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Tiktokers federais

Deputados da Comissão de Segurança Pública desperdiçam dois terços do seu tempo com requerimentos sem relevância

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I love Trump. O espetáculo de sabujice só serviu para abastecer as redes socais – Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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Na terça-feira 22, aliados de Jair Bolsonaro promoveram um espetáculo em Brasília. Apesar da pausa nos trabalhos legislativos, eles se reuniram na Câmara dos Deputados para manifestar apoio ao ex-presidente, réu por tentativa de golpe de Estado e atualmente monitorado por tornozeleira eletrônica. O encontro foi promovido pelas comissões de Segurança Pública e de Relações Exteriores. O objetivo era aprovar uma moção de solidariedade ao ex-capitão, mas a iniciativa fracassou após o presidente da Casa, Hugo Motta, vetar deliberações durante o recesso.

Uma vez reunidos, não perderam a oportunidade de “marcar posição”. Agarrada a cartazes da campanha de Donald Trump, que acaba de impor uma tarifa punitiva de 50% sobre os produtos brasileiros nos EUA, a claque bradou palavras de ordem contra o “regime ditatorial” instalado no Brasil, nas palavras do deputado Paulo Bilynskyj (PL), presidente da Comissão de Segurança Pública. A correligionária Silvia Waiãpi usou até uma mordaça para simbolizar a censura à qual estariam submetidos. Coube ao Delegado Caveira, outro colega de partido, a patriótica missão de estender a faixa “Make America Great Again” dentro do… Parlamento do Brasil.

O espetáculo de bajulação, como era de se esperar, não levou a lugar algum. Serviu apenas para abastecer as redes sociais dos deputados tiktokers com discursos inflamados. Esse serviço de inutilidade pública, por sinal, ocupa a maior parte do tempo de trabalho dos integrantes da Comissão de Segurança Pública na Câmara. Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz, a discussão de Projetos de Lei – quase sempre focados no aumento de penas para criminosos – ficou em segundo plano no último biênio. Em 2023 e 2024, mais de dois terços das atividades nesse colegiado (67,22%) consistiram na apresentação de requerimentos, mais que o dobro do período anterior (32,28%). Trata-se de uma saraivada de moções de aplauso, repúdio, louvor ou reconhecimento. Raramente, os parlamentares gastam saliva para propor a realização de audiências públicas. O desvio de finalidade é espantoso, critica a diretora-executiva da ONG, Natália Pollachi.

Durante esse período, o debate e a apreciação de Projetos de Lei representaram apenas 25,13% das atividades, segundo o Instituto Sou da Paz. A produção parlamentar foi ínfima: apenas 15 propostas avançaram para o Senado, e uma única foi sancionada e entrou em vigor. Grande parte das moções teve como objetivo parabenizar agentes das forças de segurança. “Há um interesse particular nesse tipo de instrumento, que os parlamentares usam para fazer vídeos, cortes e alimentar suas redes sociais, agitando suas bases eleitorais”, observa Pollachi. As facções criminosas não poderiam estar mais satisfeitas com o empenho e dedicação dos nossos nobres deputados.

A ONG observa o trabalho da Comissão desde 2014 e revela que, no último biê­nio, aconteceram “episódios muito graves de debates interditados, sem o mínimo de decoro”. Pollachi destaca que a Segurança Pública está no topo das preocupações dos brasileiros, como atestam diversas pesquisas de opinião. Ainda assim, o colegiado responsável pela temática na Câmara tem “pouquíssima significância de impacto público coletivo”, avalia.

Moções de aplausos, repúdio, louvor ou reconhecimento dominam a pauta do colegiado, revela estudo do Sou da Paz

Os políticos influencers não são um fenômeno exclusivo do Brasil. A cientista política Beatriz Rey, pesquisadora associada da Fundação Popvox, nos EUA, monitora o trabalho legislativo em diversos países e faz um alerta: o uso excessivo das redes sociais está mudando o “fazer parlamentar” em todo o mundo. Esse comportamento é mais comum entre os jovens, especialmente os “marinheiros de primeira viagem”. Dos 33 titulares da Comissão de Segurança Pública, 23 estão em seu primeiro mandato federal. “Eles já entraram no Legislativo sob essa lógica das redes sociais e não têm a memória institucional do que é, de fato, a função legislativa”, afirma.

Segundo a pesquisadora, os parlamentares menos experientes tendem a adotar um comportamento intransigente, justamente por entenderem que isso agita suas bases eleitorais. No entanto, o “fazer parlamentar” voltado à construção de políticas públicas deveria seguir a lógica oposta. “Só constrói algo quem sabe dialogar, fazer acordos, ceder, negociar, mas isso não gera engajamento nas redes”, afirma. O uso das mídias sociais, por si só, não é o problema, mas torna-se “uma distorção” quando o deputado ou senador utiliza o espaço da comissão apenas para esse fim, acrescenta Rey.

Pastor da Igreja Batista e deputado pelo PSOL, Henrique Vieira é um dos poucos progressistas que integram a Comissão de Segurança Pública da Câmara. Trata-se de um ambiente “bastante hostil”, contaminado pela fúria dos colegas da extrema-direita, sobretudo os filiados ao PL de Jair Bolsonaro, em maioria no colegiado. “São 30 homens falando absurdos e se aplaudindo uns aos outros. Parece haver um certo prazer nessa violência, uma solidariedade masculina perversa e tóxica”, comenta. “Eles priorizam essa comissão por entender que mobilizar o medo e a violência atrai votos.”

Se, no último biênio, a atuação foi marcada por “debates desqualificados”, a tendência é piorar com a chegada do extremista Bilynskyj à presidência da Comissão, acredita o pastor. “Depois que ele assumiu, há uma espécie de licença subjetiva para a violência política escalonar”, afirma. “Não são apenas tiktokers, são os influencers do ódio.”

O deputado Ivan Valente (PSOL) foi um dos alvos desse ambiente, em dezembro passado, ao apresentar um Projeto de Lei voltado à melhora da estrutura da Polícia Técnica para o esclarecimento de homicídios. O texto nem sequer foi lido. “Disseram que ali não passa nada que venha de comunista, e o Delegado Caveira rasgou meu projeto”, denuncia. O mesmo deputado que, dias depois, ergueu a bandeira de Donald Trump em meio à crise do tarifaço. “Essa comissão virou um bunker da extrema-direita.” Alberto Fraga, presidente da Comissão de Segurança Pública em 2024, e Bilynskyj, o atual titular, foram procurados pela reportagem para comentar os dados do Instituto Sou da Paz, mas não responderam até o fechamento desta edição. •

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tiktokers federais’

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