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Prevenção de desastres. Os municípios brasileiros precisam preparar-se para as consequências do aquecimento global – Imagem: GOVSP

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Emergência planetária

Cada vez mais intensos, os eventos climáticos extremos apenas reforçam a urgência de investimentos em cidades sustentáveis e resilientes

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O dia 3 de novembro entrou para a história da cidade de São Paulo, a mais populosa do País, com 11,5 milhões de habitantes. Um temporal provocou oito mortes, fez 2 milhões de pessoas ficarem sem luz por mais de 72 horas, interrompeu o abastecimento de água para milhões de residências e causou prejuízos incalculáveis em mercadorias estragadas por falta de refrigeração e em diversos setores da economia. O quadro levou a Câmara Municipal a aprovar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os serviços prestados pela Enel, concessionária responsável pela distribuição de energia elétrica na capital. Duas semanas depois, no sábado 18, após uma forte onda de calor, outra tempestade atingiu algumas partes da região metropolitana, como Embu das Artes e Taboão da Serra. Interrupções no fornecimento de energia voltaram a prejudicar o abastecimento de água e o Aeroporto de Congonhas, o mais usado para a ponte aérea entre São Paulo e Rio de Janeiro, teve as operações suspensas por algumas horas.

Os incidentes despertaram a atenção para os efeitos das mudanças climáticas sobre as grandes cidades brasileiras, um assunto que ganha alcance às vésperas do início da 28ª Conferência das Partes (COP28), em ­Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, que mais uma vez reunirá representantes de mais de 190 nações para discutir como reduzir as emissões de gases causadores de efeito estufa. Em 2015, quando se acertou o chamado Acordo de Paris, os países se comprometeram a adotar ações para manter o aumento da temperatura global em até 1,5 grau Celsius.

O PAC prevê 557,1 bilhões de reais até 2026 para readequar a infraestrutura dos municípios

O objetivo está distante da realidade: as emissões de poluentes globais tiveram alta de 10% desde 2015 e um relatório das Nações Unidas indica que altas temperaturas observadas em diversas partes do planeta devem ficar ainda mais extremas, podendo chegar a quase 3 graus Celsius acima da temperatura observada no período pré-industrial. Estudo recente publicado na revista científica Lancet prevê que as mortes causadas pelo calor extremo devem aumentar quase cinco vezes até 2050 no mundo. É um exemplo de como pensar global e agir local será cada vez mais importante, uma vez que isso envolverá, além dos governos que financiam, ações até das residências, que precisarão retirar a água parada que contribui para a infestação de parasitas.

No Brasil e no exterior, governos, iniciativa privada e a sociedade civil precisam se articular para reduzir os impactos crescentes de efeitos climáticos extremos sobre as populações. Os efeitos vão muito além de enchentes, suspensão de voos ou interrupção no fornecimento de luz e água. O calor também deve trazer impactos negativos para a agricultura e provocar a migração de mosquitos, com potencial para ampliar a transmissão de doenças. Estudo da Universidade de Michigan indica que a transmissão potencial de zika ou dengue no Brasil pode aumentar de 10% a 20% em 30 anos, em decorrência da alta das temperaturas.

Um dos eixos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento é justamente a construção de cidades sustentáveis e resilientes, com previsão de investimentos de 557,1 bilhões até 2026 na modernização da mobilidade urbana, em urbanização de favelas, esgotamento sanitário, gestão de resíduos sólidos e contenção de encostas e combate a enchentes. Este será um dos principais desafios do governo federal nesta década. Em novembro, o Ministério das Cidades encerrou a primeira etapa de inscrições de projetos. Foram 6.721 propostas recebidas, com um total de investimentos demandados da ordem de 294,8 bilhões. Dentro do Novo PAC, o ministério atua em dois eixos: Cidades Sustentáveis e Resilientes e Água Para Todos.

Lei da natureza. A qualidade de vida depende de um ambiente saudável – Imagem: Prefeitura de Recife

As prioridades indicadas pelo número de propostas são nas áreas de esgotamento sanitário (1.230) e abastecimento de água no ambiente urbano (1.209). Destaque também para a regularização fundiária (822), para a prevenção a desastres naturais e drenagem urbana (796) e para a gestão de resíduos sólidos (614). Os 374 projetos de mobilidade urbana sustentável que foram apresentados são os que demandaram o maior valor, 118,4 bilhões de reais no total. “Este é o primeiro processo de seleção de obras que estamos fazendo e isso estimula os estados e municípios a retomar o planejamento e a fazer projetos, a definir o que é estratégico para suas cidades. Com isso, o governo federal leva benefícios diretamente às pessoas. O pacto federativo voltou para reconstruir o Brasil”, celebrou o ministro da Casa Civil, Rui Costa, ao apresentar os resultados do Novo PAC Seleções.

O desafio de criar cidades preparadas para as mudanças climáticas não envolve apenas a União. Um exemplo está na cidade de Belém, que deverá sediar, em 2025, a COP30, o maior evento sobre mudanças climáticas no mundo. O fluxo de dinheiro para a capital do Pará vai crescer, a começar pelo aporte de 5 bilhões de reais previstos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, em recursos reembolsáveis ou não para viabilizar o evento. Em recente artigo no ­LabCidade, um laboratório de pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a coordenadora do laboratório, Raquel Rolnik, observa que obras para a Copa de 2014 deixaram algumas lições, especialmente sobre a necessidade de repensarmos as intervenções urbanas sob a perspectiva da sustentabilidade. “A partir de Belém, qual é a cidade pós-COP30 que queremos? Qual é a transição urbanística que pretendemos? Em tempos de redução da dependência de combustíveis fósseis, o legado da COP será mais pontes, viadutos e asfalto? Por que não introduzir a discussão sobre a mudança climática questionando o próprio modelo de ocupação da cidade? E qual o sentido de discutir mudança climática no urbano, em uma cidade fluvial como Belém, e não aproveitar a oportunidade de questionar as estratégias de grandes projetos de infraestrutura e macrodrenagem 100% submetidos a uma lógica carbonocêntrica?”

É preciso repensar o modelo de ocupação das cidades, alerta a urbanista Raquel Rolnik, da USP

No início do ano, chuvas no Litoral Norte de São Paulo provocaram mais de 30 mortes e deixaram mais de 2 mil pessoas desabrigadas. Em São Sebastião, a precipitação em apenas uma hora chegou a 96 milímetros – 96 litros de água por metro quadrado. Em toda a cidade, a chuva acumulada foi de mais de 600 milímetros em 24 horas, ou seja, 600 litros de água em uma área pouco maior que um balde. A ocupação no Litoral Norte foi feita de maneira desordenada, em um modelo que privilegia o turismo, reservando as partes mais próximas da praia aos veranistas de alta renda, e empurrando os moradores fixos e trabalhadores para as encostas. Alterar essa dinâmica envolve prefeituras, governos estaduais, União, sociedade e empresas.

A ocorrência de eventos climáticos extremos, como estiagens prolongadas, ondas de calor e tempestades e as alterações no regime hidrológico, tem também impacto sobre o bolso das pessoas e sobre o caixa das empresas. Há um exemplo disso no setor elétrico. Hoje, cerca de dois terços da geração de eletricidade do País vêm de hidrelétricas. As ondas de calor que atingiram o País em setembro e novembro têm alterado os preços da energia no mercado livre e elevado o acionamento das usinas térmicas. De 26 a 28 de setembro, houve um acionamento repentino e significativo de geração térmica, o que fez os preços chegarem a 600 reais por ­megawatt-hora (MWh). Análise da consultoria PSR, especializada em energia, destaca que neste verão uma série de fatores desfavoráveis pode levar a maior frequência do uso de térmicas, com o consequente aumento de preços. “Uma análise feita pela equipe de cientistas climáticos do World Weather Attribution, com participação de pesquisadores brasileiros, concluiu que esse aumento se deve a mudanças climáticas e, portanto, é estrutural. Em termos práticos, isto significa que é possível que as temperaturas dos próximos meses sejam extremas, o que resultaria em recordes de demandas de pico.”

Isso recoloca em evidência a discussão sobre o planejamento da matriz de energia elétrica e como o País vai responder ao crescimento da demanda nos próximos anos. Usinas solares e eólicas, que dependem de condições climáticas, deverão manter seu crescimento ou o Brasil terá de investir na construção de mais usinas térmicas a gás natural? Flexibilidade se tornará importante na reflexão da matriz dos próximos anos, o que poderá reforçar a importância das termelétricas a gás natural para aumentar a segurança do sistema, além de poder obter espaço para soluções de armazenamento. “As hidrelétricas e as termelétricas, sobretudo as flexíveis, são essenciais nesse cenário de segurança perturbadora”, afirma Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). •

Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Torneira aberta’

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