Saúde

Agricultores familiares enfrentam dificuldades para distribuir seus alimentos

Pequenos produtores pedem agilidade dos governos na compra e distribuição de alimentos para quem precisa

(Foto: Pedro Ventura/ Agência Brasília)
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As polpas de frutas naturais e orgânicas, que antes nutriam crianças da cidade de Cametá, no Pará, se acumulam nos freezers das agricultoras. Em Remanso, na Bahia, não é muito diferente: maracujá-do-mato da Caatinga, manga, hortaliças e verduras estão na mão dos produtores, e não da população – grande parte receberia de bom grado um alimento nutritivo em tempos de escassez e incertezas.

Esse cenário se repete com milhares de agricultores familiares brasileiros que, no meio da pandemia de coronavírus, viram quebrar a ponte que tinham com escolas, feiras locais, Ceasas e outros centros de distribuição de alimentos. Precisando vender para sobreviver, muitos dos produtos nutritivos e naturais vendidos por eles não são inseridos nas cestas básicas fornecidas pelos estados e nem comprados por supermercados, que privilegiam os grandes produtores.

Movimentos que lutam por políticas de alimentação no Brasil pressionam o governo federal para a concessão de crédito suplementar de 1 bilhão de reais destinados para a compra dos produtos da agricultura familiar, em especial pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Ministério da Cidadania, e cobram, principalmente, agilidade nos processos burocráticos para a compra dos pequenos produtores e a distribuição para quem precisa.

Criado em 2003 após uma articulação da sociedade civil e o governo federal, que acabou, depois, a ser um dos eixos do Programa Fome Zero, o PAA acumulou acumulou vitórias para os dois lados da moeda – população e agricultores -, ao longo dos anos, como a aprovação da lei que garante ao menos 30% da alimentação escolar proveniente da agricultura familiar, por exemplo.

“O PAA é um programa que teve diversos impactos positivos na economia local e propiciou a diversificação de cultivo no Brasil. Nós vimos que ele serviu de freio ao desperdício de alimento e, em muitos casos, favoreceu uma transição da agricultura para a agroecologia”, explica Maria Emília Pacheco, antropóloga e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que pressiona uma maior liberação de verba por parte do governo federal.

Porém, segundo Pacheco, o programa vem sofrendo seguidas derrotas com um orçamento baixo para adquirir alimentos de agricultores. Para 2020, por exemplo, havia apenas 186 milhões reais previstos no orçamento a fim de financiar a compra de produtores naturais, sendo que 66 milhões estavam contingenciados até o momento em que o Brasil foi atingido pelo coronavírus.

Para colocar o valor em perspectiva, em apenas um ano o governo federal deixa de arrecadar cerca de 10 bilhões em impostos de agrotóxicos devido às isenções fiscais concedidas a quem comercializa os venenos no País, segundo estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), feito por pesquisadores da Fiocruz e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2019.

Com a pandemia e a pressão de agricultores, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, prometeu que 500 milhões seriam destinados à aquisição de alimentos. Houve demora: do anúncio à liberação da verba, foram três semanas de espera. Do total, 200 milhões serão destinados à Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que irá adquirir os alimentos dos agricultores pela modalidade de compra com doação simultânea. Nesse caso, os alimentos serão doados a entidades e organizações que os direcionam para pessoas em situação de vulnerabilidade.

Para onde vai a comida?

Com a liberação de metade da demanda pedida pelos agricultores, falta o alimento chegar à mesa dos brasileiros. A burocracia é o principal inimigo de quem passa fome: segundo a ANA, uma vez liberados os recursos, as palavras de ordem devem ser “agilidade e urgência”, já que contratos cancelados com cooperativas e outras entidades deverão passar pelos trâmites de compra novamente.

Porém, mesmo em estados que já anunciaram o fornecimento de cestas básicas, pessoas que moram nas periferias veem os alimentos sumirem diante de tanta procura.

Na Vila Nova Esperança, em São Paulo, a associação de moradores resolveu transformar a horta comunitária do bairro em fonte de alimentos para marmitas feitas na cozinha compartilhada. Lia Esperança, como é conhecida a presidente da associação, relata que há pouco interesse dos governos locais em diversificar os locais de distribuição de alimentos. Até o momento, ela diz que nenhuma das 1 milhão de cestas anunciadas pelo governo de São Paulo chegou ao bairro.

“Você já percebeu que, quando tem ajuda, eles só focam em um lugar sozinho para entregar? Tinha que ter uma forma de distribuir para as comunidades. Eu queria descobrir para onde estão indo esses alimentos, porque aqui não chegou. Mesmo no Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) é uma burocracia enorme, você não consegue as doações, e as pessoas não têm nem 10 reais para irem ao centro da cidade”, relata.

As marmitas feitas por Lia e outros voluntários, segundo ela, são em sua maioria direcionadas aos moradores de rua da região. No prato, alimentos de fácil plantio, baixo custo e alto valor nutritivo. “As crianças e os idosos precisam não só de um arroz e feijão, e principalmente nessa época dessa doença. Na horta, temos PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais), como a taioba, que tem vitamina A, ora-pro-nóbis, que é muito boa para anêmicos. Estamos colhendo e colocando no almoço dos moradores, porque é uma forma dessas pessoas terem acesso a isso”, diz Lia.

Para a nutricionista Sueli Longo, que integra a diretoria da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN), é impossível traçar desde já quais serão os desafios, num momento pós-pandemia, para a alimentação de quem ficou desassistido em plena crise. Analisando as cestas básicas fornecidas pelos estados, a nutricionista destaca que há uma tentativa de suprir, principalmente, a demanda por carboidrato – arroz, feijão, macarrão – e de opções proteicas – como feijão e carne seca -, mas não os alimentos não-perecíveis, como muitos dos oferecidos pelos agricultores familiares.

Para Longo, a conta da falta de acesso à alimentação, saúde e saneamento básico caiu de uma vez no colo do brasileiro. “Tem muita coisa para fazer. Temos que assistir as pessoas na situação de maior vulnerabilidade, e precisamos fazer esse papel de ponte entre eles e a comida”, analisa.

Alguns agricultores buscam se reinventar para sobreviver. Em Cametá, as mulheres montaram cestas de produtos e vão atrás de consumidores pelo WhatsApp para fazerem vendas pontuais e garantirem, ao menos, um prejuízo menor até a situação voltar ao normal.

Em Remanso, porém, a prefeitura se nega a adquirir produtos não-perecíveis saudáveis, como filés de peixe, porque privilegia a compra proveniente das redes de supermercados. O tempo corre contra o alimento e a fome de milhões de vulneráveis no Brasil. Sueli Longo teme o cenário que será encontrado em alguns meses. “A ação da nutrição deverá ser mais intensa para crianças e pessoas abaixo da linha da pobreza. Eu sinceramente não sei o que vai acontecer com elas”.

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