Política
Utopia tropical
Com homenagens a ícones da esquerda, a prefeitura de Maricá quer tirar do papel 13 projetos de Niemeyer


Falecido em maio último, José “Pepe” Mujica será para sempre lembrado em Maricá, no litoral fluminense. O ex-presidente do Uruguai dará nome à nova unidade do Campus de Educação Pública Transformadora, programa de educação em tempo integral desenvolvido pela prefeitura da cidade, administrada há mais de 16 anos pelo PT. Mujica engrossa a lista de ícones da esquerda – nacionais e internacionais – homenageados em equipamentos públicos e programas sociais. Com isso, o prefeito Washington Quaquá também busca reforçar, no turismo e na cultura local, uma identidade progressista construída ao longo dos últimos anos, a partir do pioneirismo na adoção de políticas públicas como tarifa zero no transporte coletivo, cursos pré-vestibulares gratuitos e a moeda social Mumbuca.
Campeã nacional do recebimento de royalties em 2024, cerca de 3 bilhões de reais, segundo a Agência Nacional de Petróleo, a cidade já abriga o Cine Henfil, o Museu Darcy Ribeiro e o Hospital Ernesto Che Guevara. Pretende, agora, ampliar a lista de homenageados em grande estilo. Quaquá comprou, por 73 milhões de reais, 13 projetos de Oscar Niemeyer, e a ideia é colocar de pé alguns deles até 2028, quando acaba seu mandato. Entre as prioridades estão o futuro Estádio João Saldanha, com capacidade para 30 mil espectadores, e o Memorial João Goulart, dedicado à preservação do acervo pessoal do ex-presidente, deposto pelos militares em 1964. O Teatro Ballet de Cuba e o Museu de Arte de Maricá são outros projetos do arquiteto que deverão ganhar vida em breve.
“Niemeyer é um dos maiores gênios da arquitetura mundial, um sinônimo de Brasil”, afirma Quaquá, que já governou Maricá entre 2009 e 2016 e está em seu terceiro mandato como prefeito. O petista assegura que o arquiteto, falecido em 2012, “tem raízes” no município. “Seu avô tinha uma fazenda na região do Bananal, onde Oscar passou boa parte da infância. Vamos executar todos os projetos que adquirimos do escritório administrado pelo seu neto. Em breve, vamos lançar as licitações”, avisa. A primeira obra a ser construída será o teatro que abrigará a sede brasileira do Ballet de Cuba. “Será uma honra e uma alegria ser a segunda cidade do Brasil com mais obras de Niemeyer, atrás apenas de Brasília.”
Ao Cine Henfil, ao Museu Darcy Ribeiro e ao Hospital Guevara devem juntar-se o Estádio João Saldanha e o Memorial Goulart
Quaquá ressalta a importância da escolha dos nomes históricos para a construção da identidade da cidade. “Eles são farol e inspiração para todos da esquerda. E, para além da ideologia, todos os homenageados foram seres humanos extraordinários, que fizeram da solidariedade e do humanismo suas maiores bandeiras.” A CartaCapital o prefeito anuncia outra novidade: também a partir de um projeto de Niemeyer será erguido, até o fim do ano que vem, o Monumento à Paz Sebastião Salgado. Nos próximos anos, a prefeitura pretende também celebrar outras personalidades que mantiveram laços com a cidade, como as cantoras Beth Carvalho e Maysa, que terão museus culturais com seus nomes instalados nas casas de praia que compraram e frequentavam em Maricá.
Já observada entre os turistas, a curiosidade em conhecer e tirar fotos nos locais batizados com nomes de ícones da esquerda é um elemento que pode reforçar a vocação de Maricá como uma “Meca progressista”, além de impulsionar o turismo de verão, que ainda tem um retorno econômico inferior ao observado nas cidades vizinhas da Região dos Lagos, como Saquarema e Búzios. “Oscar Niemeyer é um ícone mundial e a presença de projetos dele atrai a atenção de pesquisadores, estudantes e turistas interessados em cultura, arquitetura e história. Ao mesmo tempo, a escolha dos nomes reforça uma narrativa de cidade que valoriza a luta social e a cultura popular. Trata-se de um turismo cultural e de memória que pode dialogar tanto com visitantes do Brasil quanto de fora”, diz o ator Antônio Grassi, presidente da Empresa de Cultura e Turismo de Maricá.
Secretária municipal de Comunicação, Danielle Oliveira diz que a escolha de nomes progressistas não é somente uma homenagem, mas também um posicionamento. “Maricá tem buscado afirmar-se como uma cidade que valoriza a memória de personalidades que lutaram por justiça social, educação, cultura e direitos humanos. Quando a população encontra referências como Che Guevara, Henfil e Darcy Ribeiro nos equipamentos públicos, isso transmite a ideia de uma cidade comprometida com um projeto que dialoga com a inclusão e uma visão crítica do nosso tempo”, explica Danielle.
Projetos. O Estádio João Saldanha e o Hotel Maricá saíram da pena de Niemeyer – Imagem: Redes Sociais/Prefeitura de Maricá/RJ
A identificação com a esquerda também se reflete em outras iniciativas da prefeitura, como o bem-sucedido curso preparatório para vestibulares, que aprovou 151 estudantes no último processo seletivo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Criado em 2016, o programa recebeu o nome de “Pré-Enem Iara Iavelberg”, em homenagem à professora e psicóloga marxista que aderiu à luta armada e foi assassinada pela ditadura em 1971. “A proposta é ampliar o acesso da população de Maricá ao ensino superior, além de valorizar personalidades históricas que, apesar de sua importância, muitas vezes não são lembradas”, afirma o professor Wiliam Campos, idealizador do projeto.
Ex-secretário estadual de Educação do Rio, Campos afirma que a escolha de Iavelberg é simbólica, “por ela ter sido uma mulher atuante no movimento estudantil, o que dialoga com o público jovem que hoje se prepara para o Enem”. No entanto, enfatiza o professor, o programa não possui orientação partidária ou ideológica em seu conteúdo pedagógico. Segundo ele, “o foco é garantir inclusão e oportunidade para todos os estudantes”.
Presidente da Companhia de Desenvolvimento de Maricá (Codemar), Celso Pansera, que foi ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação no governo de Dilma Rousseff, enxerga um projeto mais amplo de desenvolvimento econômico e social do município. “A nova economia que queremos construir em Maricá funcionará na base da inovação, com a implantação do Polo Tecnológico e de institutos de pesquisa, mas será também uma economia da cultura e do turismo, já que a cidade tem vocação cultural, em razão de sua história, e também belezas naturais.”
“Ideias que nasceram há décadas ganharão vida”, celebra Carlos Eduardo Niemeyer, neto do arquiteto que encantou o mundo
Para o arquiteto Carlos Eduardo Niemeyer, administrador do Escritório de Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer, a venda dos projetos vai além da questão financeira. “O que realmente importa é a possibilidade de expandir o legado de Niemeyer. Cada projeto que se concretiza é uma forma de trazer à realidade um pouco mais do seu pensamento, do seu olhar generoso sobre a arquitetura e o mundo.” Seu avô, acrescenta, sempre acreditou que a arquitetura deveria estar a serviço das pessoas, criando espaços de encontro, cultura e convivência. “Maricá, ao acolher esses projetos, não está apenas construindo obras, mas dando continuidade a um sonho. Ideias que nasceram há décadas agora ganharão vida, reafirmando a relevância de sua obra”, justifica.
Carlos Eduardo diz que Maricá tem algo que combina com o espírito revolucionário de Oscar: “Foi uma convergência. A escolha surgiu de um diálogo entre a vocação natural da cidade e o desejo do nosso escritório de ver as obras de Niemeyer em lugares que transformem vidas”. Indagado se o avô ficaria feliz com o destino que será dado a seus projetos na cidade fluminense, ele diz que sim, sem dúvida. “Meu avô sempre foi um homem de esquerda, comprometido com os ideais de justiça social e com a valorização de figuras que lutaram por um Brasil mais igualitário. O Memorial João Goulart, por exemplo, foi um projeto que ele desenhou há muito tempo, mas que, infelizmente, não pôde ser realizado naquela época. Ver agora essa ideia retomada em Maricá é, para mim, motivo de grande emoção. É como se um ciclo se fechasse.” •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Utopia tropical’
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