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Zé Gotinha no exílio

A Paraíba é o único estado a atingir a meta de 95% das crianças vacinadas contra a poliomielite

Imagem: Kendra Helmmer/USAID
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Brasileiros de diferentes gerações cresceram na companhia de Zé Gotinha, que de tempos em tempos aparecia para convocar pais e crianças a se vacinar contra a poliomielite. O personagem nasceu em 1986, justamente quando a doença foi erradicada no Brasil, mas as crianças de hoje não têm mais essa referência. O simpático boneco parece ter sido abandonado em algum armário empoeirado do Ministério da Saúde.

O sumiço do Zé Gotinha representa falta de coordenação da Pasta na administração dos imunizantes. O País padece com o maior apagão vacinal das últimas quatro décadas. Dos 26 estados mais o Distrito Federal, apenas a Paraíba atingiu a meta de 95% das crianças vacinadas contra a pólio. Em todo o País, a cobertura atingiu 65,5% do público. Não por acaso, a campanha deste ano foi prorrogada até o fim de outubro. O problema é que, se a meta não for atingida, corre-se o risco do retorno dessa grave moléstia, que provoca atrofia muscular e paralisia dos membros inferiores. E o perigo estende-se a outras doenças que já haviam sido erradicadas.

“À medida que você tem no comando do Ministério da Saúde um grupo negacionista, antivacina, e um presidente da República que se recusa a tomar imunizante contra a Covid-19 e decreta sigilo de cem anos sobre a carteira de vacinação dele, isso coloca terror e injeta insegurança nas famílias, acontece literalmente um abandono de uma estratégia que transformou o Brasil numa referência de cobertura vacinal”, denuncia Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp. “Colocaram o Zé Gotinha no exílio.”

O Programa Nacional de Imunização existe desde 1973. É anterior, portanto, ao próprio Sistema Único de Saúde, concebido na Constituição de 1988. Atualmente, ele oferece 22 vacinas gratuitas, todas as recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, em mais de 38 mil salas de vacinação espalhadas pelo País. Desde 2015, essa estrutura vem sendo, porém, subutilizada. Nos últimos dois anos, o quadro agravou-se com o reforço de um discurso antivacina que saiu do submundo das fake news na internet e ganhou espaço no Palácio do Planalto e no próprio Ministério da Saúde.

Na maioria das doenças possíveis de se prevenir com vacinas, o ideal é que mais de 95% da população seja imunizada, porque só assim se alcança uma imunização coletiva. No caso da poliomielite, que acomete as crianças, a cobertura caiu para 84,2% em 2019, e para 75,9% em 2020. A Região Sudeste, que antes tinha 100% de cobertura, agora está em 77%.

Menos de dois terços das crianças estão protegidas. A inércia do Ministério da Saúde pode provocar o retorno de várias doenças erradicadas

Não foi só o vírus da pólio que voltou a rondar os lares brasileiros. Em 2014, o País havia recebido da OMS a declaração de erradicação do sarampo, cuja cobertura vacinal era de 100%, e agora despencou para 73,3%. Tuberculose, caxumba, ­difteria, rubéola e mais uma série de doenças controladas voltaram a ser ameaça, devido à baixa imunização. A vacina tríplice viral, por exemplo, atingiu apenas 79% da cobertura necessária em 2021. “O quadro é alarmante”, alerta Chioro.

A baixa cobertura vacinal se dá por diversos fatores, explica Rosana ­Richtmann, presidente do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia. “A população adquire confiança por meio de campanhas que mostrem os benefícios da vacinação. Hoje, vemos o contrário. As autoridades questionam se os imunizantes são eficazes, se fazem mais mal do que bem. Do ponto de vista prático, quem não entende do assunto fica extremamente inseguro de levar seu filho para vacinar.” No auge da pandemia de Covid, acrescenta a especialista, o assunto campeão de fake news era exatamente o das vacinas. “Levará anos para reverter o estrago.”

Richtmann destaca, ainda, as barreiras de acesso. “Muitas vezes os pais não conseguem imunizar seus filhos porque a vacina está em falta na unidade de saúde ou o profissional de lá não está bem informado sobre a indicação. Além disso, muitos postos só abrem em horário comercial. Nem todos podem perder um dia de trabalho para levar as crianças à vacinação.”

Na avaliação do sanitarista Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, ter na Presidência da República alguém que incentiva o discurso antivacina foi crucial para a população perder a confiança. “Isso é resultado não só de um movimento antivacinação, mas de um grau de legitimação institucional e política para essas teses. Fragilizadas, as instituições não conseguiram deter essa campanha de difamação.” O gestor observa, porém, que o acesso aos imunizantes é um direito da criança. “O pai, a mãe ou o responsável legal que impeça o usufruto desse direito pode vir a ser responsabilizado, por negligência, pelo Conselho Tutelar ou Ministério Público.”

Em meio às críticas pela baixa cobertura vacinal, o ministro Marcelo ­Queiroga esquiva-se, dizendo que os imunizantes estão disponíveis, mas a população brasileira tem memória curta, não se lembra da gravidade de doenças controladas ou erradicadas. “Não adianta ter vacina na prateleira, ela tem de chegar ao braço de quem precisa. E isso também é responsabilidade do Ministério da Saúde”, rebate Richtmann. O sanitarista Cláudio Maierovitch, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, acrescenta que essa memória pode ser construída através de campanhas de conscientização. “Desde 2015, a estratégia de comunicação foi abandonada. O governo precisa alertar para o risco do retorno dessas doenças. Somente assim os brasileiros retomarão a rotina de vacinação.”

Chioro é taxativo ao dizer que reconstruir a credibilidade do sistema de vacinação deve ser prioridade nos primeiros seis meses do eventual novo governo. “Precisamos anistiar o Zé Gotinha. É possível recuperar a capacidade de cobertura vacinal de antigamente. Temos a rede pronta, temos profissionais capacitados, só precisa de vontade política.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Zé Gotinha no exílio”

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