil é visto como uma bomba relógio e uma ameaça para seus vizinhos”, diz, criticando além da falta de coordenação, ações efetivas do chefe de Estado e sua postura. “Houve um discurso negacionista e tentativas de encampar campanhas para pregar o negacionismo, tentando enganar o povo sobre o que é pandemia. Foi o noticiário que mais uma vez impediu a circulação dessas campanhas. O governo federal agiu contra a saúde pública”, denuncia.

“Faltou coordenação internacional, regional e houve uma ação que eu considero criminosa de tentar disseminar o negacionismo, notícias falsas, o uso precoce da cloroquina. Mesmo do ponto de vista populista, eleitoral, a escolha poderia ter sido a da vida. Mas foi a escolha da morte”, critica.

As medidas defendidas por Bolsonaro e seu discurso de não frear a atividade econômica para não prejudicar a população são contestadas com veemência pela especialista.

“Do ponto de vista econômico, é uma burrice não proteger a saúde das pessoas. Isso tem um custo enorme”. O que está se configurando é uma política de extermínio das populações mais vulneráveis, dos negros, dos moradores de periferias. Para esses governantes que não adotaram medidas quarentenárias, as vidas dessas populações parecem que não valem nada”, afirma.

Deisy defende ainda que os responsáveis por essa gestão que considera catastrófica sejam julgados dentro e fora do país. O governo brasileiro é alvo de várias denúncias como na comissão de direitos humanos na Organização dos Estados Americanos (OEA) e o presidente Bolsonaro é investigado no Tribunal Internacional de Haia por crime contra a humanidade relacionado com sua gestão da pandemia.

“Vivemos um momento de enfraquecimento do multilateralismo, que pode dificultar a celeridade e a capacidade de execução de eventuais resultados dessas iniciativas jurídicas que foram promovidas. Mas temos uma grande esperança de que essas pessoas sejam responsabilizadas internacionalmente e nacionalmente. Temos provas abundantes do que foi feito, até com vídeos, e tentativas de emplacar medidas provisórias como a que de nomear reitores com intervenção nas universidades durante a pandemia”, exemplifica.

Deisy também comenta as mais de 3 mil ações encaminhadas ao STF e também processos encaminhados às instâncias jurídicas estaduais e regionais contra ou favor de medidas do lockdown. “O Brasil vive, infelizmente é triste dizer isso, e mais ainda viver isso, porque as pessoas estão morrendo, uma situação lamentável, de confusão, de conflito. Espero que essa responsabilização se dê no plano interno e externo, igualmente”, conclui.

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