Saúde

A última barreira: o drama de profissionais de saúde na pior fase da pandemia

‘Mais cedo ou mais tarde, precisarei tratar esse estresse pós-traumático’, desabafa infectologista de Manaus. Agora, o caos é generalizado

(Foto: Breno Esaki)
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Sempre desejada/ Por mais que esteja errada/ Ninguém quer a morte/ Só saúde e sorte/ E a pergunta roda/ E a cabeça agita/ Eu fico com a pureza/ Da resposta das crianças/ É a vida, é bonita e é bonita. Quando os versos de Gonzaguinha ecoaram dos alto-falantes do carro, a infectologista Ana Galdina Mendes, de 42 anos, teve uma crise de choro e precisou encostar o veículo no primeiro recuo que encontrou na Avenida das Torres, uma das mais movimentadas de Manaus. A canção fez a profissional reviver, na forma de flashbacks, as traumáticas situações vivenciadas em 14 de janeiro deste ano, quando trabalhava na enfermaria do Hospital Universitário Getúlio Vargas. Naquele dia, o suprimento de oxigênio da unidade de saúde acabou e 14 pacientes morreram sufocados.

“Tivemos de priorizar o atendimento daqueles que estavam conscientes. Foi uma correria para levá-los até ambulâncias ou postos de saúde que ainda tinham alguns cilindros. Nesse meio-tempo, a população começou a trazer balões de oxigênio para cá, mas não tinha o suficiente para todos”, relembra, com a voz embargada. “Fomos forçados a escolher quem seria ou não salvo. E não consigo tirar da cabeça o desespero dos parentes e os apelos de pacientes lúcidos, que imploravam para não os deixar morrer.”

No auge da crise, a médica adotou um ritual ao chegar em casa. Antes de qualquer outra atividade, corria para o banho, onde se sentia mais à vontade para chorar e digerir os acontecimentos do dia. Acreditava que, por dar vazão aos sentimentos debaixo do chuveiro, conseguiria aos poucos se livrar da angústia. Mas as lembranças intrusivas, de apelos desesperados, de rostos aterrorizados, vez por outra desencadeiam uma nova crise, como a descrita na abertura da reportagem.

“Esta última foi na sexta-feira 26, quando estava a caminho do Pronto-Socorro João Lúcio Machado. Ainda não procurei um especialista, mas sei que mais cedo ou mais tarde precisarei tratar esse estresse pós-traumático. Penso muito nos colegas de outros estados, que ainda vão vivenciar essa situação ou passam por isso agora.”

80% dos pacientes que precisaram de ventilação mecânica no Brasil morreram. 59% dos que foram internados em UTIs vieram a óbito.

O Amazonas superou o período mais agudo da crise sanitária. Dois meses após o colapso nos hospitais, conseguiu zerar a fila de internações e passou a receber pacientes do Acre e de Rondônia pela “Operação Gratidão”, assim batizada por se tratar de um gesto de retribuição ao apoio recebido de outros estados. Mas a infectologista tem motivos de sobra para se preocupar com os colegas de fora. Mesmo sem os dados de Roraima, excluídos da conta por um problema técnico na base de dados, o Brasil bateu novo recorde na terça-feira 30: foram registrados 3.780 óbitos por Covid em 24 horas, segundo o levantamento do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O número é superior à soma das mortes contabilizadas nos EUA, Itália, Polônia, Rússia, Índia, França, Ucrânia, Hungria e Alemanha, os demais países que figuram no “Top 10” do ranking de óbitos diários, segundo o site Wordometers.

Na ocasião, somente 16,2 milhões de brasileiros haviam recebido ao menos uma dose da vacina, o equivalente a 7,68% da população. Com o arrastado ritmo da campanha de imunização, o colapso hospitalar aprofunda-se. Das 27 unidades da federação, apenas Amazonas e Roraima possuem taxa de ocupação das UTIs inferior a 80%, revela o último boletim do Observatório Covid-19, da Fiocruz. Em 17 estados e no Distrito Federal, o porcentual de leitos ocupados é superior a 90%. Milhares de pacientes em estado grave aguardam na fila por uma vaga, e muitos não resistem à longa espera.

A difícil escolha de quem vai ou não para a Unidade de Terapia Intensiva é um dos principais focos de angústia dos profissionais da saúde. “No meu último plantão, um leito ficou disponível, mas havia três pacientes em estado grave. Fiz questão de dividir a responsabilidade da escolha com outros colegas, não suportaria arcar com uma decisão dessas sozinho”, comenta o geriatra Raphael Gontijo, que atua em um grande hospital da rede privada de Brasília, mas que também tem recebido pacientes do SUS. Ainda assim, o desfecho da história o perturba. “Como todos preenchiam os mesmos requisitos de gravidade para ocupar a vaga, optamos pelo paciente mais jovem, com melhor prognóstico de recuperação. Dos que ficaram de fora, um precisou ser entubado fora da UTI e o outro faleceu.”

No ano anterior, Gontijo havia sido contratado para um trabalho temporário no Hospital de Base, o maior e mais antigo centro de saúde da capital. Acabou destacado para a linha de frente do combate ao Coronavírus. Raramente conseguia sair de um plantão sem assinar um atestado de óbito. As precárias condições de trabalho e o sentimento de impotência diante das perdas o levaram a um quadro de depressão aguda.

“Não conseguia dormir sem tomar duas ou três latinhas de cerveja. Passei a comer compulsivamente, engordei muito. Nos plantões, não conseguia descansar por um segundo. Às vezes, precisava ir ao banheiro para me recuperar, ficava com a respiração ofegante”, conta. Em outubro, precisou entubar uma paciente que havia acabado de passar por cesárea. O bebê sobreviveu, mas ficou órfão em menos de 24 horas. “Ela poderia ter sido salva, não fossem as precárias condições do hospital. Por conta desse incidente, não quis renovar o contrato no fim do ano.”

Com a sobrecarga de todos os hospitais, inclusive os particulares, seu trabalho não ficou menos penoso. “A diferença é que tenho mais suporte para tratar os pacientes. Na rede pública, às vezes faltava até antibiótico. A gente fazia a substituição por algum outro, de segunda linha, que eventualmente podia comprometer o funcionamento dos rins”, conta o médico, que aumentou a frequência no psicoterapeuta e passou a praticar exercícios físicos para aliviar a pressão. Ainda assim, vez por outra acaba lidando com situações que abrem velhas feridas. “Recentemente, apareceu outra gestante em estado grave no plantão. Pedi para meus colegas assumirem o caso e fazerem a intubação. Expliquei para eles o que havia acontecido comigo antes. Eles entenderam, claro, mas voltou tudo à minha cabeça.”

Com 97% dos leitos de UTI ocupados, segundo a última atualização da Fiocruz, divulgada na terça-feira 30, o Distrito Federal vive um colapso sem precedentes. Para não deixar ninguém sem atendimento, o Hospital Regional de Santa Maria precisou alocar pacientes entubados pelos corredores. Funcionários do Hospital Regional de Taguatinga, por sua vez, improvisaram a fixação de mangueiras no teto de uma enfermaria, passando por cima de luminárias, para ampliar os pontos de acesso a oxigênio. A unidade também montou tendas refrigeradas para “acomodar de maneira digna” os corpos das vítimas. Em outros centros de saúde, em Guará e Ceilândia, corpos ficaram expostos no chão do necrotério ou nos corredores.

No estado de São Paulo, mais de mil pacientes aguardam na fila por um leito de UTI. Isso não significa que eles estejam completamente desassistidos. “Enquanto não surge um leito, podemos intubar os pacientes na emergência, mas é inegável que a espera por uma vaga na terapia intensiva acaba agravando o quadro deles”, comenta o infectologista Eder Gatti, do Hospital Emílio Ribas, referência no tratamento de doenças infecciosas na capital paulista. “Muitos leitos de UTI foram abertos nos últimos meses, mas não havia tantos profissionais com capacitação adequada para atuar nessas unidades. Além do médico intensivista, as equipes necessitam de enfermeiros e técnicos de enfermagem especializados, que saibam manusear os equipamentos. Como a medicação usada no tratamento pode causar complicações renais, o ideal é ter à disposição um nefrologista e um equipamento de diálise.”

Infectologista Eder Gatti, do Hospital Emílio Ribas (Foto: Arquivo Pessoal)

Presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo por seis anos e hoje diretor da Associação dos Médicos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Gatti acredita que esses dois fatores, a longa espera por um leito e a falta de profissionais qualificados, estejam por trás da elevada taxa de mortalidade dos pacientes entubados. Recentemente, um estudo publicado na revista científica The Lancet Respiratory Medicine revelou que 80% dos pacientes que precisaram de ventilação mecânica no Brasil morreram. Além disso, 59% dos que foram internados em UTIs vieram a óbito. As conclusões partem de uma análise retrospectiva de mais de 254 mil brasileiros internados com diagnóstico de Covid-19 entre 16 de fevereiro e 15 de agosto de 2020. À época, pouco se sabia sobre a evolução da doença, é preciso ponderar. Ainda assim, os números são escandalosos.

“Em São Paulo, ainda não faltam medicamentos para sedação de pacientes nem oxigênio. Mesmo assim, a situação é calamitosa. Muitos ainda não se deram conta, mas estamos em uma guerra. No Brasil, temos mais de 300 mil mortos e o número de óbitos não para de crescer, são mais de 3 mil por dia. É uma guerra, e de grandes proporções”, alerta Gatti. Apesar da analogia, o infectologista resiste em aceitar o título de “soldado da saúde”, conferido pela mídia e por agradecidos pacientes. “O mais correto seria nos chamar de guerrilheiros da saúde, porque o presidente da República, o comandante das tropas regulares, parece estar na trincheira oposta.”

O infectologista José Angelo Lindoso concorda com a avaliação do colega. “O governo federal insiste em sabotar as medidas de isolamento e promover remédios sabidamente ineficazes. Muitos dos pacientes hospitalizados no Emílio Ribas chegaram aqui com quadros graves, mesmo tomando o tal ‘kit Covid’. Não bastasse, ainda circulam nas redes sociais publicações de advogados dispostos a processar médicos que se recusam a prescrever essas drogas”, lamenta.

“Meu maior temor é chegarmos ao ponto de escolher quem vai viver ou morrer. Se as pessoas continuarem a desrespeitar as medidas de prevenção, é isso que vai ocorrer. Quando vejo aquelas cenas de praias lotadas, entro em pânico, porque conheço bem a consequência disso.”

Protesto silencioso no litoral paulista (Foto: Reprodução/Facebook Marquinhos Olívio)

Na tentativa de conter a disseminação do vírus, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, do PSDB, antecipou cinco feriados. O objetivo era fazer a capital parar por dez dias, um esforço para aumentar o isolamento social e evitar o colapso dos hospitais. Apesar de todo o estado estar em fase emergencial, o que impede o funcionamento de atividades não essenciais, mais de 602,8 mil veículos passaram pelas rodovias que dão acesso ao litoral paulista de 26 a 28 de março, na véspera do megaferiado.

De nada adiantou o protesto solitário do professor de boxe Roberto Fernando da Costa, de 42 anos, que se fantasiou de “Dona Morte” para recepcionar os turistas em Bertioga. Ou o emocionado apelo do prefeito da cidade litorânea de Mongaguá, Márcio Melo Gomes, que perdeu familiares na pandemia. “Como eu queria hoje, com a minha família inteira sendo do comércio, sair dessa live e escutar o meu pai e o meu irmão dizendo: ‘Eu quebrei, o meu comércio quebrou’. Sabe por quê? Porque nós já quebramos, e com a vida nós conseguimos dar a volta por cima”, desabafou, em meio às lágrimas. “Infelizmente, por esta doença, eles perderam a vida. E não há nada mais precioso que a vida de vocês, a vida de quem vocês amam.”

Com Jair Bolsonaro contra as medidas de isolamento, a ponto de ingressar no Supremo Tribunal Federal com uma ação contra os estados que decretaram lockdown ou toque de recolher, o Fórum Nacional de Governadores enviou uma carta ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pedindo uma reunião para discutir a pandemia no Brasil. Na missiva, eles pedem “ajuda humanitária”, sobretudo para a aquisição de vacinas.

“Atualmente, o País é considerado o epicentro da pandemia no mundo, registrando o maior número de óbitos por dia, além de apresentar enormes riscos de propagação de variantes, mais contagiosas e letais”, diz o documento, assinado pelo governador do Piauí, Wellington Dias, do PT. “Em face dos alarmantes casos de adoecimentos e mortes, tornou-se imprescindível a formulação de um documento com diretrizes para a emergencial tomada de providências que possam mitigar o flagelo decorrente do novo Coronavírus em solo brasileiro.”

O resultado do apelo é incerto. Ainda que as Nações Unidas venham a sugerir mudanças na política de combate à pandemia no Brasil, cabe a Bolsonaro acatá-las ou não. E, como o infectologista Eder Gatti bem observou, o ex-capitão figura na trincheira oposta desta guerrilha.

Publicado na edição n.º 1151 de CartaCapital, em 1º de abril de 2021.

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