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Um pouco de inteligência

Reformulada, a Abin reforça a interação com outras áreas do governo e ganha novos objetivos

Confiança. Corrêa dirigiu a Polícia Federal no segundo governo Lula e tem a missão de dar propósito à Abin – Imagem: Abin e Pedro França/Ag. Senado
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Na quarta-feira 13, o presidente Lula fez seu primeiro discurso à frente do G-20, grupo das maiores economias do mundo, durante uma reunião em Brasília dos principais negociadores do bloco na área de finanças. Apesar de a pauta ser outra, Lula voltou a defender um cessar-fogo permanente entre Israel e o Hamas e a libertação dos reféns. Desde o início da guerra, o governo trouxe para a casa, nas asas da FAB, 1,5 mil brasileiros retidos na zona do conflito. A repatriação exigiu negociações delicadas em uma região complexa. Para o governo conhecer ao máximo o terreno e os atores políticos capazes de influenciar a operação de resgate, a diplomacia não parecia suficiente. A Agência Brasileira de Inteligência entrou em cena, diz seu diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa.

A Abin também ajudará o Palácio do Planalto durante a presidência rotativa do G-20, até novembro de 2024, mês em que o bloco fará uma reunião de cúpula no Rio de Janeiro. Lula elegeu o combate à fome, às desigualdades e às mudanças climáticas como bandeiras no período. Como cada país do bloco se posiciona nesses temas e se colocará diante de even­tuais propostas do Brasil? E no caso de crises globais que podem surgir, ou persistir até lá, como os conflitos em Gaza e na Ucrânia? São respostas que o serviço de inteligência tem condições de antecipar, para contribuir com as posições de Lula.

Os órgãos governamentais, teoriza um agente da Abin, costumam dourar a pílula nas análises para o presidente (qualquer um), por receio de contrariá-lo. A agência, prossegue, não: expõe de forma nua e crua. Na pandemia, elaborou um relatório sobre a curva de mortes esperadas, outro que antevia a falta de oxigênio no Amazonas, um terceiro a apontar a inutilidade da cloroquina. Documentos ignorados devido ao comportamento de Jair Bolsonaro e seus subordinados. A Abin era então subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional, e o militarizado GSI não passava nem ao presidente nem a outros ministros aquilo que saía da agência e contrariava o negacionismo do capitão. “Nosso maior desafio é conscientizar os políticos, os tomadores de ­decisão, da importância da análise da informação. Eles se satisfazem com informação rápida, rasteira”, afirma Corrêa.

A agência focará em defesa da democracia, estudo das mudanças climáticas e promoção da cibersegurança

Neste ano, a agência deixou de ser subordinada a fardados e passou à aba da Casa Civil. Lula tinha um pé atrás com os quartéis desde antes da eleição, dada a infiltração do bolsonarismo. A tentativa de golpe de 8 de janeiro empurrou-o a mudar o controle da Abin. Um ano, o de 2023, que começou com um episódio a salientar a necessidade de um serviço de inteligência qualificado e que termina com outro de significado similar, a tensão entre a Venezuela e a Guiana. “É o cenário geopolítico mais difícil desde a crise dos mísseis”, afirma Marco Cepik, diretor da Escola de Inteligência da Abin. Uma análise que leva em conta não só a disputa na vizinhança, mas entre Estados Unidos de um lado e China e Rússia de outro. A “crise dos mísseis” quase levou os EUA e a então União Soviética às vias de fato, e com armas nucleares, em 1962, por causa de artefatos militares soviéticos em Cuba. “Não vejo um momento geopolítico tão complicado como agora”, reforça o coronel Túlio Marcos Santos Cerávolo, chefe da Escola de Inteligência do Exército.

Em 7 de dezembro, Cepik e Cerávolo participaram de um seminário internacional na sede da Abin, em Brasília, intitulado “Desafios para a Inteligência Estratégica”, com representantes de Argentina, Colômbia, Equador, Uruguai e Inglaterra. CartaCapital acompanhou o evento, único meio de comunicação presente. Dia de muito calor e de cuidados de segurança. Os 250 participantes foram levados da porta da agência ao auditório em vans da anfitriã. A ninguém foi permitido gravar ou fotografar as palestras.

Para Corrêa, o Brasil precisa de um serviço de inteligência à altura do peso global do País. Segundo dados apresentados por Cerávolo, apesar de estarmos entre as 15 maiores economias e forças militares do mundo, nosso investimento em inteligência é o 54º. Corrêa comandou a Polícia Federal no segundo mandato de Lula. Segundo ele, o presidente tem hoje uma compreensão da necessidade de um bom serviço de inteligência que não tinha nos mandatos anteriores. Respaldada pela convicção lulista, a agência encorpa silenciosamente. Ao nomear Corrêa, o presidente acertou que a Abin teria três missões: defesa da democracia, estudo das mudanças climáticas e promoção da cibersegurança. No primeiro quesito, uma nova “doutrina” lançada no início de dezembro, espécie de manual sobre a atividade, descreve da seguinte maneira o que seria “extremismo violento” (aquele visto em 8 de janeiro e nas ameaças de ataques a escolas, por exemplo): “Refere-se ao planejamento, à preparação, à promoção, ao financiamento e à execução de atos violentos motivados por ideologias extremistas que desrespeitam preceitos constitucionais fundamentais”.

Monitoramento. Para evitar a repetição dessa história, urge um sistema de comunicação eficiente e rastreável entre os órgãos públicos – Imagem: Carlos Alves Moura/STF e Ton Molina/AFP

No início de 2024, a agência lançará uma plataforma eletrônica de comunicação, novidade relevante para a cibersegurança e o reforço da produção e da difusão de inteligência. Um espaço à prova, em tese, de espiões, para contato entre os 49 órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin. Os relatórios da Abin serão guardados ali. O acesso deixará o registro de quem os acessou e quando, uma maneira de descobrir “vazadores”. O autor do documento poderá avisar, pelo ambiente virtual, quem presumivelmente tem interesse no conteú­do. As ­duas partes poderão conversar via plataforma. Recorde-se: havia alertas da Abin de algo sério a caminho no 8 de janeiro, mas foram distribuídos via WhatsApp, sem formalidade. O ex-chefe do GSI, general Marco Edson ­Gonçalves Dias, diz até hoje não ter recebido nenhum relatório. De fato, não recebeu papel, tudo circulou em grupo de “zap”.

A plataforma da Abin terá um recurso de segurança igual ao WhatsApp. A chamada criptografia de ponta a ponta protege uma mensagem no caminho percorrido por ela (só a ponta emissora e a ponta destinatária conseguem ver). Por essa razão, a plataforma estará a serviço de Lula, caso ele queira usar para discutir temas sensíveis no dia a dia. Quem sabe assim não se repetirá a bisbilhotice da NSA, a agência norte-americana de arapongagem, contra Dilma ­Rousseff e a Petrobras, em 2012. Para a plataforma ficar pronta, falta dinheiro. A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, composta de deputados e senadores, tenta reservar mais 35 milhões de reais do orçamento de 2024 para a conclusão do trabalho.

A criação da plataforma, sob a batuta da Abin, foi regulada por um decreto presidencial de 6 de setembro, Dia do Profissional de Inteligência. A norma reorganizou o Sisbin, para torná-lo mais efetivo. Os 49 integrantes foram classificados em quatro categorias, a fim de demarcar as atribuições de cada um e definir critérios para orientar a futura difusão das análises de inteligência. Os estados passam a ser integrantes oficiais. A Abin continua no centro do sistema. E terá de prestar contas por meio de relatório anual. Este será destinado a uma novidade instituída pelo decreto, o conselho ministerial do Sisbin, formado por cinco pastas (Justiça, Defesa, Casa Civil, Relações Exteriores e GSI) e pelo chefe da Abin.

A Abin prestará contas por meio de um relatório anual e será monitorada por um conselho de ministros

Em 7 de dezembro, dia do seminário internacional e do aniversário da Abin (criada em 1999), outro decreto presidencial redefiniu as estruturas internas da agência. Agora há quatro departamentos: de contrainteligência, de operações de inteligência, de inteligência interna e de inteligência externa. Esses dois últimos são novidades, surgem para substituir outros dois. Nas atribuições da “inteligência interna” estão estudos sobre segurança pública, crime organizado, ilícitos ambientais e em terras indígenas. Neste ano, a Abin produziu análises sobre o crime organizado na Bahia e sobre ocupantes ilegais de terras indígenas (no Pará, por exemplo, onde houve uma operação do governo em outubro, por decisão da Justiça). O trabalho da “inteligência externa” servirá, entre outras coisas, para o governo preparar-se para questões e negociações internacionais. É o que será feito em relação ao G-20.

No plano de reforçar a inteligência e a Abin, Corrêa quer do Congresso, no próximo ano, uma lei que crie varas judiciais especializadas em espionagem. Um exemplo da necessidade é um espião russo preso na Holanda no ano passado com passaporte brasileiro falso. Sergey Cherkasov foi deportado para cá, processado e condenado por falsidade ideológica. Houvesse uma vara especializada em espionagem, diz Corrêa, seria possível investigar as atividades do espião.

No seminário internacional, o professor de Relações Internacionais Júlio César Cossio Rodriguez, da Universidade Federal de Santa Maria, contou que, dias antes, tinha feito uma reunião online com dois acadêmicos russos, para conversar sobre cooperação em engenharia aeroespacial, área em que a UFSM tem um curso de graduação. Segundo Rodriguez, os interlocutores pareciam estranhamente interessados na aplicação do conhecimento do Brasil à indústria bélica russa. “Não podemos ser inocentes, mesmo nas universidades”, afirmou o palestrante, para quem o Brasil é uma “potência regional” que atrai luzes de norte-americanos, chineses e russos.

Em sua palestra, o coronel Cerávolo apresentou sua tese de mestrado, concluída no México neste ano, sobre como fortalecer a inteligência estratégica no Brasil. Ele compara o Sisbin aos sistemas de EUA, França, Israel e Reino Unido e aponta o que seria desejável replicar. O modelo francês é o que tem mais características interessantes. Conta com uma Secretaria Geral de Defesa e Segurança Nacional ligada diretamente ao presidente. Andrea Cely, chefe da Escola de Inteligência da DNI, a Abin colombiana, comentou que a inteligência em seu país está hoje a serviço dos direitos humanos e das condições de vida. Não é uma tradição, nem lá nem aqui, países marcados por serviços obcecados pelo “inimigo interno”, herança de governos autoritários. A conferir se a nova a Abin não vai descambar para velhos hábitos. •

Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.

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