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A guerra entre milicianos e traficantes na Zona Oeste da capital puxa a alta de homicídios verificada no estado

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Combio interceptado. Uma operação policial na Avenida Brasil prendeu 15 criminosos e confiscou um arsenal com 12 fuzis, sete pistolas e duas granadas – Imagem: PMERJ/SSP/GOVRJ, PRF/Draco-PCRJ e Redes sociais
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Habitualmente engarrafada nos horários de pico, a Avenida Brasil, artéria com 58,5 quilômetros de extensão que liga as zonas Sul, Norte, Oeste e central da cidade do Rio de Janeiro à Via Dutra e aos municípios da Baixada Fluminense, entre outras conexões, ficou totalmente paralisada por quase três horas no início da manhã da quinta-feira 7. O nó no trânsito estendeu-se por dezenas de quilômetros, causou transtornos em vários bairros e fez com que milhares de pessoas chegassem atrasadas ao trabalho. Desta vez, não foi provocado por algum acidente automobilístico ou alagamento, mas por outro tipo de evento que já se tornou igualmente familiar aos cariocas: a guerra entre grupos de milicianos – e destes contra traficantes do Comando Vermelho – pelo controle territorial da Zona Oeste da capital.

Os conflitos em série na região incluem tentativas de invasão de comunidades, tiroteios com armas pesadas e execuções a céu aberto. Foram frequentes ao longo de 2023 e, segundo especialistas, explicam a alta de 7,4% no número de assassinatos ocorridos no Rio ano passado. Segundo o levantamento Monitor da Violência, um projeto do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do portal G1, foram 3.388 casos em todo o estado, média de nove assassinatos por dia. A coisa piorou nos primeiros dois meses de 2024, com a ocorrência de tentativas de invasão e troca de tiros nas favelas de Gardênia Azul, Anil, Muzema, Itanhangá, Rio das Pedras, Antares, Urucânia, Carobinha e Catiri.

Em 2023, foram registrados 3.388 assassinatos, média de nove por dia

Naquela manhã, o cenário de guerra na Avenida Brasil foi digno de uma produção hollywoodiana. Divididos em quatro veículos roubados, 16 integrantes de um dos grupos de milicianos que disputam o controle da Zona Oeste se dirigiam a Antares, em Santa Cruz, após participar durante toda a madrugada da “contenção” contra traficantes do CV que tentavam invadir a Favela da Carobinha, em Campo Grande. Até o fim do ano passado, ambas as comunidades eram controladas por ­Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, apontado pelo Ministério Público como chefe da principal milícia do Rio, que se entregou à polícia na véspera de Natal. A ­saída de cena de Zinho multiplicou os focos de conflito pelo controle do seu espólio, o que levou à criação de uma força-tarefa policial para monitorar a movimentação dos grupos criminosos. Previamente informada, uma equipe formada por agentes das polícias Civil, Militar e Rodoviária Federal interceptou o bonde miliciano. Após intenso tiroteio, com direito a carros abandonados e ônibus atravessado na pista, 15 milicianos foram presos – seis deles baleados – e um arsenal apreendido: 12 fuzis, sete pistolas, duas granadas, 58 carregadores e 1,5 mil projéteis.

Apesar do aumento da letalidade, o número de ocorrências com troca de tiros em 2023 diminuiu, em média, 18% em todas as regiões metropolitanas do Rio, exceto na Zona Oeste. Um levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado aponta aumento de 53% nos casos registrados na região, que viu dobrar o número de assassinatos (104%). O documento traz ainda detalhes pitorescos que revelam o modus operandi das milícias, como o caso de um único logradouro na Favela do Anil, a Rua Araticum, onde 20 pessoas foram baleadas – 14 morreram – no primeiro semestre de 2023. Com a guerra em patamar mais elevado em 2024, a região registrou, no mês passado, 73 tiroteios, com 12 mortos e 22 feridos. Em janeiro, foram 50 tiroteios, com 16 mortos e oito feridos. “A Zona Oeste chama atenção. É grave o que acontece ali”, afirma Cecília Oliveira, especialista em Segurança Pública e diretora-executiva do Instituto.

Procurado. O líder do CV que autorizou o ataque aos médicos na Barra foi absolvido pelo “tribunal do tráfico” e segue foragido – Imagem: Redes sociais

Pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes classifica como “preocupante” a escalada da violência na Zona Oeste do Rio. “Há uma disputa sangrenta pelo domínio territorial e a violência armada é ferramenta de atuação nesses conflitos”, diz. O especialista avalia que a complexidade do crime na região é uma questão de segurança pública que não pode ser resolvida apenas pelo governo ­estadual, já que os grupos criminosos têm cada vez mais adquirido expressão nacional: “Se não tivermos atenção para esse aspecto, não se vai conseguir produzir mudanças significativas e profundas na estrutura dessas organizações da milícia e do tráfico e diminuir a violência que elas utilizam para manter o controle dos seus territórios e fluxos financeiros”.

O CESeC propõe maior envolvimento de outras esferas de poder em um esforço para dar mais segurança à população da Zona Oeste e também de outras regiões do Rio. “O governo federal seria muito bem-vindo, mas também o governo municipal, que atua de maneira muito periférica no que se refere à segurança pública. A prefeitura poderia ter um papel mais importante no endereçamento de outras faces que se expressam na violência registrada todos os dias na cidade do Rio de Janeiro e que os bairros da Zona Oeste têm enfrentado especialmente nesses últimos anos.”

Nunes chama atenção para o fato de que não são somente milicianos e traficantes que trazem terror à Zona Oeste. Velha conhecida, a violência de Estado também se faz presente: “A polícia vem tendo um papel importante nesse aumento da violência por lá. A Zona Oeste é uma das ­áreas que registraram o maior aumento de mortes decorrentes de intervenção policial, em linha contrária ao movimento a que assistimos no estado. Não é só o processo de disputa entre grupos criminosos que tem inflado os números de disparos de armas de fogo”. Para o pesquisador, o uso que as polícias fluminenses fazem da violência armada “é algo sem paralelo com outros estados ou países” e deveria ser um objeto de atenção especial das autoridades: “Esse é um ponto fundamental e inescapável, se quisermos mudar o estado das coisas no Rio de Janeiro”.

Em uma única rua da favela do Anil, 20 pessoas foram baleadas no primeiro semestre de 2023. Destas, 14 morreram

Além do aumento no número de disparos de armas de fogo e mortes violentas, a Zona Oeste tem registrado a expansão de outras modalidades criminosas. É o caso da extorsão a moradores, comerciantes, empresas e até mesmo concessionárias de serviços de telefonia, luz e gás que ­atuam na região e são coagidos a pagar “pedágios” ou “taxas de segurança”, prática fundadora das milícias no Rio. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado ao governo estadual, no ano passado foram registradas 3.264 ocorrências de extorsão, com casos em todos os 26 bairros da Zona Oeste carioca, aumento de 42% em relação a 2022.

Em nota, a Polícia Civil explica aquilo que até as pedras das calçadas na região já sabem: “O aumento nos casos de extorsão explica-se, em parte, pela exploração de territórios por organizações criminosas, sejam milícias, que tradicionalmente fazem cobranças ilegais, sejam facções do tráfico de drogas, que vêm adotando essa prática”. Todos os casos são investigados, juram as autoridades. “As equipes das delegacias distritais, da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) trocam informações, realizam trabalhos de inteligência e fazem diligências para identificar e prender os envolvidos.”

O governo de Cláudio Castro resolveu intervir na guerra entre criminosos na Zona Oeste, após dois casos que tiveram repercussão nacional, ambos ocorridos na região em outubro no ano passado. Em um deles, os médicos ­Marcos ­Corsato, Perseu Almeida e ­Diego ­Bonfim, que participavam de um congresso e confraternizavam em um quiosque na orla da Barra da Tijuca foram assassinados após um deles ser confundido por integrantes do Comando Vermelho com um miliciano rival na guerra pelo controle das comunidades de Rio das Pedras, Gardênia Azul e ­Cidade de Deus. No outro, 35 ônibus, diversas estações de BRT, quatro caminhões e até mesmo uma composição de trem foram incendiados por grupos organizados em diversas comunidades após a morte, pela polícia, do miliciano Matheus da Silva Rezende, o Faustão, sobrinho de Zinho.

Elos. Lucinha nega relação com as milícias. A PM Vaneza Lobão foi executada por colegas – Imagem: Redes sociais e Alerj

Incapaz de enfrentar as milícias, a estratégia do governo é sufocar o Comando Vermelho para diminuir o contingente de traficantes empregado nas invasões às favelas da Zona Oeste. No penúltimo dia de fevereiro, 500 agentes das polícias Civil e Militar foram mobilizados em incursões em 13 comunidades controladas pela facção, com um saldo de nove mortos, 15 linhas de ônibus interrompidas e 73 escolas fechadas. Dez pessoas foram presas, além de nove fuzis e dez pistolas apreendidos, mas o principal alvo da operação, Juan Breno Rodrigues, o BMW, não foi encontrado. O traficante com nome de possante é, segundo a polícia, líder da Equipe Sombra, ala do CV responsável pelo combate aos milicianos. Investigações apontam que BMW teria autorizado o ataque aos médicos na Barra. Pelo erro, foi julgado pelo “tribunal do tráfico”, mas acabou absolvido.

Na guerra da Zona Oeste, a polícia também mata a si própria. Elogiada pelos superiores por seu trabalho de inteligência na 8ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar, onde produzia relatórios e mapeamentos sobre o envolvimento de policiais com as milícias da região, a cabo Vaneza Lobão, da PM, foi executada com cinco tiros na cabeça e no tórax em frente ao portão de sua casa em Santa Cruz. Dois outros policiais militares, um lotado no batalhão do bairro e outro no Recreio dos Bandeirantes, foram apontados pelas investigações como autores do crime e estão presos.

A política fluminense também não escapa da contaminação pelo poder paralelo. Campeã de votos na Zona Oeste, a deputada estadual Lúcia Helena Barros, popularmente conhecida como Lucinha, do PSD, foi apontada em investigação da Polícia Federal como aliada da milícia de Zinho, atuando em defesa de atividades ilegais, como o transporte clandestino, ou intervindo na nomeação de comandantes dos batalhões da região. Chamada de “madrinha” pelos milicianos em gravações telefônicas obtidas pela PF, Lucinha nega as acusações. “Nunca tive qualquer envolvimento com organização criminosa nem nunca fui braço de milícia, como dizem por aí”, disse a parlamentar, após ter seu afastamento da Assembleia Legislativa do Rio recusado pelo plenário por 52 votos a 12. •

Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

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