Política

assine e leia

Uma Mariana na Amazônia?

Entidades civis denunciam à ONU os riscos de rompimento da usina de Colíder, em Mato Grosso

Uma Mariana na Amazônia?
Uma Mariana na Amazônia?
Fragilidade. O documento incorpora uma investigação do Ministério Público e aponta falhas na manutenção da usina. Os Munduruku dependem do rio para sobreviver – Imagem: UHE Colíder/GOVMT e Caio Mota/Coletivo Proteja
Apoie Siga-nos no

A hidrelétrica de Colíder, em Mato Grosso, está sob risco de rompimento e o Estado precisa agir de forma imediata para evitar um dos maiores desastres dos últimos anos na Amazônia. O alerta faz parte de uma denúncia enviada às Nações Unidas e obtida com exclusividade por CartaCapital. A usina fica no Rio Teles Pires, onde existem outras três grandes hidrelétricas em operação e, de acordo com o próprio relatório de impacto ambiental da Colíder, um eventual rompimento da barragem poderia gerar uma catástrofe em efeito dominó sobre os demais empreendimentos. A iniciativa partiu do Movimento dos Atingidos por Barragens de Mato Grosso, do Instituto Coletivo Proteja, da Associação Indígena DACE, gerida pelo povo Munduruku, que vive no baixo Rio Teles Pires, e do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso.

A denúncia incorpora uma iniciativa do Ministério Público do Mato Grosso, que ingressou na Justiça com um processo de desativação da usina. Na carta a Pedro ­Arrojo-Agudo, relator especial da ONU para o direito humano à água e saneamento, as entidades afirmam que a situação “se configura como uma emergência socioambiental, coloca em risco a vida de milhares de pessoas, a integridade de ecossistemas vitais e a sobrevivência de povos indígenas e comunidades tradicionais”. As entidades basearam-se em relatórios técnicos, ações judiciais e no testemunho das populações diretamente afetadas, que, há décadas, “sofrem com os impactos de um modelo de desenvolvimento predatório”.

O risco, segundo eles, seria de um “desastre de proporções catastróficas, requerendo a adoção de medidas imediatas para garantir a segurança das populações e a responsabilização dos agentes envolvidos”. A ação tem como objetivo colocar pressão máxima sobre as autoridades brasileiras. As entidades pedem ao relator da ONU uma recomendação de ­desativação imediata das operações da usina, nos termos da Ação Cautelar movida pelo Ministério Público de Mato Grosso, até a segurança da estrutura ser garantida por uma auditoria independente e a reparação integral dos danos socioambientais estar assegurada. Solicitam ainda a elaboração e a implementação de um Plano de Descomissionamento, que prevê a desativação segura da hidrelétrica, com ampla participação das comunidades atingidas, garantindo a reparação dos danos e a recuperação socioambiental da bacia do rio, além da criação de canais acessíveis de comunicação com os moradores e uma revisão das licenças de operação de todas as usinas na região.

“Emergência socioambiental”, alertam os proponentes da ação nas Nações Unidas

O Teles Pires, um dos formadores da bacia do Rio Tapajós, é hoje um dos mais impactados por hidrelétricas na Amazônia. Em menos de uma década, quatro grandes usinas – Sinop, Colíder, Teles Pires e São Manoel – foram instaladas, convertendo corredeiras e cachoeiras em uma sequência de reservatórios. “Em nome de um suposto progresso energético, consolidou-se um rastro de impactos sociais e ambientais”, denunciam as entidades.

No documento, os solicitantes dizem que a construção das barragens ocorreu com “violações sistemáticas de direitos”. “Foram atingidos povos indígenas, pescadores, assentados da reforma agrária e moradores de mais de dez cidades na área de influência direta dos empreendimentos, em dois estados: Pará e Mato Grosso.”

Uma das áreas atingidas é ­Karobixexe, a Cachoeira Sete Quedas, considerada “casa sagrada” pelo povo Munduruku. Durante as obras, foram encontrados mais de 200 mil artefatos arqueológicos, prova de ocupação milenar. Ainda assim, a cachoeira foi dinamitada. Além de ­Karobixexe, outro local sagrado foi destruído na região, Deko ka’a, conhecido como Morro dos Macacos, relacionado à “Mãe dos Animais”, impactado pela hidrelétrica de São ­Manoel. Para os indígenas, a destruição de Sete Quedas e do Morro dos Macacos atingiu a espiritualidade e a cultura ­Munduruku. “Esses lugares são marcos de memória e identidade coletiva. Sua perda configura grave violação de direitos humanos e aprofunda um ciclo de expropriação nos territórios”, escrevem na denúncia.

Impacto. A barragem diminuiu a variedade de peixes e ameaça a existência de outros espécimes – Imagem: Caio Mota/Coletivo Proteja e Christiano Antonucci/GOVMT

Os impactos são também econômicos. A implantação do complexo deixou mais de 200 famílias de agricultores, assentados da reforma agrária, sem indenizações justas. Suas terras, segundo a carta, foram inundadas pelo reservatório de Sinop. O documento aponta ainda a recorrente mortandade de peixes, o que afeta a alimentação e a renda das comunidades ribeirinhas. “Espécies ameaçadas estão sob risco. Primatas recém-catalogados pela ciência na região, como o ­Plecturocebus grovesi e o ­sagui-de-Schneider ­(Mico ­schneideri), também estão em risco. ­Alterações no regime hídrico e a degradação da qualidade da água impactam a fauna e a flora em toda a bacia.”

Um efeito inesperado é o aumento da violência na região. Estudos independentes realizados pelo Fórum Teles Pires constataram o agravamento do fenômeno em municípios vizinhos após a instalação do complexo, com aumento de homicídios, lesões corporais e estupros em cidades como Alta Floresta, Sinop e Paranaíta. “O padrão se repete em outros grandes empreendimentos na Amazônia, desmentindo a narrativa desenvolvimentista que promete melhora de vida aos territórios impactados”, prossegue o texto. No caso específico da usina de Colíder, a hidrelétrica seria o “capítulo mais recente e alarmante” desse histórico de violações. “Desde a construção, a usina apresenta problemas estruturais que culminaram no atual estado de emergência”, anotam os demandantes.

O documento cita o relatório técnico do Centro de Apoio Técnico à Execução Ambiental, do Ministério Público de Mato Grosso, que identificou falhas críticas no sistema de drenagem da barragem: erosão interna, rompimento de drenos e sobrepressão em diversas estruturas, indicando risco potencial e iminente de ruptura. “Em um cenário extremo, um rompimento em Colíder pode atingir as usinas de Teles Pires e São Manoel, em efeito cascata.”

Os movimentos e o Ministério Público defendem a desativação da hidrelétrica

Entre 22 e 27 de agosto, uma vistoria examinou 70 tubos de drenagem da barragem. Do total, 14 estavam sem medidores de pressão. Outros 55 não tinham telas ou filtros para conter a água turva. Em 18 tubos havia arraste de sedimentos. Cinco tubos estavam rompidos e três, obstruídos.

A chamada Zona de Autossalvamento, área que precisa ser evacuada em caso de emergência, como um rompimento, está incompleta. Das 181 edificações mapeadas, 131 não foram encontradas nas visitas de campo, segundo relatório dos procuradores. “O sistema de alerta depende apenas de sirenes móveis, o que aumenta o risco e reduz a nitidez das orientações à população”, descreve a denúncia.

Diante da gravidade da situação, o Ministério Público recomendou a elaboração de um estudo técnico para avaliar alternativas, entre elas a desativação da usina, de acordo com a Política Nacional de Segurança de Barragens. Faltam, dizem as entidades, um diagnóstico a respeito da origem das falhas e uma avaliação integrada dos impactos cumulativos das usinas no Teles Pires.

Em resposta, a Eletrobras iniciou o rebaixamento do reservatório. As entidades alertam, no entanto, que a medida foi adotada sem diálogo com as populações atingidas e tem gerado impactos ambientais e sociais.

Para evitar o pior. As organizações civis avisam: o rompimento da usina seria um desastre de grandes proporções – Imagem: Caio Mota/Coletivo Proteja

Os grupos da sociedade civil afirmam que o histórico de problemas da usina não se limita às falhas atuais. “Durante a construção, ocorreram acidentes de trabalho, inclusive com a morte de operários, e irregularidades trabalhistas e ambientais. Esse passivo antecipou os riscos hoje denunciados e exige auditoria independente, transparência e medidas imediatas de prevenção e reparação.” Na denúncia à ONU, as entidades alertam: “Há risco à vida e à segurança de milhares de pessoas que vivem ao longo do Rio Teles Pires, abaixo das barragens, sem plano de evacuação nítido nem sistema de alerta eficaz, o que aumenta a vulnerabilidade de comunidades indígenas, pescadores, assentados e populações urbanas”. E insistem: “O direito humano à água e ao saneamento é afetado pelo rebaixamento do reservatório e pela piora na qualidade da água, com carrea­mento de sedimentos e decomposição de matéria orgânica”.

Para as entidades, a situação da ­Colíder é um “retrato da negligência do Estado brasileiro e da ganância das empresas do setor elétrico, que continuam a lucrar sobre a violação de direitos e a destruição da Amazônia”. Mais: “A iminência de um desastre no Rio Teles Pires não é um fato isolado, mas o resultado de um modelo de desenvolvimento que ignora os custos sociais e ambientais em nome do lucro. A vida de milhares de pessoas e o futuro de um ecossistema vital estão em jogo”. •

Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma Mariana na Amazônia?’

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo