Política

Vem aí a ‘bancada do pet’

A eleição de um candidato que usou fotos de um cão na campanha mostra que a bandeira pró-animais é um novo manancial de votos

Campanha do deputado Tripolo, do PV: apelo aos animais e recorde de votos
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O vereador mais votado na maior cidade da América do Sul é uma entidade sem rosto. Durante os meses da campanha eleitoral, ele espalhou cartazes e cavaletes com o número da sua candidatura e fotos de um cãozinho (aparentemente um border collie). Assim, apresentando-se como protetor dos animais, Roberto Tripoli, do PV, conseguiu 132.313 votos em São Paulo, mais que o triplo da votação recebida em 2008 (45.750).

O sucesso nas urnas confirma uma tendência perceptível ao longo da campanha, talvez a principal novidade das eleições de 2012. Há cerca de duas semanas, durante uma caminhada num domingo de manhã numa cidade do interior, vi um candidato a vereador panfletando em meio a uma feira de adoção de animais. Estranho, pensei comigo: tempos atrás, a campanha política se resumia a barulhentos comícios em portas de fábricas ou ruas comerciais, sempre com promessas de combater as crueldades de um velho modelo econômico. De repente o candidato, de quem não tenho ideia se é forjado à esquerda ou à direita do espectro político, tentava reunir em si um valor aparentemente à margem das grandes preocupações humanas (o desemprego, a segurança, os problemas no trânsito). Fazia, em vez disso, um apelo à sensibilidade. “Como você, eu também me importo com o abandono dos animais”.

Pouco depois, descobri que na cidade onde nasci, também no interior paulista, a mesma sensibilidade do eleitor era disputada por postulantes à Câmara Municipal. Se a moda pegar nas eleições de 2014, teremos muito em breve candidatos recordistas de votos espalhados pelas macrorregiões com um discurso infalível. Formarão a bancada do pet.

Essas candidaturas, consagradas pelo sucesso nas urnas de Roberto Tripoli, dão margem para duas interpretações. Uma delas, otimista, é que o sistema representativo chegou a um outro patamar. Nesse processo, o eleitor entende que as chamadas grandes questões estão, mal e mal, encaminhadas: o governo federal zela pelo tripé meta de inflação/câmbio flutuante/superávit fiscal, pelas políticas sociais e pela criação de empregos; o governo estadual zela pela segurança, pela garantia desses mesmos empregos e pelas parcerias com União e municípios para habitação, transporte, educação, etc; o prefeito toma sua parte nessas parcerias e tenta fazer da cidade um ambiente mais saudável da porta de casa para fora. Nessa, o pobre é contemplado com políticas de proteção social, o jovem, com mecanismo de entrada para a escola e a universidade, o adulto trabalha e o idoso vive da sua aposentadoria. Pode-se dizer que nada disso seja suficiente, mas os serviços, parte deles assegurada pelo poder público, existem.

E os animais? Estes não votam, não falam, não se organizam e ainda tomam pedradas e chutes no traseiro de quem não tem paciência para os seus latidos. Cansada de levar esses degredados filhos para casa, essa parte do eleitorado começa a cobrar medidas do poder público, como abrigos especiais e políticas específicas (para os centros de zoonoses, castração, adoção, campanhas contra maus tratos, etc). Pode-se questionar a urgência dessa demanda, mas ela existe. Sorte do candidato que captou essa tendência e, deslocado do discurso tradicional, conseguiu reunir votos à direita e à esquerda. Porque não basta ser humano: é preciso dizer não à qualquer forma de agressão física contra qualquer ser vivo. É quase um imperativo. E é bom que seja assim.

Ainda é cedo para dizer se esta demanda (junto com outras relacionadas à chamada expressão subjetiva) é consequência de um momento histórico que os cientistas políticos chamam de “pós-materialismo”, quando os limites estritos da sobrevivência material e econômica são superados e os indivíduos passam a se preocupar (e a cobrar do poder público) com outras questões, como o meio ambiente e o direito à livre expressão. Pode ser exagero colocar a sensibilidade sobre os animais na lista desse processo. Mas a bandeira existe e ganha voto, esteja ela onde estiver.

A outra explicação pode ser encontrada numa lógica mais perversa, a de degradação das relações humanas. Este processo comum das grandes cidades foi lembrado pela filósofa Marilena Chaui em um debate recente promovido pela USP sobre conservadorismo em São Paulo. No evento, a filósofa chegou a usar a expressão “feras indomáveis” para descrever o cidadão, no caso o paulistano, que é dócil na vida familiar e agressivo na vida pública. É o cidadão que buzina, grita, xinga, ameaça e agride quem divide com ele um espaço coletivo, como as ruas, as faixas de trânsito, os estacionamentos, a mesa no restaurante, etc.

Um cidadão, por fim, que tem dificuldade em reconhecer a humanidade no “outro”, que lhe é sempre uma ameaça – e de quem o Estado deve mantê-lo afastado. Daí a origem do discurso conservador, agressivo, de quem cobra desse Estado ações violentas para proteger tudo o que tem (geralmente uma casa e um carro).

Nesse processo, vejo com certo receio uma contradição aparente de humanização dos animais e animalização do ser humano. Tal inversão ficou clara, há cerca de um ano, quando tomou forma uma corrente pró-linchamento contra uma mulher flagrada agredindo um cão. Que as pessoas se sensibilizem com o episódio é compreensivo. Que desdenhem do rito comum da Justiça, que poderia condenar a agressora no rigor civilizado expresso pela lei, é no mínimo preocupante. Porque, naquele episódio, as pessoas não pareciam pedir Justiça. Pediam justiça, com “j” minúscula, aquela feita com as próprias mãos. O animal a maltratar outro animal é linchado por outros animais e o longo processo de civilização histórico chega assim ao seu ponto de origem.

Esta divinização do pet, tal qual uma vaca na Índia, se cristaliza num momento de reinado da competição e da agressividade psicológica das relações humanas no ambiente de trabalho, na família, nas ruas, na fila do supermercado. Raro como ouro em pó, o conceito de “lealdade” ganha então não apenas um valor, mas uma representação. Vide a declaração do vereador reeleito, idealizador do primeiro Hospital Público Veterinário do Brasil, ao comentar sua consagração nas urnas: “quanto mais conheço o ser humano, mais gosto dos animais”.

Não é só ele.

Basta ver o expressivo apoio recebido por um novo tipo de eleitor. Um eleitor que é ainda uma incógnita. Não se sabe se essa super-sensibilidade advém da noção de que a humanidade, superadas as limitações materiais e de sobrevivência, necessita agora de outro modelo de liderança política – e pode se dar ao luxo de cuidar de assuntos como o direito dos animais – ou se do desprezo, simplesmente, às limitações (sociais e econômicas) que este eleitor não reconhece para além das próprias causas. Não significa, obviamente, que o defensor dos direitos dos animais desdenhe dos direitos humanos. É possível apenas que tenha uma noção mais ampliada do significado das palavras “proteção” e “humanidade”. Ou a tenha encolhido. De toda forma, essa nova consciência, a se fiar pelo resultado das urnas em São Paulo, é mais comum do que se imagina. E se transformou em 2012 num verdadeiro manancial de votos.

O vereador mais votado na maior cidade da América do Sul é uma entidade sem rosto. Durante os meses da campanha eleitoral, ele espalhou cartazes e cavaletes com o número da sua candidatura e fotos de um cãozinho (aparentemente um border collie). Assim, apresentando-se como protetor dos animais, Roberto Tripoli, do PV, conseguiu 132.313 votos em São Paulo, mais que o triplo da votação recebida em 2008 (45.750).

O sucesso nas urnas confirma uma tendência perceptível ao longo da campanha, talvez a principal novidade das eleições de 2012. Há cerca de duas semanas, durante uma caminhada num domingo de manhã numa cidade do interior, vi um candidato a vereador panfletando em meio a uma feira de adoção de animais. Estranho, pensei comigo: tempos atrás, a campanha política se resumia a barulhentos comícios em portas de fábricas ou ruas comerciais, sempre com promessas de combater as crueldades de um velho modelo econômico. De repente o candidato, de quem não tenho ideia se é forjado à esquerda ou à direita do espectro político, tentava reunir em si um valor aparentemente à margem das grandes preocupações humanas (o desemprego, a segurança, os problemas no trânsito). Fazia, em vez disso, um apelo à sensibilidade. “Como você, eu também me importo com o abandono dos animais”.

Pouco depois, descobri que na cidade onde nasci, também no interior paulista, a mesma sensibilidade do eleitor era disputada por postulantes à Câmara Municipal. Se a moda pegar nas eleições de 2014, teremos muito em breve candidatos recordistas de votos espalhados pelas macrorregiões com um discurso infalível. Formarão a bancada do pet.

Essas candidaturas, consagradas pelo sucesso nas urnas de Roberto Tripoli, dão margem para duas interpretações. Uma delas, otimista, é que o sistema representativo chegou a um outro patamar. Nesse processo, o eleitor entende que as chamadas grandes questões estão, mal e mal, encaminhadas: o governo federal zela pelo tripé meta de inflação/câmbio flutuante/superávit fiscal, pelas políticas sociais e pela criação de empregos; o governo estadual zela pela segurança, pela garantia desses mesmos empregos e pelas parcerias com União e municípios para habitação, transporte, educação, etc; o prefeito toma sua parte nessas parcerias e tenta fazer da cidade um ambiente mais saudável da porta de casa para fora. Nessa, o pobre é contemplado com políticas de proteção social, o jovem, com mecanismo de entrada para a escola e a universidade, o adulto trabalha e o idoso vive da sua aposentadoria. Pode-se dizer que nada disso seja suficiente, mas os serviços, parte deles assegurada pelo poder público, existem.

E os animais? Estes não votam, não falam, não se organizam e ainda tomam pedradas e chutes no traseiro de quem não tem paciência para os seus latidos. Cansada de levar esses degredados filhos para casa, essa parte do eleitorado começa a cobrar medidas do poder público, como abrigos especiais e políticas específicas (para os centros de zoonoses, castração, adoção, campanhas contra maus tratos, etc). Pode-se questionar a urgência dessa demanda, mas ela existe. Sorte do candidato que captou essa tendência e, deslocado do discurso tradicional, conseguiu reunir votos à direita e à esquerda. Porque não basta ser humano: é preciso dizer não à qualquer forma de agressão física contra qualquer ser vivo. É quase um imperativo. E é bom que seja assim.

Ainda é cedo para dizer se esta demanda (junto com outras relacionadas à chamada expressão subjetiva) é consequência de um momento histórico que os cientistas políticos chamam de “pós-materialismo”, quando os limites estritos da sobrevivência material e econômica são superados e os indivíduos passam a se preocupar (e a cobrar do poder público) com outras questões, como o meio ambiente e o direito à livre expressão. Pode ser exagero colocar a sensibilidade sobre os animais na lista desse processo. Mas a bandeira existe e ganha voto, esteja ela onde estiver.

A outra explicação pode ser encontrada numa lógica mais perversa, a de degradação das relações humanas. Este processo comum das grandes cidades foi lembrado pela filósofa Marilena Chaui em um debate recente promovido pela USP sobre conservadorismo em São Paulo. No evento, a filósofa chegou a usar a expressão “feras indomáveis” para descrever o cidadão, no caso o paulistano, que é dócil na vida familiar e agressivo na vida pública. É o cidadão que buzina, grita, xinga, ameaça e agride quem divide com ele um espaço coletivo, como as ruas, as faixas de trânsito, os estacionamentos, a mesa no restaurante, etc.

Um cidadão, por fim, que tem dificuldade em reconhecer a humanidade no “outro”, que lhe é sempre uma ameaça – e de quem o Estado deve mantê-lo afastado. Daí a origem do discurso conservador, agressivo, de quem cobra desse Estado ações violentas para proteger tudo o que tem (geralmente uma casa e um carro).

Nesse processo, vejo com certo receio uma contradição aparente de humanização dos animais e animalização do ser humano. Tal inversão ficou clara, há cerca de um ano, quando tomou forma uma corrente pró-linchamento contra uma mulher flagrada agredindo um cão. Que as pessoas se sensibilizem com o episódio é compreensivo. Que desdenhem do rito comum da Justiça, que poderia condenar a agressora no rigor civilizado expresso pela lei, é no mínimo preocupante. Porque, naquele episódio, as pessoas não pareciam pedir Justiça. Pediam justiça, com “j” minúscula, aquela feita com as próprias mãos. O animal a maltratar outro animal é linchado por outros animais e o longo processo de civilização histórico chega assim ao seu ponto de origem.

Esta divinização do pet, tal qual uma vaca na Índia, se cristaliza num momento de reinado da competição e da agressividade psicológica das relações humanas no ambiente de trabalho, na família, nas ruas, na fila do supermercado. Raro como ouro em pó, o conceito de “lealdade” ganha então não apenas um valor, mas uma representação. Vide a declaração do vereador reeleito, idealizador do primeiro Hospital Público Veterinário do Brasil, ao comentar sua consagração nas urnas: “quanto mais conheço o ser humano, mais gosto dos animais”.

Não é só ele.

Basta ver o expressivo apoio recebido por um novo tipo de eleitor. Um eleitor que é ainda uma incógnita. Não se sabe se essa super-sensibilidade advém da noção de que a humanidade, superadas as limitações materiais e de sobrevivência, necessita agora de outro modelo de liderança política – e pode se dar ao luxo de cuidar de assuntos como o direito dos animais – ou se do desprezo, simplesmente, às limitações (sociais e econômicas) que este eleitor não reconhece para além das próprias causas. Não significa, obviamente, que o defensor dos direitos dos animais desdenhe dos direitos humanos. É possível apenas que tenha uma noção mais ampliada do significado das palavras “proteção” e “humanidade”. Ou a tenha encolhido. De toda forma, essa nova consciência, a se fiar pelo resultado das urnas em São Paulo, é mais comum do que se imagina. E se transformou em 2012 num verdadeiro manancial de votos.

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