Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

“Quantos mais vão precisar morrer…?”

Marielle Franco e o compromisso de vida que a levou à morte. Em tempos de propostas religiosas de acomodação, são poucos os que empenham a vida pela verdade

'Hoje, mais do que nunca, precisamos de gente que escolha resistir a tudo o que compromete a vida plena para todas as pessoas'
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A execução da vereadora do PSOL no Rio de Janeiro Marielle Franco, na noite da quarta-feira 14, nos chama a refletir e repensar a vida e o sentido que damos a ela. Socióloga, com mestrado em Administração Pública, autora da dissertação “UPP: a redução da favela em três letras”, a vereadora foi eleita em 2016 por seu compromisso com mulheres e pessoas negras.

Criada e moradora no Complexo da Maré, aos 38 anos, Marielle Franco se colocava de forma crítica à intervenção militar no estado, como qualquer pessoa comprometida com a promoção da paz com justiça. Duas semanas atrás ela se tornou relatora da Comissão da Câmara Municipal criada para acompanhar a atuação dos militares em intervenção.

Marielle Franco escreveu em seu perfil no Facebook no sábado passado: “O 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. (…) Acontece sempre e com a intervenção ficou ainda pior”. Este foi o batalhão que registrou cerca de 450 mortes nos últimos cinco anos, batendo os recordes de registros de perdas humanas na cidade. 

Um dia antes de sua execução, a vereadora havia denunciado a ação brutal da PM que resultou na morte de mais um jovem negro. Matheus Melo de Castro, de 23 anos, foi baleado em Manguinhos, quando saía da igreja evangélica que frequentava. Testemunhas acusam a PM dos disparos. Em postagem no Twitter, Marielle Franco denunciou o caso e questiona: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”. No dia seguinte, ela se tornou a própria resposta à pergunta que fez.

Por que tocar neste assunto numa coluna intitulada Diálogos da Fé, no espaço das quintas-feiras dedicado às abordagens em torno da fé evangélica?

A execução de Marielle Franco nos leva a recordar o tema da fé cristã do martírio, termo originado do grego “martyria”, que significa testemunho, que gera a palavra mártir. Estes termos jurídicos do início da era cristã, referiam-se à pessoa que era convocada para relatar perante o povo e as autoridades o que viu e/ou ouviu em relação ao que estivesse sendo julgado.

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A testemunha deveria ter o compromisso de garantir a todo custo, inclusive com a vida, a verdade de seu relato. A garantia da verdade do testemunho era a própria vida.

Ao longo da história das igrejas é muito extensa a lista de mártires – pessoas que professam a fé cristã e, movidas por ela, buscam a verdade e a justiça, e acabam pagando com a própria vida por conta deste compromisso.

Entre os cristãos católico-romanos e ortodoxos são muitos os mártires, da mesma forma entre os protestantes/evangélicos. Um dos mais desafiadores tem sido o pastor batista estadunidense Martin Luther King, negro, ativista pelos direitos civis e pela superação do racismo, como Marielle Franco.

Num dos registros da biografia de Luther King, consta que um dia, por volta da meia-noite, em meio aos acontecimentos do boicote de ônibus em Montgomery, Alabama, nos anos 50, o telefone tocou na casa do pastor. A pessoa dizia: “Negro, estamos cansados de você e das suas confusões. E se você não sair desta cidade em três dias, explodiremos os seus miolos, e explodiremos a sua casa”.

Abalado, Martin Luther King fez uma oração: ‘Senhor, estou aqui tentando fazer o que é certo. Acho que a causa que representamos é justa. Mas Senhor, tenho de confessar que estou fraco agora. Estou vacilando. Estou perdendo a coragem’. Ele disse ter sentido uma voz dentro de si a dizer: “Martin Luther, defenda a retidão. Defenda a justiça. Defenda a verdade. E eu estarei contigo, mesmo até o fim do mundo”. E ele continuou a testemunhar a verdade e viu este fim do seu mundo de forma precoce e violenta.

Antes e depois de Martin Luther King, muitos outros evangélicos, mundo afora, comprometidos com a justiça e a verdade, abraçaram uma fé que lhes deu coragem e visão para os movimentos com que se envolviam. Por isso, entre tantas histórias, foi executado em uma prisão nazista o pastor luterano da Alemanha Dietrich Bonhoeffer e foi encarcerado para prisão perpétua o metodista da África do Sul Nelson Madela.

No Brasil, durante a ditadura militar, foram sete os presbiterianos e metodistas executados pelo regime: Juarez de Brito, os irmãos Daniel, José e Devanir de Carvalho, Heleny Guariba, Ivan Motta Dias, Paulo Stuart Wright. Somam-se a estes, 18 pastores e leigos, que foram presos e sofreram torturas e sevícias nas prisões do Brasil em nome da democracia e da justiça.

Em tempos em que fazem sucesso propostas religiosas de acomodação ao sistema político e econômico, que domina por meio do individualismo e da busca de sucesso, permanecem não sendo muitos aqueles que levantam a voz e empenham a vida no compromisso com a verdade a justiça.

Com isso, acabam prevalecendo silêncio, omissão, desânimo e resignação. Hoje, mais do que nunca, precisamos de gente que escolha resistir a tudo o que compromete a vida plena para todas as pessoas e abrace a fé e a esperança de que “um outro mundo é possível”.

Marielle Franco, e seu compromisso com a vida que a levou à morte, é uma destas testemunhas que o Deus da Verdade e da Justiça (aquele de Jesus de Nazaré, também executado por sua fidelidade a estes princípios) continua levantando e com quem segue caminhando até o fim do mundo.

 

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