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A comida que chega às mesas das pessoas tem rosto, mãos e sotaque – Imagem: Lyon Santos/MDS

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A mesa que se refaz

Em dois anos, políticas integradas derrubam a insegurança alimentar e inspiram caminhos contra a miséria

Apoio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome

Não há soberania sem justiça alimentar e não há justiça social sem democracia”, afirmou o ministro Wellington Dias, ao lembrar que a saída do Brasil do Mapa da Fome foi o primeiro objetivo estabelecido pelo governo Lula, em 2023. A frase resume o espírito do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS): a ideia de que comer não é privilégio, mas direito.

Por trás da conquista estão programas que ligam campo e cidade, cozinhas populares e hortas urbanas, famílias agricultoras e escolas públicas. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, movimentou R$ 2 bilhões desde 2023, comprando mais de 400 mil toneladas da agricultura familiar. Esse ciclo transforma a colheita em merenda escolar, em refeições comunitárias, em feiras livres. O alimento sai das mãos de agricultores e agricultoras e chega às mesas que antes estavam vazias.

Se o PAA mostra a engrenagem da política pública, as Cozinhas Solidárias revelam a face humana do combate à fome. Em 2025, foram apoiadas 384 cozinhas, que juntas servirão 13 milhões de refeições até o fim do ano. Ao todo, mais de 1.100 cozinhas já foram habilitadas. São espaços onde a panela nunca esfria, mantidos por cozinheiras populares, comunidades e voluntários que encontram apoio governamental para transformar solidariedade em comida quentinha.

No semiárido, onde o sol é forte e a terra resistente, a água é tão importante quanto o grão

Ali, o cheiro do arroz com tempero caseiro se mistura com a conversa de quem chegou com fome e sai de barriga cheia. Cada refeição é um pedaço de dignidade devolvida. Nas cozinhas, a política pública encontra rostos e nomes, pessoas que se reconhecem umas nas outras e se apoiam para seguir em frente.

Água que vira vida

No semiárido, onde o sol é forte e a terra pede resistência, a água é tão importante quanto o grão. O Programa Cisternas já garantiu acesso à água a mais de um milhão de famílias. O impacto é profundo: menos tempo gasto para buscar água, mais saúde, mais chance de emprego, mais renda. Estudos do IPEA, FGV, ASA e universidades mostram que a instalação das cisternas reduziu em 29% a probabilidade­ de óbitos e aumentou em 14% as chances de trabalho formal entre beneficiários.

No sertão, a água que pinga do telhado e enche a cisterna é também a semente de uma nova vida. Mulheres relatam que antes passavam horas caminhando para buscar água. Agora, esse tempo é dedicado à produção, ao cuidado dos filhos e até ao empreendedorismo. O que parecia uma simples obra de infraestrutura se tornou um divisor de águas no cotidiano.

Protagonismo de quem planta

A comida que chega à mesa tem rosto, mãos e sotaque. São mulheres que respondem por 77% das famílias atendidas pelo Fomento Rural. São povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades urbanas que transformam quintais em hortas. Desde 2018, mais de 230 hortas urbanas foram implantadas, com kits de sementes e insumos distribuídos a milhares de famílias. Em terrenos baldios, praças e escolas, a terra voltou a produzir, e as cidades também aprenderam a plantar.

Essas iniciativas mostraram que, além da produção em larga escala, a alimentação adequada envolve diversidade cultural. O Brasil que alimenta valoriza o milho do Nordeste, a mandioca da Amazônia, a batata-doce dos quilombos, o peixe dos ribeirinhos, o feijão dos agricultores urbanos. Cada território contribui para formar o mosaico da soberania alimentar.

Políticas que se cruzam

Nenhum programa sozinho seria capaz de tirar o Brasil do Mapa da Fome. Foi o conjunto de Bolsa Família, BPC, Pronaf, alimentação escolar, PAA, Cozinhas Solidárias, Cisternas e Alimenta Cidades que reverteu o quadro em tão pouco tempo.

Entre 2020 e 2024, o número de ­pessoas em insegurança alimentar grave caiu 60%, de 17,9 milhões para 7,1 milhões. O total de brasileiros em insegurança alimentar moderada e grave caiu de 46 milhões para 28,5 milhões. Essa queda foi chamada de “a mais acelerada da história” pela secretária extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome, Valéria Burity.

Segundo ela, a chave está na vigilância nutricional: cruzar dados do SUS, do CadÚnico e das pesquisas do IBGE para localizar com precisão famílias em risco e incluí-las em políticas públicas. A fome deixou de ser invisível. A estratégia de busca ativa, conhecida como Protocolo Brasil Sem Fome, permite que cada município tenha mapeada a sua realidade, fortalecendo a rede de proteção.

A presidente do Consea, Elisabetta Recine, resumiu a vitória como fruto de governo e sociedade civil. “O anúncio é motivo de celebração, mas reforça a necessidade de manter os avanços. O caminho agora é consolidar conquistas e garantir que o Brasil nunca mais retorne ao Mapa da Fome.”

A comida que chega às mesas das pessoas tem rosto, mãos e sotaque – Imagem: Lyon Santos/MDS

Naidison Baptista, da Articulação Semiárido Brasileiro, lembrou que programas como PAA, PNAE e Cisternas têm efeito direto no cotidiano. “Não queremos um país de famintos e de ricaços. Queremos igualdade e condições básicas de vida para todos.”

Para Rodrigo “Kiko” Afonso, da Ação da Cidadania, a reversão rápida prova que políticas públicas eficazes e diálogo com a sociedade civil fazem diferença. Ainda assim, ele reforça: “A fome precisa de vigilância constante para que não haja retrocesso”.

A coordenadora da Rede Penssan, ­Silvia Zimmermann, destacou que a saída do Mapa da Fome é também resultado da mobilização popular: “Consolidamos uma vitória que resulta tanto das ações governamentais quanto, e principalmente, do engajamento da sociedade civil”.

Do Brasil para o mundo

O resultado também ganhou dimensão internacional. A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, lançada pelo Brasil durante a presidência do G20 em 2024, já reúne mais de cem países e diversas organizações internacionais. A ideia é compartilhar tecnologias sociais e estratégias que funcionaram aqui.

O ministro Wellington Dias explicou que a iniciativa destrava políticas que já existem, ampliando escala e eficiência. Hoje, países da África, do Caribe e da América Latina já aplicam experiências de inclusão produtiva, transferência de renda e proteção à infância inspiradas na trajetória brasileira.

Se o Brasil foi capaz de sair do Mapa da Fome em apenas dois anos, pode inspirar outros lugares do mundo a acelerar o mesmo caminho. Como disse Dias: “Saímos do Mapa da Fome, agora precisamos tirar a fome do mapa do Brasil. E queremos contribuir para que o mundo inteiro consiga o mesmo”.

Processo contínuo

O Plano Brasil Sem Fome organiza ações em três eixos: acesso à renda, alimentação adequada e mobilização social. Entre suas inovações estão a Política Nacional de Abastecimento Alimentar, o PAA nas Cozinhas Solidárias, o Mapa INSAN por município e o Monitoramento anual da fome pelo IBGE. São ferramentas que colocam o combate à fome como política de Estado, muito além de promessas de governo.

A meta agora é ir além: reduzir ano a ano a pobreza, ampliar a segurança alimentar e garantir que nenhuma família fique para trás. Cada cisterna construída, cada horta urbana cultivada, cada refeição servida é um passo nesse caminho. •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A mesa que se refaz’

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