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Tudo pelos amigos do rei

Um contrato de dezembro da Postal Saúde, assinado sem licitação, é mais uma história interpretada por militares e empresários bolsonarizados

Tudo pelos amigos do rei
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Cândido pai, dono da Hapvida, com os filhos Cândido Júnior e Jorge Pinheiro, a quadrilha bolsonarizada
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Mauro Carlesse, do PSL, responde desde dezembro a um processo de ­impeachment na Assembleia Legislativa de Tocantins por uma denúncia de corrupção que levou o Superior Tribunal de Justiça a afastá-lo por 180 dias do governo do estado, em 20 de outubro, a fim de impedir que atrapalhe as investigações. Ele exigiria propina para permitir que um hospital privado local, o Oswaldo Cruz, recebesse pagamentos por atendimentos ao convênio dos servidores estaduais. O achaque teria começado logo após o rico fazendeiro eleger-se governador tampão, em junho de 2018. Dois meses depois, o estado trocou a firma gestora do Plansaúde. Saiu a Unimed, entrou a Infoway. Esta era peça-chave no esquema, conforme delatado por dois dirigentes do hospital achacado. Cabia a ela arranjar as justificativas técnicas para o Plansaúde reduzir ou negar quantias cobradas pelo hospital. “A Infoway é utilizada como mecanismo de pressão da suposta organização criminosa, efetuando a glosa de valores todas as vezes em que se deseja aumentar o porcentual das vantagens ilícitas”, escreveu o juiz Mauro Campbell, do STJ, no despacho que tirou Carlesse do cargo.

Dois dias antes do afastamento do governador, a diretoria do plano de saúde dos empregados dos Correios reuniu-se por videoconferência. Um dos assuntos na pauta, segundo a ata, era a escolha de uma empresa que analisasse faturas enviadas por hospitais e médicos que atendessem os conveniados. O mesmo serviço da Infoway em Tocantins. Em uma reunião anterior, em 5 de agosto, também por videoconferência, o diretor-administrativo, Reinaldo Soares de Camargo, propusera uma licitação para selecionar a gestora. Em outubro, havia mudado de ideia. Defendeu fechar negócio direto com a Infoway, sem concorrência. A ideia foi aprovada pelos outros dois diretores presentes à videoconferência, ambos generais. José Orlando Ribeiro Cardoso, o presidente, e Oscar Henrique Grault Vianna de Lima, o diretor de Planos de Saúde e Relacionamento com os Clientes.

A Infoway, enrolada no Tocantins, levou o contrato do plano de saúde dos Correios

Em 2020, a firma escolhida tinha conseguido melar na Justiça uma licitação do governo do Distrito Federal que selecionaria uma operadora para um futuro plano de saúde dos servidores. Na época, o governador Ibaneis Rocha comentou que “a máfia que não quer licitações tenta suspender o plano”.

Na semana seguinte à seleção da ­Infoway pela Posta Saúde, foi Grault quem mudou de ideia. Em um e-mail a Cardoso em 29 de outubro, informou que era contra o acordo com a empresa. E que queria sua posição incluída na ata da reunião de 18 de outubro, o que foi feito. Ele deixou o cargo em 31 de outubro. Foi destituído pelo presidente dos Correios, outro general. Floriano Peixoto Vieira ­Neto foi secretário-geral de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto e, em junho de 2019, substituiu o também general Juarez Cunha nos Correios. Cunha opunha-se à venda da estatal. Vieira Neto, não. Para a vaga de Grault recrutou um coronel, ­Freibergue Rubem do Nascimento, ­ex-secretário nacional-adjunto de Segurança Pública e então chefe do projeto de escolas militares do Ministério da Educação. Em 8 de novembro, com Nascimento no posto, a diretoria da Postal Saúde ratificou o negócio com a Infoway. O contrato está vigente desde 10 de dezembro.

A Postal Saúde pretendia fazer uma licitação para contratar serviço de gestão em saúde. Eis a razão da suspeita

Por que o acordo custou a cabeça de um general? Eis outra história nebulosa protagonizada por militares no setor de saúde, similar às negociações de vacinas anti-Covid. De 2013 a 2015, Grault foi secretário de Controle Interno do Superior Tribunal Militar. É, portanto, experiente em identificar, digamos, malandragens. Teria vislumbrado algum esquema como aquele de Tocantins? A CartaCapital ele disse que, por estar de férias, não tinha acesso ao material que enviara a Cardoso contra um acordo com a Infoway. “Quanto à minha saída, não tenho conhecimento do motivo, por se tratar de uma prerrogativa do presidente dos Correios.” Procurada, a Postal Saúde não deu informações sobre os argumentos de Grault. A demissão dele, prosseguiu, não teria “relação com a contratação” da Infoway e que foi por “decisão da Mantenedora”, ou seja, dos Correios. Também via assessoria os Correios não responderam a três pedidos de esclarecimentos sobre o motivo de Vieira Neto ter degolado Grault.

Dois meses depois, mudou de ideia: decidiu contratar sem licitação a Infoway, controlada da Hapvida. O general que era diretor de relacionamento com clientes ficou contra e fez questão de que sua posição fosse registrada em ata. Ele foi demitido pelo general-presidente dos Correios

Por que tanta obscuridade? Além do fato de o contrato ter sido decidido da forma como foi, e de ter numa das pontas uma empresa acusada de integrar uma engrenagem de corrupção, essa mesma firma tem por trás “amigos do rei”. A ­Infoway foi comprada, em abril de 2019, por 25 milhões de reais, pela Hapvida, do Ceará, um dos principais planos de saúde do País, o maior do Nordeste. O patriarca do grupo e seu fundador é um oncologista de 75 anos, Cândido Pinheiro Koren de Lima. Este e os dois filhos, Cândido Júnior e Jorge, um trio de bilionários, são figuras habituais em reuniões do PIB com Bolsonaro.

Até o fim do ano passado, Júnior, de 51 anos, era o vice-presidente de Relações Institucionais da Hapvida. Nessa condição, esteve em ao menos três ocasiões com Bolsonaro. Em junho de 2019, era um dos 50 convidados de um jantar oferecido ao ex-capitão na casa de Paulo Skaf, comandante da Fiesp. Em março de 2020, participou de um encontro na Federação das Indústrias paulistas com o presidente. Quatro meses depois, era um dos dez vips em um almoço de Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Uma foto do almoço o mostra às gargalhadas ao lado do presidente e de Skaf.

José Orlando Ribeiro Cardoso, metido até o pescoço, e Oscar Henrique Grault Vianna

Cândido Pinheiro, o pai, foi um dos comensais de um jantar com Bolsonaro, em São Paulo, em 7 de abril de 2021, na casa de Washington Cinel, um ex-tenente da PM dono de uma firma de segurança e vigilância privada, a Gocil. O convescote contou, entre outros, com a presença dos banqueiros André Esteves, do BTG, e Luiz Carlos Trabuco, do Bradesco. Na véspera, o clã Pinheiro despontara na lista de ricaços da Forbes. Entre as 65 maiores fortunas brasileiras, o oncologista era a 15a, com 3,7 bilhões de dólares. Os dois filhos tinham 1,8 bilhão cada um.

A família passou a frequentar a lista em 2018, ano em que a Hapvida abriu o capital na Bolsa. Na época, o grupo tinha 204 estabelecimentos próprios, dos quais 26 hospitais, 4 milhões de clientes, entre planos de saúde e odontológicos, faturamento anual de 4,5 bilhões e lucro de 788 milhões. O crescimento, desde o início dos negócios, em 1993, deu-se no embalo de programas sociais e expansão da classe C nos governos FHC e Lula, segundo uma entrevista de Cândido Pinheiro em 2016: “Quando se irriga o mercado com tanto dinheiro quanto eles irrigaram, a população que está em cima recebe sua parte. E depois de encher a barriga, a segunda preocupação é a saúde”.

Peixoto, general da reserva premiado com a presidência dos CorreiosO grupo continuou a encorpar na era Bolsonaro. No terceiro trimestre de 2021, último balanço disponível, sua rede própria era de 475 estabelecimentos (+ 230% ante 2018), sendo 47 hospitais (180%), a clientela chegava a 7,4 milhões (185%), as receitas somavam 8,6 bilhões e o lucro, 655 milhões. O avanço mais recente dá-se à base de aquisições de concorrentes e da chamada verticalização. Um plano convencional faz a intermediação entre usuários, de um lado, e médicos e hospitais, de outro. No caso da Hapvida, não: ela é dona dos estabelecimentos e empregadora dos médicos (uns 30 mil). “A verticalização, quando trabalha pela saúde, pode ser uma boa alternativa”, afirma o médico Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde. “O problema é quando se destina exclusivamente à gestão de custos. A Hapvida tem controle total da rede de prestação de serviços, ou de grande parte dessa rede. A Agência Nacional de Saúde fiscaliza operadoras, não a rede. É fundamental mudar a legislação para a ANS fiscalizar também a rede.”

“Há muitas evidências de que os donos da Hapvida são bolsonaristas”, anota Chioro, e isso ficou claro na pandemia, postura favorecida pela verticalização. O convênio apoiou o uso (inútil) de cloroquina em pessoas com Coronavírus, igual a Prevent Sênior, motivo de ter sido multado em 465 mil reais pelo Ministério Público do Ceará em abril de 2021 e de ter estado na mira de um integrante da CPI da Covid, o petista pernambucano Humberto Costa, autor de quatro requerimentos sobre a companhia.

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Cândido Pinheiro, o pai, havia sido um dos 23 gigantes do PIB com os quais Bolsonaro fizera uma videoconferência em 20 de março de 2020, nove dias após a Organização Mundial da Saúde decretar o Coronavírus uma pandemia. O presidente apelara aos ouvintes para que mantivessem os negócios a funcionar. No dia seguinte, anunciava na web ter ordenado ao laboratório do Exército a produção em grande escala do comprimido. Dois meses depois, em maio de 2020, o Sindicato dos Médicos de Pernambuco recebera denúncias de funcionários da Hapvida de experiências com cloroquina em um hospital da empresa no Recife. Médicos eram coagidos a seguir o protocolo da casa, de prescrição do remédio, e a não falar mal do placebo, conforme mensagens de WhatsApp obtidas por um site de Pernambuco, o Marco Zero. Do contrário, teriam de se explicar à chefia e poderiam ser demitidos, uma ameaça real diante da verticalização da empresa.

Em outubro de 2021, reta final da CPI, um dos denunciantes, Felipe Peixoto Nobre, contou ao Globo: “Não interessava se o paciente sabia ou não dos riscos, a orientação era: tem de passar ­(cloroquina) e não cabe discussão. Eu saí em maio de 2020, mas soube por colegas que eles continuaram fazendo isso até março deste ano”. Na época da entrevista, o noticiário relatava que, na Bahia, uma vítima fatal do vírus tinha tido a causa da morte omitida pela Hapvida, a qual posteriormente diria ter sido um erro.

Ao contrário da Prevent Sênior, a Hapvida foi poupada na CPI

Apesar de tudo, nenhum dirigente da companhia depôs na CPI, ao contrário da Prevent. Segundo um membro da comissão, a empresa trabalhou nos bastidores para evitar qualquer convocação. O relator, Renan Calheiros, do MDB, não teria se interessado pelo caso, idem o presidente Omar Aziz, do PSD. Calheiros temeu o poder de fogo da Hapvida? Em 2014, o grupo cearense entrou na área da comunicação, ao assumir o controle de uma tevê em Alagoas, a terra do relator da CPI, e outra em Natal, a capital potiguar. A aventura pelo setor midiático tem sido conduzida através da Canadá Participações e Investimentos, propriedade da família Pinheiro. Já se espraiou para rádios e tevês na Paraíba e em Pernambuco. O relatório final da CPI cita a Hapvida uma única vez, como exemplo de quem se escondeu atrás de um parecer da Conselho Federal de Medicina sobre autonomia médica para justificar a prescrição de cloroquina. Acusação, nenhuma.

“A família Pinheiro sempre teve bom relacionamento com políticos de vários espectros, sempre faz lobby para indicar diretores da ANS, mas confesso que fiquei surpreso com esse envolvimento com o Bolsonaro”, afirma um integrante da CPI.

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Diante disso, dá para ficar surpreso com o acordo feito pelo plano de saúde dos Correios com a Infoway? E da forma como foi? Ao se desfiar o novelo do negócio, chega-se de alguma forma ao presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, figura tradicional nas transmissões de Bolsonaro em vídeo na web. Em fevereiro de 2019, início do atual governo, Guimarães assinou a liberação de um economista da Caixa, Heglehyschynton Valério Marçal, para ser assessor especial do presidente dos Correios, na época o general Cunha. Guimarães e Marçal são da mesma escola: o que podem fazer para encolher as estatais a que pertencem e abrir espaço para o lucro privado, eles fazem. Marçal seguiu no cargo com o sucessor de Cunha. Em abril de 2021, foi nomeado pelo general Vieira Neto diretor-financeiro dos Correios, com a missão privatizadora. Nos Correios, comenta-se que o diretor da Postal Saúde responsável por favorecer a Infoway chegou ao cargo graças a Marçal. Reinaldo Camargo era do Funcef, fundo de pensão da Caixa, e aproximou-se de Marçal lá.

Nos Correios, há quem aponte vários pontos críticos no negócio desenhado por Camargo com a Infoway. O acordo é milionário (a Postal Saúde não revela o valor), e a Infoway não parece ter capital social suficiente para arcar, por exemplo, com eventuais multas. Seu capital é de 2,9 milhões. Além disso, com ela na Postal, pode haver conflito de interesses entre os conveniados (empregados dos Correios) e a Hapvida. Caberá à Infoway auditar faturas de despesas médicas. E se ela negar tudo o que não for pagamento à rede da Hapvida? Em setembro, a ANS aprovou a incorporação da São Francisco Odontologia, prestadora de serviço à Postal Saúde, pelo grupo do Ceará. A Postal gasta perto de 1,3 bilhão por ano, e agora talvez fique mais fácil canalizar a bolada para a Hapvida, via Infoway.

Pedro Guimarães, defensor ardoroso do lucro privado

A Postal Saúde diz que o Manual de Contratação da entidade permite selar negócios sem licitação. E que “a solução contratada permitiu a atualização do sistema de apoio à gestão da Postal Saúde, gerando economicidade anual de em torno de 37% em relação ao contrato anterior”. O acordo precedente, de cerca de 18 milhões, era com uma firma chamada Benner, firmado em 2013 e renovado em 2017. A Benner, aliás, teria sido a substituta da Infoway no convênio dos servidores de Tocantins, após o contrato com o Plansaúde ter sido rompido em agosto de 2020, 14 meses antes do afastamento do governador Carlesse.

Via assessoria de imprensa, a Infoway disse, a propósito da acusação de integrar um esquema em Tocantins, que o serviço vendido ao plano de saúde dos servidores de lá era um software e uma análise técnica sobre a cobrança feita por atendimentos médico-hospitalares. “Se isso era usado indevidamente depois, não contava com a participação nem anuência da Infoway”, afirmou. Pagar ou não os valores cobrados era uma decisão dos dirigentes do Plansaúde. Ainda conforme a assessoria, o acordo em Tocantins foi rompido após calotes por parte do Plansaúde. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: EVANDRO LEAL/AGÊNCIA ENQUADRAR/FOLHAPRESS E REDES SOCIAIS – REDES SOCIAIS, ALAN SANTOS/PR E ESEQUIAS ARAÚJO/GOVTO – JOSÉ CRUZ/ABR E JOSÉ DIAS/PR

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