Política
Uma cena banal
Schopenhauer tem razão: a felicidade não existe senão em gotas. Por Menalton Braff


Esta manhã fui fazer minha caminhada matinal (finalmente estou conseguindo dar à velha carcaça aquilo que o Dr. Laércio me exige). Passo por um imenso terreno baldio onde moram quatro cachorros. Estão lá sempre brincando, perseguindo-se, as línguas de fora. Uma de suas diversões é correr atrás de automóvel. Voltam felizes para casa por terem expulsado aquele monstro para longe. Com pessoas são muito cordiais. E são gordos, quem diria, de aparência saudável.
Depois do terreno onde os cachorros moram, ainda existe uma meia dúzia de casas, então termina o asfalto e começa a estrada de terra. À esquerda fica uma ladeira coberta de mato. Um mato rasteiro, onde muitas vezes os cachorros somem, mas é mato. À direita, a terra arroteada para receber aqueles pedaços de cana, que servem de semente.
Tinha andado uns quinhentos metros pela estrada de terra quando um dos cachorros pulou na estrada com o focinho muito perto do chão. Nem me olhou. Atravessou a estrada, agitado, cheio de pressa, escalou o barranco e continuou com o focinho atento a algum cheiro. Pareceu perder-se no terreno, voltou, reencontrou o rastro (só podia ser um rastro) e se aproximou de uma pequena malha de capim e uma confusão de outras pequenas plantas.
Então parou, a pata direita dianteira dobrada no ar, o rabo em riste, o olhar fixo. Alguns segundos nessa posição. Súbito ele flecha na direção da pequena malha de mato e dali, num salto formidável, pula no meio da estrada uma preá. Mal toca no chão, no entanto, já está na boca do cachorro, cujo salto foi ainda mais formidável. Sua cabeça foi sacudida violentamente, a presa na boca. Pulou de volta para o mato e foi completar seu serviço.
Esta cena me lembrou o Adamastor, amigo meu que já foi até gigante no extremo sul da África, segundo um poeta que tem toda minha consideração. Pois meu amigo, o Adamastor, chegou aqui em casa com ar muito abatido. Sentou na cadeira que lhe indiquei, aceitou o cafezinho que lhe ofereci, e começou o desabafo. Estou lendo o Schopenhauer, ele disse, e descobri que ele tem razão: a felicidade não existe senão em gotas.
Eu adverti que o café estava esfriando, mas ele não me ouviu. Todos os seres estão em permanente guerra por matéria, ele continuou. E é impossível a satisfação. Há sempre algo mais a ser desejado. Muito didaticamente explicou que o filósofo criou uma hierarquização dos seres, sendo os últimos da fila os seres em estado bruto, a matéria sem vida. Em seguida os seres vivos, divididos em vegetais e animais. Os vegetais sendo inferiores aos animais; e os animais tendo como grau mais elevado o homem.
Pior ainda, ele gemeu, tudo é comandado pela vontade. E a vontade nunca é plenamente satisfeita. Apenas duas possibilidades de um ser curtir a felicidade: a contemplação estética, porque é desinteressada (vencendo a vontade), mas por muito pouco tempo; e o ascetismo total, a vitória sobre a vontade. Só no abandono do desejo, inclusive de viver, o ser humano consegue uma felicidade permanente.
Disse a ele que seu café já estava frio, e o Adamastor levantou-se, saindo sem se despedir. Tudo isso por causa do combate permanente dos seres por matéria.
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