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Torneira aberta

A universalização do acesso à água e esgoto depende da articulação de vários atores, inclusive da iniciativa privada

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O Brasil concentra a maior quantidade de água doce do mundo, com 12% do total existente no planeta, mas a abundância do recurso natural contrasta com outro dado: em média, uma em duas residências brasileiras convive diariamente com algum tipo de privação no saneamento básico. Um estudo do Instituto Trata Brasil aponta que quase 9 milhões de domicílios não têm acesso à rede geral de água, perto de 17 milhões sofrem com o abastecimento irregular e, aproximadamente, 11 milhões não possuem reservatório de água. Há ainda cerca de 1 milhão de casas que não possuem banheiro e 22 milhões que não contam com coleta de esgoto.

Regionalmente, as deficiências são maiores no Nordeste e no Norte. Dezessete a cada 100 moradias nordestinas ainda não estavam ligadas à rede geral de abastecimento de água tratada em 2022. Em três estados, a proporção passava a marca de 20 a cada 100: Paraíba, Alagoas e Pernambuco. No Norte, a situação é ainda mais grave. Perto de 35 a cada 100 domicílios não dispunham de acesso à rede geral de água em 2022. Em termos relativos, as maiores proporções de moradias em condição de privação ocorreram em Rondônia (45,3%), Pará (43,4%) e Roraima (46,1%).

Os desafios persistem até mesmo nos estados com PIB per capita mais elevado. Mais populosa do Brasil, a Região Sudeste abriga mais de 89 milhões de habitantes, não atende com coleta de esgoto em torno de 16,3 milhões de habitantes, enquanto trata somente 58,6% do volume gerado – o que representa o despejo diário de 2.229 piscinas olímpicas sem tratamento de esgoto na natureza. Em relação ao abastecimento para a população, mais de 7,5 milhões não têm acesso a água tratada. A região ainda perde 38% da água potável produzida nos sistemas de distribuição, ou seja, todo esse volume não chega de forma oficial até os habitantes.

“O estudo mostra os grandes desafios que ainda temos para universalizar o saneamento no País. O problema afeta de maneira contundente as famílias brasileiras abaixo da linha da pobreza, que, além de tudo, adoecem mais graças a essa falta de infraestrutura”, afirma Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil.

O novo PAC prevê investimentos nos sistemas de água e esgoto que totalizam 34 bilhões de reais até 2026, média de 8,5 bilhões por ano. Desse montante, 10 bilhões serão destinados para ampliar o abastecimento de água e 24 bilhões para conectar residências à rede de esgoto, cifra que envolve estados, municípios e setor privado. O volume de recursos é robusto, ainda insuficiente para alcançar a universalização do atendimento até 2033, como prevê a Lei 14.026/2020, que instituiu o novo marco legal do saneamento básico. Para alcançar esse objetivo, o País precisa mais que dobrar os investimentos em saneamento básico, estima o Instituto Trata Brasil. O relatório aponta que, de 2022 a 2033, serão necessários cerca de 537 bilhões de reais, o equivalente a 44,8 bilhões ao ano. Segundo cálculo do Ipea, o País teria de investir perto de 430 bilhões até 2033, enquanto as concessionárias privadas estimam ainda mais: 893 bilhões.

Isso indica que o esforço para a universalização de serviços de água e esgoto terá de envolver União, estados, municípios, empresas públicas e a iniciativa privada. A lei do novo marco regulatório, aprovada em 2020, tem feito crescer a presença de empresas privadas na área. Hoje, as concessionárias privadas estão presentes em 850 municípios, a partir de 178 contratos, e atendem 51 milhões de pessoas. O mapa das cidades em que as operadoras privadas atuam praticamente quadruplicou em dez anos. Em 2021, os investimentos privados em saneamento chegaram a 3,5 bilhões de reais de um total de 16,9 bilhões, ou 21% do total de aportes no setor.

O governo federal prevê investimentos de 34 bilhões de reais até 2026, média de 8,5 bilhões por ano

O novo marco regulatório deu fôlego a mais capital privado na área. O País hoje soma a realização de cerca de 30 leilões de concessão e parcerias público-privadas (PPPs) em saneamento sob as novas regras, que devem beneficiar mais de 30 milhões de brasileiros. Há previsão de licitar mais outros 20 projetos até 2026, o que vai beneficiar outros 46 milhões de habitantes, segundo levantamento do Trata Brasil. O desafio será conciliar os interesses públicos e privados e evitar que os investimentos novos pesem no bolso da população, principalmente daqueles que hoje estão sem acesso a uma rede de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto.

Exemplo desse desafio está em São Paulo. A nova regulação federal do setor e o comando do estado sob o governador Tarcísio de Freitas levaram à intenção de privatizar a Sabesp, a maior empresa pública da área, um processo ainda incerto. O projeto foi encaminhado recentemente para análise da Assembleia Legislativa e propõe a transferência do controle operacional da Sabesp à inciativa privada, por meio da negociação de parte da participação acionária do estado na companhia. Em novembro, a audiência pública para debater a desestatização da companhia foi marcada por debates acirrados, uma vez que ocorreu dias após um apagão que provocou prejuízos sociais e econômicos para a cidade. Secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do governo paulista, Natália Resende defendeu que a capitalização é necessária, uma vez que a Sabesp poderia perder até 50% dos contratos até 2038, se mantiver o atual modelo. A proposta do governo é antecipar em quatro anos a universalização do saneamento básico.

A ideia de privatizar a gigante do saneamento básico gera forte oposição. “O principal objetivo de ter uma companhia como a Sabesp é levar saúde para a população”, avalia o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado, José Faggian. “A parte da população vulnerável hoje no cadastro da Sabesp é de 7,5% dos domicílios. Significa que 92,5% da estrutura do estado não vai ter benefício algum”, completa Ronaldo ­Coppa, conselheiro da empresa pública. •

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Torneira aberta’

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