Saúde

Brasil entra no período crítico da pandemia com escalada de casos

O País desperdiçou todas as chances para evitar a tragédia que se avizinha. Pior, encontra-se no escuro

Foto: THOMAS SAMSON/AFP
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Quando o Brasil superou a marca oficial de 3 mil mortes por covid-19, na quinta-feira 23, muitos profissionais que atuam na linha de frente do combate à pandemia não conseguiam disfarçar o desânimo. A despeito de todos os esforços da brigada da saúde, os adeptos da seita messiânica que despreza a ciência e cultua mitos pareciam numerosos e barulhentos demais para serem vencidos. Favorecido pelo clima e pela distância de 16 mil quilômetros da China, o País desperdiçou todas as chances para evitar a tragédia que se avizinha. Pior, encontra-se no escuro, sem uma estimativa confiável do número real de infectados, pois apenas os casos mais graves e aqueles que evoluem para óbito são testados.

Por ora, a doença não dispõe de tratamento específico nem de vacina. Diversos países estão na corrida para encontrar uma forma eficaz de imunizar a população, mas levará meses para isso se tornar realidade. Uma grande esperança é a vacina desenvolvida por uma empresa italiana, a Advent-IRBM, em parceria com pesquisadores da Universidade de Oxford, que começará a ser testada em 550 voluntários de Londres, no fim de abril. Ainda assim, se os estudos clínicos apresentarem resultados satisfatórios, ela só estará disponível na Europa a partir de setembro. Até lá, os brasileiros terão de aguentar o tranco com a precária estrutura mobilizada pelo governo no combate à pandemia. Não foi por falta de tempo.

O primeiro alerta das autoridades chinesas à Organização Mundial da Saúde ocorreu pouco antes da virada do ano. No início de fevereiro, a covid-19 entrou com força na Europa. Em março, quando a OMS reconheceu a existência de uma pandemia, apenas 52 brasileiros haviam sido diagnosticados com a doença e nenhum havia morrido. Desde o primeiro caso registrado no País, em 26 de fevereiro, passaram-se quase dois meses. Somente agora, no entanto, o governo promete fazer testes em massa na população, embora faltem exames no mercado internacional e o novo ministro, Nelson Teich, não tenha a mínima ideia de como gerenciar a crise, a pasta e a língua portuguesa.

O período mais crítico da epidemia inicia-se na próxima semana, quando está prevista uma escalada do número de infectados e de mortos. Chegou a hora de o Brasil encarar a ameaça que colocou em xeque os sistemas de saúde da China, da Europa e da EUA. Os brasileiros têm mais informações sobre o comporta- mento do coronavírus, mas não fize- ram a lição de casa. A seguir, especialis- tas consultados por CartaCapital expli- cam o que se sabe a respeito do Covid-19 e alertam sobre os gargalos que amea- çam a vida dos brasileiros.

A “gripezinha” que mata por asfixia

Os sintomas mais comuns da covid-19 são febre, cansaço e tosse seca. Alguns pacientes podem apresentar congestão nasal, dor de garganta ou diarreia. Outros não manifestam sintoma algum. Segundo a OMS, cerca de 80% dos infectados recuperam-se sem precisar de tratamento especial. Mas um em cada seis poderá ficar gravemente doente, com quadro de insuficiência respiratória. Idosos e portadores de doenças preexistentes, como hipertensão, problemas cardíacos e diabetes, têm probabilidade bem maior de desenvolver complicações severas.

“Não sabemos ao certo o que acontece com o paciente que apresenta esses sintomas mais graves, do ponto de vista da fisiopatologia. Alguns estudos sugerem a existência de uma ‘tempestade de citocinas’, uma reação hiperinflamatória, quando o nosso organismo reage a um antígeno estranho de forma exagerada”, explica José Angelo Lindoso, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da USP e infectologista do Hospital Emílio Ribas, na capital paulista.

Um sinal de alerta é quando a tomografia pulmonar apresenta opacidade em “vidro fosco”, como os especialistas costumam se referir aos sinais de processos inflamatórios que dificultam a troca de gases. “Para compensar a diminuição do oxigênio no sangue, o paciente aumenta a frequência respiratória. Aquilo leva a uma fadiga muscular, a ponto de necessitar de ventilação mecânica”, acrescenta Lindoso. “Quando o pulmão está mais de 50% comprometido, há um risco enorme de a pessoa entrar no respirador.”

Não existe cura milagrosa

Até o momento, não existe um medicamento específico para combater o coronavírus. O tratamento é de suporte, enfrenta as consequências, não o agente causador da doença. “Nenhuma droga tem se mostrado eficiente. Ao contrário da propaganda feita por Bolsonaro, um recente estudo de pesquisadores americanos, publicado no New England Journal of Medicine, mostrou que a cloroquina, mesmo quando combinada com azitromicina, não demonstrou eficácia alguma. Em alguns casos foi identificada uma toxicidade até maior”, comenta o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP e integrante do Centro de Contingenciamento do Coronavírus em São Paulo.

Recentemente, cientistas brasileiros precisaram interromper precocemente uma pesquisa com cloroquina, após a morte de 11 pacientes com covid-19 que receberam uma dose elevada da droga antimalárica, conforme um protocolo de tratamento sugerido por um estudo chinês, revelou o New York Times. Eles testavam a resposta ao medicamento em 81 infectados pelo coronavírus, interna- dos em hospitais de Manaus. Vários deles apresentaram batimentos cardíacos irregulares, com elevado risco de uma arritmia cardíaca fatal. Diante da enorme repercussão da reportagem, inclusive nos EUA, os pesquisadores passaram a receber ameaças das milícias digitais bolsonaristas, instigadas pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, que acusou o grupo de forjar resultados para “deslegitimar a cloroquina”.

“É uma insanidade. Trabalho há mais de 40 anos com a cloroquina no trata- mento da malária. Tenho vários estudos publicados a respeito e sei que esse medicamente não é isento de riscos”, diz Boulos. “Mesmo em baixas dosagens, os pacientes podem sentir náuseas, ter infecções intestinais, desenvolver pruridos, reações de hipersensibilidade.”

A cloroquina não é a única aposta para o tratamento do Covid-19. Antirretrovirais, proteínas recombinadas e até mesmo vermífugos estão sendo testados. É preciso, no entanto, relativizar os resultados apresentados em pesquisas divulgadas a to- que de caixa. “Testar um medicamento in vitro, analisando o efeito em uma célula, é uma coisa. A questão é saber se a resposta será a mesma no organismo humano”, afirma Lindoso. “Infelizmente, no Brasil, o debate sobre esses estudos está conta- minado pela política.”

Atualmente, a Organização Mundial da Saúde coordena uma grande pesquisa internacional, batizada de “Solidarity”, para investigar a eficácia de drogas já existentes. Serão testados, em todo o mundo, quatro braços para o tratamento específico da covid-19. Um deles usa a cloroquina associada à azitromicina. Outro avaliará a resposta do remdesivir, antiviral utilizado contra o ebola. O terceiro deve testar ritonavir e lopinavir, usados no tratamento do HIV. O quarto deve combinar os dois antirretrovirais citados anterior- mente com interferon-beta, fármaco que ajuda a combater a inflamação. Por fim, haverá um grupo de controle, no qual não será ministrada droga alguma, só a assistência de ventilação mecânica nos casos de insuficiência respiratória.

Normalmente, estudos como este podem levar de 15 a 20 anos, comenta Boulos. Em situações emergenciais, é possível pu- lar etapas da pesquisa, como a que testa a eficácia do remédio em grandes grupos populacionais. Ainda assim, é improvável que saia algum resultado conclusivo antes de 18 meses.

A esperança de uma vacina eficaz

A vacina ítalo-britânica é fruto de uma parceria entre a empresa Advent-IRBM, de Pomezia, na província de Roma, e o Instituto Jenner, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Nosso parceiro sintetizou o gene da proteína ‘spike’ (utilizada pelo coronavírus para agredir células e se multiplicar). Esse gene é inoculado no organismo humano, que reconhece o corpo estranho e produz anticorpos”, explica Piero di Lorenzo, presidente da companhia italiana, responsável pela fabricação do primeiro lote. “A vacina para o ebola saiu desses mesmos laboratórios há cinco anos.”

Diante da emergência da pandemia, os cientistas adiantaram a fase de tes- tes na população. “Em tempos normais, chegar a esta etapa demoraria anos”, re- conhece o secretário de Saúde do Reino Unido, Matthew Hancock. O governo britânico colocou 20 milhões de libras esterlinas (cerca de 132 milhões de reais) à disposição da equipe de Oxford e destinou 22 milhões de libras (146 milhões de reais) a outro projeto de vacina desenvolvido pelo Imperial College de Londres.

Na Alemanha, o Instituto Paul Ehrlich também anunciou, na quarta-feira 22, o primeiro teste de uma vacina contra a covid-19, desenvolvida com dados genéticos de outra proteína do coronavírus. A primeira fase do estudo clínico contará com 200 voluntários. Os alemães devem usar variantes da vacina levemente modificada para aumentar as chances de acerto. Com os anúncios, os europeus entram com força na corrida pelo desenvolvimento da primeira vacina contra a covid-19, responsável por 184 mil mortes no mundo até a manhã da quinta-feira 23, segundo o painel de monitoramento global da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Em 19 de março, o presidente Donald Trump informou que os EUA começaram a testar a sua vacina, um projeto sob coordenação da força-tarefa da Casa Branca contra o coronavírus. Dias depois, a China também comunicou o início de testes clínicos em 108 voluntários.

O apagão de dados confiáveis no Brasil

Na tarde da quarta-feira 22, o Ministério da Saúde confirmou a existência de 45.757 casos de infecção e 2.906 mortes provocadas pelo novo coronavírus. Todos os especialistas sabem, porém, que os números reais são muito superiores aos das estatísticas oficiais. “O paciente com sintomas leves da doença é orientado a voltar para casa, sem fazer o teste”, comenta o ex-ministro Arthur Chioro, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp. “Testamos apenas os casos mais graves, que geram internação ou que evoluíram para óbito. Além disso, os resultados dos exames chegam com cinco dias de atraso, na melhor das hipóteses. Continuamos olhando pelo retrovisor, no escuro.”

Atualmente, temos uma taxa de letalidade superior a 6% dos pacientes diagnosticados com covid-19. Muito provavelmente o número está superdimensionado, devido à subnotificação de casos leves e moderados. De acordo com o site Wordometer, o Brasil é um dos países que menos fazem exames para a detecção do coronavírus. Em 22 de abril, a taxa era de 1.373 testes por milhão de habitantes, muito inferior a países co- mo Coreia do Sul (11.273), EUA (12.657) e Alemanha (23.985). “Nas nações que realizam testes em massa, a mortalidade gira em torno de 2% a 3%. Na faixa abaixo de 60 anos, isso cai para ínfimos 0,2%, 0,3%. Acima de 70 anos, o número é superior a 10%”, comenta Boulos.

O período crítico se aproxima

De acordo com as previsões de numerosos especialistas e do próprio Ministério da Saúde, o número de casos de coronavírus deve crescer de forma substancial a partir da 17a semana epidemiológica, desde o primeiro diagnóstico confirmado no Brasil. O período crítico inicia-se, portanto, no fim de abril. A quantidade de infectados dependerá, sobretudo, do êxito das medidas de distanciamento social adotadas por estados e municípios.

Um estudo do Imperial College de Londres estima, no melhor dos cenários, 44 mil mortes no Brasil. Isso, se todos seguissem a quarentena à risca. Com a ade- são parcial da população, o número de óbitos pode chegar a 627 mil. Sem nenhuma medida de isolamento, mais de 1,1 milhão de brasileiros poderiam morrer. “Acredito que ficaremos no cenário intermediário, com muito mais que 44 mil mortes, até porque a adesão à quarentena está muito aquém do necessário. Infelizmente, é possível haver centenas de milhares de mortes”, prevê o ex-ministro Arthur Chioro.

A maior preocupação é se os hospitais públicos terão condições de atender to- dos os pacientes que precisarão de leitos de UTI e do suporte de ventilação mecânica. “Por enquanto, graças à quarentena, não vimos o sistema de saúde entrar em colapso em São Paulo, embora esse risco persista”, alerta Boulos. Vários hospitais da capital paulista operam com capacidade máxima dos leitos de UTI, caso do Hospital Emílio Ribas, referência no tratamento de doenças infecciosas. “Não sobram vagas”, diz Lindoso. “Se alguém morre ou o paciente é transferido para a enfermaria, porque melhorou, automaticamente a vaga na UTI é preenchida.”

Quarentenas intermitentes até 2022

Quando alguém é exposto a um antígeno novo, produz anticorpos para combatê-lo e adquire imunidade. Nos casos de algumas doenças, como o sarampo, a proteção vale pelo resto da vida. Em outros, a exemplo do H1N1, ela é passageira. O vírus pode sofrer mutação e voltar a infectar o indivíduo. Ainda não se sabe o que esperar do coronavírus. Embora alguns estudos tenham relatado casos de reinfecção, eles não são considerados confiáveis, pois não houve a confirmação de testes nas duas etapas, na primeira e na segunda infecção.

Enquanto a dúvida persiste, especialistas consideram a possibilidade de haver quarentenas intermitentes por um longo período. Em estudo publicado na revista Science, pesquisadores da Universidade Harvard, nos EUA, criaram simulações em computador sobre as possíveis trajetórias da pandemia. A pesquisa conclui que a covid-19 tem potencial para se tornar sazonal, a exemplo de outros vírus causadores da gripe co- mum. Em decorrência disso, podem ser necessários períodos alternados de distanciamento social até 2022.

Na hora de decidir sobre o relaxamento da quarentena, é indispensável, no en- tanto, ter dados confiáveis sobre a situação epidemiológica, alerta Chioro. “Não dá para o Brasil continuar no escuro, sem saber o número real de infectados e mortos”, comenta. “Da mesma forma, é preciso zelar pela qualidade dos exames. Não adianta usar testes com 38% de sensibilidade, como temos visto por aí. Neste caso, talvez jogar cara ou coroa tenha um grau de acerto maior.”

A Espanha chegou a reduzir as medi- das de distanciamento social, mas teve de retroceder, devido à elevação do número de casos em algumas províncias. Agora é a Itália que prepara um relaxamento tímido da quarentena. Após a regressão da epidemia na península itálica, 3 mil operários retornarão a seus postos em setores essenciais, apenas em localidades onde o contágio está sob controle.

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