Entrevistas
‘Uma coisa é colocar gente na rua, outra é ganhar eleição’
A CartaCapital, Márcio Moretto, do Monitor do Debate Político, indica a tendência de ‘saturação do hiper-engajamento’ que favoreceu o bolsonarismo nos últimos anos


A manifestação encabeçada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em São Paulo no domingo 25 foi a maior dos últimos anos e reforça a audácia da direita autoritária. Mobilizar as ruas entretanto, não garante necessariamente uma vantagem eleitoral sobre os oponentes. A avaliação é de Márcio Moretto, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidade da USP e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital.
O Monitor, também coordenado pelo professor Pablo Ortellado, estimou em 185 mil pessoas o público do ato bolsonarista em seu pico, às 15h, a partir de uma metodologia de análise matemática de fotos aéreas.
Do ponto de vista jurídico, o protesto não tende a gerar dividendos para Bolsonaro º ao contrário, a menção a minutas golpistas pode fortalecer as impressões da Polícia Federal sobre uma conspiração para impedir a posse de Lula (PT) em 2022.
Sob o aspecto político, porém, o ex-presidente inelegível tenta usar esses milhares de apoiadores para manter viva sua figura nas disputas municipais e para mandar um recado a aliados que cobiçam o seu espólio.
“Vivemos uma crise de democracia, e quem tem conseguido responder melhor é esse campo, com uma resposta populista”, diz Moretto a CartaCapital. “A direita autoritária tem tido mais audácia de mobilizar essa insatisfação.”
Leia os destaques da entrevista:
CartaCapital: Como é possível definir a manifestação bolsonarista?
Márcio Moretto: Não havia 600 mil pessoas como anunciou a Polícia Militar, mas foi um ato grande, com certeza o maior dos últimos anos. Naquela época ainda não fazíamos a contagem, mas a última vez que eu vi tanta gente na Paulista foi no 7 de Setembro de 2021.
CC: E a postura de Bolsonaro no ato, em meio ao avanço da investigação sobre a trama golpista?
MM: Tem um processo em que as próprias provas vão mostrar. Ele está tentando demonstrar força política para reverter o jogo em outro âmbito. No âmbito judicial, isso tem uma morosidade, um trâmite próprio. Mas ele mostrou que ainda não é carta fora do baralho, que ainda consegue trazer mais de uma centena de milhares de pessoas para a rua.
Foi um ato só em São Paulo e tinha bastante gente do interior – um terço das pessoas que estavam na manifestação veio do interior. Então, tem uma estratégia de fazer uma coisa centralizada, para dar um número maior.
Também conseguiram levar bastante gente ao palanque, até o prefeito Ricardo Nunes e o governador Romeu Zema, aliados que são menos menos subordinados a Bolsonaro, que têm agendas próprias. Mesmo esses estiveram presentes para demonstrar apoio ao ex-presidente.
CC: Por que o discurso mais violento foi o do pastor Silas Malafaia?
MM: Esse tema do golpe é delicado, é caminhar no fio da navalha. Essas pessoas que estavam em São Paulo estavam dispostas a ouvir um discurso inflamado, mas, ao mesmo tempo, fazer um discurso inflamado tem custos políticos e pode ter consequências jurídicas.
Foi uma estratégia colocar o discurso mais inflamado na boca do pastor Silas Malafaia, porque a avaliação talvez seja que de alguma forma ele, como representante da igreja, estivesse mais blindado. Os demais tiveram uma postura mais cuidadosa em relação a esse tema.
Por outro lado, embora ele [Bolsonaro] tenha levado bastante gente para a Paulista, ainda assim, se você pensar em uma proporção da população brasileira, estamos falando de muito pouca gente, mesmo perto do que é a cidade de São Paulo ou do que é o estado de São Paulo. Como eu disse, um terço de quem estava na rua veio de outras cidades. Então, em termos de de voto, outra afeição precisa ser feita.
Uma coisa é você conseguir colocar um monte de gente na rua, outra coisa ganhar a eleição. Ele tem uma alta rejeição e veremos a força política que o bolsonarismo tem no fim deste ano, com as eleições para prefeito.
CC: E os aliados se articularam com muita intensidade para a manifestação de domingo…
MM: Falou-se muito no passado, nos anos 1980, de uma maioria silenciosa. Nos Estados Unidos, principalmente, falava-se que a esquerda era muito estridente no fim dos anos 1970. E aí nos anos 80 começou a se falar de uma maioria silenciosa que seriam os conservadores – ou seja, seriam maioria, mas não vão às ruas, não vão a manifestações.
No Brasil, aparentemente, o que está acontecendo aos poucos é o contrário. Lula ganha as eleições – tem mais da metade do eleitorado, pelo menos no segundo turno – e, de alguma forma, a maioria está com ele, mas quem consegue mobilizar e tomar as ruas é a direita.
Tudo indica que que a direita não é maioria no Brasil. As eleições de 2022 de alguma forma mostraram isso. Mas, ao mesmo tempo, são eles que têm sido capazes de mobilizar. A esquerda não tem conseguido, faz tempo.
CC: O campo democrático tem de tirar alguma lição desse ato da extrema-direita?
MM: Eu diria que é um populismo autoritário. Vivemos há algum tempo uma crise de democracia, e desde 2011, mais ou menos, isso ficou mais patente, provavelmente como consequência da crise de 2008. Quem tem conseguido responder melhor à crise da democracia é esse campo, com uma resposta populista. A direita autoritária tem tido mais audácia de mobilizar essa insatisfação.
Tivemos ensaios populistas de esquerda em alguns lugares – o Podemos tem um pouco disso na Espanha, na Grécia há o Syriza. Mas quem de fato tem conseguido mobilizar essa essa insatisfação com a democracia é a direita autoritária, como o trumpismo nos Estados Unidos, o bolsonarismo no Brasil e Javier Milei na Argentina.
Há uma insatisfação de fundo desde o começo da década passada a que a direita tem sabido responder melhor. Agora, ao mesmo tempo, o que aparentemente acontece é uma espécie de uma saturação desse hiper-engajamento.
Aconteceu um pouco disso nas últimas eleições nos EUA e no Brasil também: um desejo de eleger uma frente ampla, voltar um pouco à normalidade, não viver uma situação de constante urgência como era quando Bolsonaro era presidente ou quando Trump estava no poder.
CC: O ato na Paulista também foi um recado de Bolsonaro a aliados que buscam herdar seu espólio?
MM: Acho que é isso que estava em jogo: qual é a imagem que Bolsonaro passa e a importância que ele terá nas eleições municipais. Pelo menos em termos de população mobilizada, ele mostrou sua força.
Mas eu levanto uma questão: será que nas eleições municipais terá mais força esse papel da mobilização ou terá mais força o papel do eleitor mais tímido, mais quieto? Porque desde 2014, na eleição de Dilma Rousseff, temos o papel do engajamento como central na disputa eleitoral.
Se você pensar em 2006, 2008 e 2010, não foi exatamente o engajamento que ganhou a eleição, foi uma campanha de marketing. Claro, havia toda a estrutura do PT, mas o partido foi no sentido inverso, se você pensar em 2002. Ele tentou mostrar Lula como um candidato palatável, era mais uma estratégia de marketing.
Essa aposta de que você consegue ganhar a eleição vendendo a imagem de um político palatável deu bastante certo até 2010. Em 2014, essa estratégia mudou. E, se você se lembrar de 2014, a campanha de Dilma foi de uma guerreira, era essa estética. Isso já era uma resposta a essa crise da democracia.
A estratégia de engajamento para ganhar as eleições é a que vimos em 2014 e em 2018 e que talvez tenha começado a se esgotar. É isso que a gente precisa entender nas eleições municipais.
O político que consegue mobilizar mais gente nas ruas, claramente, é Bolsonaro. Mas mobilizar pessoas nas ruas talvez já não seja a melhor estratégia para ganhar uma eleição.
O advogado e professor de Direito Constitucional Pedro Serrano comenta as possíveis consequências do discurso realizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro a seus apoiadores. Confira a análise no canal de CartaCapital no YouTube.
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