Política
Unha e carne
Rodrigo Pacheco e Davi Alcolumbre adulam o bolsonarismo para manter o controle do Senado
A construção arredondada branca, uma meia-lua deitada, símbolo do Senado no prédio do Congresso Nacional, anoiteceu em 8 de outubro iluminada com a bandeira de Israel. Era um gesto de solidariedade em razão dos ataques do grupo islâmico Hamas na véspera. Havia sido um pedido do senador Davi Alcolumbre, judeu, ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Do dia dos ataques até 16 de outubro, o apoio a Israel foi maciço nas redes sociais brasileiras, 78% contra apenas 14% de menções pró-palestinos, segundo monitoramento da Quaest. Um resultado explicado pela ação da direita nas redes, diz a consultoria. No dia seguinte ao fim do monitoramento, Pacheco saudou no plenário a repatriação de brasileiros na área do conflito. Citou o ministro da Defesa, José Múcio, e a Aeronáutica. Nenhuma palavra sobre a ação de Lula.
Os episódios mostram que Alcolumbre e Pacheco agem por esses dias como se fossem um só, ambos dispostos a dar as mãos à extrema-direita graças a interesses e a sentimentos próprios. Um casamento problemático para o governo e o Supremo Tribunal Federal.
Filiado ao União Brasil, partido de três ministros de Lula, Alcolumbre presidiu o Senado de 2019 a 2021, fez de Pacheco seu sucessor e quer voltar ao posto em 2025, de olho não em dois, mas em quatro anos no posto. Por trás da força de um político oriundo do segundo menor estado eleitoral, o Amapá, está o “orçamento secreto”, sepultado pelo Supremo em dezembro de 2022, mas em parte redivivo pelo lulismo. “Alcolumbre é o pai do orçamento secreto”, diz um senador governista, é o líder do “Centrão do Senado”, acrescenta um articulador político do governo. Para suceder a Pacheco, ele quer os votos da bancada bolsonarista e para tanto usa a poderosa Comissão de Constituição e Justiça.
Pacheco aposta no esfriamento da economia e na predominância da pauta moral no debate político
À frente da CCJ, tem dado corda a ideias que fazem a cabeça da extrema-direita. Tome-se a sessão de 4 de outubro. Alcolumbre liderou a aprovação de limites aos poderes individuais dos juízes do STF e da permissão para o comércio de sangue humano. Botou para andar a criminalização da posse de qualquer quantidade de drogas (designou como relator o colega de partido Efraim Filho, da Paraíba). E entregou a um senador-pastor, o capixaba Magno Malta, do PL, sigla de Jair Bolsonaro, a relatoria da convocação de um plebiscito sobre aborto. A consulta popular foi proposta pelo líder da oposição, o potiguar Rogério Marinho, também do PL, a quem Pacheco derrotou na eleição de fevereiro para dirigir o Senado por 49 votos a 32.
Na Casa, há quem veja os passos de Alcolumbre como reação a negociações embrionárias entre o senador Renan Calheiros, MDB de Alagoas, e Gilberto Kassab, o chefe do PSD, para construir uma candidatura a presidente do Senado em 2025 que quebre a hegemonia Alcolumbre-Pacheco. Kassab filiou Pacheco ao PSD, com pretensões de lançá-lo à sucessão de Jair Bolsonaro em 2022, e agora não se empenha pelo futuro do pupilo. Prefere fazer do líder do PSD na Câmara, Antônio Brito, da Bahia, o próximo comandante da Câmara, no lugar de Arthur Lira, do PP de Alagoas. No Palácio do Planalto, avalia-se que Alcolumbre forçou Pacheco a entrar no jogo da sucessão no Senado. E que se aproximou do bloco bolsonarista por temer que o grupo possa ter um nome mais competitivo que o dele na eleição, o da ruralista Teresa Cristina, do PP de Mato Grosso do Sul.
O Planalto não ignora, claro, que o amapaense também quer influenciar as escolhas, por Lula, do novo procurador-geral da República e do substituto de Rosa Weber no Supremo. As duas indicações terão de passar pela CCJ. À frente da comissão em 2021, Alcolumbre fez um escolhido de Bolsonaro para a Corte, André Mendonça, esperar cinco meses antes de ser aprovado, demora imposta para conseguir benesses do governo. Pacheco, advogado, sonhava com a vaga de Weber. Em julho, um senador petista dizia a CartaCapital que o Planalto precisava estar bem consciente das consequências para o governo, no caso de o parlamentar ser frustrado nessa ambição. Outro senador petista conta ter ouvido do próprio presidente que ele (Lula) teria acenado com outra opção a Pacheco: o apoio à disputa ao governo de Minas Gerais na eleição de 2026. A última vez que Lula e Pacheco estiveram juntos foi em setembro, em Nova York. O senador fazia parte da comitiva presidencial na Assembleia-Geral anual da ONU. No dia do retorno ao Brasil, o Supremo concluiu o julgamento que barrou a tese do “marco temporal”, invenção ruralista para dificultar a demarcação de terras indígenas. Um dia depois, Rosa Weber, que ainda não havia se aposentado e presidia a Corte, iniciava um julgamento sobre aborto e votava a favor de abolir a criminalização de mulheres que se submetem à cirurgia até a 12ª semana de gravidez. Era a gota d’água de uma pauta judicial tida como progressista demais no reacionário Congresso.
Mimo. A bandeira de Israel projetada na cúpula do Senado foi um agrado de Pacheco ao judeu Alcolumbre – Imagem: Pedro França/AFP
A ministra é apontada nos bastidores por Pacheco como culpada pela guinada direitista da agenda do Senado. Inflexão que ele próprio fez ao longo da carreira, desde a eleição para deputado pelo MDB em 2014, em coligação com petistas, seguida de uma candidatura a prefeito de Belo Horizonte em 2016 pelo MDB e bem longe do PT até chegar ao Senado em 2018 pelo antigo DEM. A criminalização da posse ou porte de drogas em curso na CCJ foi proposta por Pacheco em 15 de setembro, no embalo do inconcluso julgamento do STF a respeito do tema.
Cenários traçados por colaboradores de Pacheco indicam que ele parece apostar que o governo Lula não colherá sucesso econômico e que as próximas eleições, a começar pelas municipais de 2024, serão influenciadas por questões morais. Previsões da equipe econômica e do “mercado” mostram que a economia vai desacelerar no próximo ano. O desemprego está nos menores índices, mas o salário médio é o mesmo de dez anos atrás. A aprovação do governo Lula em setembro, de 38%, é igual àquela de Bolsonaro na eleição (37%) e na passagem da faixa presidencial (39%), sinal da persistente divisão política que nem a máquina pública sob comando petista há dez meses logrou mudar.
Segundo os colaboradores de Pacheco, a agenda reacionária e que mira o Supremo andará. Na quinta-feira 19, dia da conclusão desta reportagem, o plenário do Senado debateria o aborto e limites aos poderes individuais dos juízes do Supremo. Pacheco tem defendido ainda mudar a Constituição para que os togados tenham mandato. Hoje, aposentam-se aos 75 anos.
Pacheco aposta no esfriamento da economia e na predominância da pauta moral no debate político
O embate de Pacheco com a Corte atravessou o Atlântico. Em Paris, o parlamentar e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, expuseram visões opostas durante um evento no dia 14. O togado manifestou certa surpresa pelo fato de o tribunal ser alvo de propostas reformistas, apesar de ter ajudado (na visão dele) a salvar a democracia brasileira ao conter Bolsonaro e de haver (também na visão dele) outras prioridades nacionais, como rever o papel das Forças Armadas. Se o STF tomou decisões que aborreceram o Congresso, prosseguiu, foi por ter sido provocado por ações judiciais. Pacheco comentou que o Legislativo também contribuiu para preservar a democracia e que é preciso (palavras dele) “ser implementada a limitação de acesso ao STF”, para que haja menos ações judiciais. Disse mais: que o poder emana do povo e que o Congresso é a “síntese mais perfeita do povo”. Tradução: teria o direito de mandar mais.
O evento parisiense foi organizado pelo Esfera Brasil, grupo de pressão patronal comandado pelo empresário João Camargo, presidente-executivo da CNN Brasil e pretendente a “novo João Doria Jr.” O dono do canal, Rubens Menin, é um mineiro cuja família (rica) foi generosa com a campanha de Pacheco ao Senado em 2018. Menin e os filhos Rafael e Maria Fernanda doaram 500 mil reais a Pacheco, 13% da arrecadação total do competidor. Só quem deu mais foram o partido de Pacheco à época (ex-DEM, 36%) e o próprio bolso do candidato (20%). Menin é a maior fortuna da construção civil na atualidade (7,7 bilhões de reais, segundo a Forbes), graças à sua MRV. Também é criador do banco digital Inter e um dos donos do clube-empresa em que se transformará o Atlético Mineiro. Não surpreende que, no governo Lula, há quem aponte “bilionários mineiros” como uma das razões para Pacheco torcer o nariz para a tentativa do Ministério da Fazenda de cobrar Imposto de Renda sobre lucros de offshores e fundos exclusivos.
Network. O empresário Chaves Pinto tem os amigos certos – Imagem: TRE/AP
Alcolumbre também tem empresário de mídia e empreiteiro rico por trás, e na condição de suplentes. Seu primeiro suplente é o irmão Josiel, controlador da TV Amazônia, o SBT do Amapá. O segundo é Breno Chaves Pinto, dono das firmas Rio Pedreira, LB Construções e Construtora Chaves, todas do Amapá, e de 8,5 milhões de reais em patrimônio declarado na eleição de 2022. Dois meses após o pleito, a Polícia Federal vasculhou a casa de Chaves e apreendeu 792 mil reais em dinheiro vivo. Era a segunda fase de uma operação, a Cândidus, sobre superfaturamento de obras de manutenção de uma rodovia no Amapá, a BR-156. A LB integrava um consórcio contratado pelo governo estadual para o serviço. O governador era Waldez Góes, do PDT. Na antevéspera de deixar o cargo, Góes contratou outra empresa de Chaves Pinto, a Rio Pedreira, para tocar a obra rodoviária mais cara do estado, de 100 milhões de reais. É a pavimentação de uma rodovia batizada em 2021 com o nome do tio de Breno, Josmar Chaves Pinto. Parte do gasto dessa obra será paga com recursos inseridos no orçamento da Codevasf, estatal federal, por Alcolumbre via “orçamento secreto”. Foi o senador quem, em 2020, conseguiu aprovar no Congresso uma lei para que a Codevasf, criada em prol do Vale do Rio São Francisco no Nordeste, atuasse no Amapá. Góes deixou o poder estadual e foi direto para Brasília. É hoje ministro do Desenvolvimento Regional, por indicação de Alcolumbre.
O ministro sobreviverá no cargo diante do abraço do padrinho na extrema-direita? A julgar pelo silêncio de Lula diante do namoro de Alcolumbre (e de Pacheco) com a turma bolsonarista, os imperativos da realpolitk parecem falar mais alto. Por enquanto. •
Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Unha e carne’
Leia essa matéria gratuitamente
Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.
Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.