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As evidências científicas são demolidoras em relação aos danos à saúde causados pelos agrotóxicos

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Sem controle. Das 504 substâncias liberadas para uso em 2020 no País, 146 estavam banidas do mercado europeu – Imagem: iStockphoto
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A utilização de agrotóxicos teve início na década de 1950, nos EUA, com a chamada “Revolução Verde”, destinada a modernizar a agricultura e aumentar a sua produtividade. Dez anos depois, esse movimento chegou ao Brasil e ganhou força na década de 1970, com a implantação do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas, o PNDA. Essas propostas estavam atreladas à promessa de superação da fome por meio do uso da tecnologia. Passado mais de meio século, a insegurança alimentar persiste no mundo. Somente no País havia 33 milhões de famintos em 2023, segundo o IBGE.

O Brasil é um dos principais produtores agrícolas do mundo. Em 2020, foram cultivados 83.396.004 hectares, somadas as lavouras temporárias e permanentes, um aumento de 27,6% em comparação a 2010. Nesse mesmo intervalo de tempo, houve um aumento de 78,3% na quantidade de agrotóxicos comercializados no Brasil, de acordo com o Ibama. Em números absolutos, estamos falando de 384.501,28 toneladas de ingredientes ativos vendidos em 2010, quantitativo que chegou a 685.745,68 toneladas em 2020.

De 2010 a 2020, o consumo de pesticidas cresceu 78,3%, levando o Brasil ao topo do ranking mundial

Dessa forma, podemos constatar que a quantidade de agrotóxicos comercializados no Brasil aumentou cerca de três vezes mais na comparação com o crescimento de áreas cultivadas no País. Segundo dados da Anvisa, do total de ingredientes ativos de agrotóxicos com registro para uso em 2020 (504 no total), 397 eram produtos químicos produzidos industrialmente, sendo 146 desses sem comercialização e uso permitidos na Europa. Nesse sentido, o nosso mercado de agrotóxicos expandiu rápida e assustadoramente na última década, colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial de consumo, incluindo os pesticidas que estão proibidos na União Europeia por riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Especificamente, o Rio Grande do Sul apresentou quase o dobro do consumo de agrotóxicos da média nacional. Na safra de 2009/2010, o estado utilizou 85 milhões de litros, o equivalente ao consumo de 8,3 litros por cidadão gaúcho a cada ano, enquanto a média nacional foi de 4,5 litros por pessoa.

Essas informações demonstram com clareza as consequências para a população pelo consumo diário de alimentos contaminados por agrotóxicos, que representam 70% dos alimentos in natura consumidos no Brasil. Esse quadro demonstra ainda a importância de analisar a questão dos agrotóxicos de forma transdisciplinar e sob diversos aspectos, dados os múltiplos efeitos relacionados desde a produção até o consumo de alimentos, tendo como princípio a garantia dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais) e o desenvolvimento sustentável.

Alerta. Na lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, o Ministério da Saúde destaca males causados pelos defensivos agrícolas – Imagem: Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar

Infelizmente, é amplamente conhecido que os agrotóxicos trazem graves impactos ao meio ambiente e à saúde humana. Nesse sentido, corroboramos a proposta atual de que a utilização desses produtos no País deve ser considerada uma emergência em saúde pública, tendo em vista a amplitude da população exposta nas fábricas de agrotóxicos e em seu entorno, na agricultura, nas proximidades de áreas agrícolas, além de todos nós, consumidores de alimentos contaminados. Estima-se que entre 500 mil e 2,9 milhões de pessoas no mundo são intoxicadas por agrotóxicos anualmente, com uma taxa de mortalidade de, aproximadamente, 1%. De fato, vários estudos nacionais e internacionais relacionam diversos efeitos agudos e crônicos de saúde à exposição aos agrotóxicos, incluindo efeitos dermatológicos, visuais, auditivos, respiratórios, gastrointestinais, cardiovasculares, de fertilidade, cancerígenos e neuropsiquiátricos.

Nesse sentido, importantes exemplos devem ser explicitados. Alguns estudos têm demonstrado que o uso ocupacional e residencial de agrotóxicos pode estar associado ao melanoma cutâneo, pois a exposição da pele é a principal via de absorção pelos indivíduos expostos. Além disso, como os agrotóxicos são ingeridos como resíduos na água e nos alimentos, é muito provável que esses produtos químicos sintéticos perturbem a composição e funcionalidade da flora intestinal, provocando numerosas doenças. Como a exposição humana aos agrotóxicos pode ocorrer cotidianamente no local de trabalho, no agregado familiar e através do ambiente, tem sido constatado que esse contato está associado ao aparecimento de tosse, chiado no peito e inflamação das vias aéreas, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, função pulmonar prejudicada e câncer de pulmão.

Paralelamente, tem sido notado que o uso excessivo de agrotóxicos altera o desenvolvimento reprodutivo e sexual, causando perturbações do ciclo ­menstrual, redução da fertilidade, defeitos no desenvolvimento fetal e aborto espontâneo. Dessa forma, é muito importante ressaltar que a exposição das crianças aos agrotóxicos deve ser extremamente limitada, pois os fetos, os bebês e as crianças apresentam maior suscetibilidade em relação aos adultos. Vale destacar que a utilização de agrotóxicos por pais e mães pode causar efeitos adversos no nascimento, incluindo má-formação congênita, baixo peso ao nascer e até mesmo morte fetal. Não bastasse, crianças expostas aos agrotóxicos têm maior risco de apresentar dificuldades no seu desempenho neurocomportamental, neurocognitivo ou neuromotor.

A exposição a agrotóxicos está associada a um aumento de 5% a 11% no risco de aparecimento do Mal de Parkinson

Seguindo esta linha de raciocínio, tem-se verificado que algumas espécies de agrotóxicos – a exemplo dos carbamatos, organoclorados e organofosforados – podem causar sérios danos ao cérebro, sendo considerados potentes fatores de risco para o surgimento de doenças neurodegenerativas. Tem sido descrito, por exemplo, que de cinco a dez anos de exposição a agrotóxicos estejam associados a um aumento de 5% a 11% no risco de aparecimento da Doença de Parkinson, um dos mais comuns males neurodegenerativos no mundo. Paralelamente, vários agrotóxicos produzem efeitos neurológicos adversos de forma indireta, desequilibrando os mecanismos celulares que mantêm a atividade metabólica do cérebro. Além disso, a exposição dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais aos agrotóxicos potencializa o surgimento de casos de ansiedade e depressão, afetando com maior gravidade a saúde mental. Infelizmente, os casos de suicídio nesses ­indivíduos cresceram o dobro da média nacional.

Com relação ao câncer, o cenário é muito semelhante. Assim, um grupo de cientistas brasileiros realizou uma revisão da literatura médica para verificar a relação existente entre o aparecimento de casos de câncer e a exposição aos agrotóxicos em agricultores, populações rurais, aplicadores de agrotóxicos e trabalhadores rurais. As associações mais consistentes encontradas foram câncer de próstata, linfoma não Hodgkin, leucemia, mieloma múltiplo, câncer de bexiga e de cólon. Nesse sentido, nossos pesquisadores acreditam que existem evidências suficientes para recomendar que os pacientes reduzam a exposição a todos os agrotóxicos.

Vítimas. Quem manipula pesticidas está muito mais vulnerável a moléstias neurodegenerativas, revelam pesquisas – Imagem: iStockphoto

Vale registrar como importante avanço no âmbito do SUS a recente inclusão dos agrotóxicos na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), prevista na Portaria GM/MS nº 1.999/2023, publicada em 29 de novembro de 2023. Essa lista em vigor é composta de duas partes: a primeira apresenta os riscos para o desenvolvimento de doenças; a segunda estabelece as doenças para identificação, diagnóstico e tratamento. A quantidade de códigos de diagnósticos passou de 182 para 347, ou seja, foram incorporadas 165 novas doenças que causam danos à integridade física ou mental do trabalhador. Houve, portanto, reconhecimento oficial, pelo Ministério da Saúde, dos agrotóxicos entre os fatores de risco para o desenvolvimento de doenças, com a especificação dos códigos das doenças relacionadas, refletindo os avanços largamente demonstrados pela ciência.

Em linhas gerais, as ações devastadoras dos agrotóxicos na saúde humana, que afetam as pessoas expostas à contaminação a partir do trabalho e da produção na agricultura, assim como a partir do consumo de alimentos pela população em geral, demandam cada vez mais atenção. Como tema de relevante interesse público, é preciso aprofundar o debate qualificado nas diversas áreas e setores da sociedade, com o uso de evidências científicas e o fortalecimento da gestão integrada de políticas públicas. •


*Fulvio Alexandre Scorza é professor do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e coordenador científico do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Larissa Beltramim é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do MDA.

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Veneno à mesa’

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