Política
Tic-tac
Às vésperas do julgamento final de Bolsonaro, a prisão domiciliar do ex-presidente incendeia Brasília e alimenta
a crise com os EUA


Em setembro, termina o inverno e começa a primavera, mas não para Jair Bolsonaro. Vem aí uma longa experiência siberiana para ele. Depois de ganhar tornozeleira eletrônica e ser colocado em prisão domiciliar, o capitão vê no horizonte seu maior pavor: acertar contas com a Justiça. “Temos três alternativas, em especial para mim. Preso, morto ou com vitória. Dizer aos canalhas que eu nunca serei preso.” O destino foi implacável com as palavras pronunciadas em 7 de setembro de 2021 pelo então presidente, que desafiava o Supremo Tribunal Federal, anunciava não mais cumprir ordens da Corte e arrancava gritos de apoio para passar por cima dela. Não apenas pela derrota nas urnas em 2022 e a prisão de agora, embora em casa. Mas, principalmente, por que o STF se prepara para julgá-lo em setembro, e não há razão para o réu sonhar com absolvição, apesar da chantagem dos Estados Unidos e do motim da extrema-direita no Congresso. Bolsonaro será condenado, a dúvida é o tamanho da pena. Com base no veredicto do tribunal sobre outros golpistas, será uma sentença de mais de 20 anos.
Lula, que pegou 12 anos na Operação Lava Jato, conseguiu anular a punição no STF por motivos escusos de Sergio Moro, deixou o cárcere para voltar ao poder. O presidente planeja fazer do próximo 7 de Setembro uma data memorável, e Bolsonaro é um dos grandes responsáveis. “O povo tem que saber o que é soberania e cabe a todos nós dizer”, comentou no domingo 3, durante o Encontro Nacional do PT. Soberania é, por exemplo, não se dobrar a pressões estrangeiras e buscar caminhos de desenvolvimento escolhidos dentro do Brasil, a partir de interesses estratégicos nacionais e da população. Eis algumas mensagens desenhadas no governo para o Dia da Independência. Resta saber se as Forças Armadas estarão afinadas no desfile. Há rumores em Brasília de que os militares não querem melindrar os EUA, com quem têm acordos (e laços) antigos. Os fardados não estão em condições, no entanto, de criar problemas agora.
O STF prepara-se para julgá-lo em setembro. As penas, somadas, chegam a 34 anos de prisão, fora os agravantes
Dos 31 réus na trama golpista, 22 são militares, incluídos aí Bolsonaro, um tenente-coronel delator e um general que confessou, em depoimento no Supremo, ter concebido e colocado no papel o plano de captura e execução de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. A intenção no STF é julgar as quatro ações penais a partir de setembro e liquidá-las até dezembro. A turma de cinco juízes que examinará os processos costuma reunir-se toda terça-feira à tarde e está pronta para realizar sessões extras pela manhã. A segurança da Corte elabora um esquema especial para o julgamento, da mesma maneira que havia feito em maio, ocasião em que o tribunal decidiria se aceitava a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra os golpistas.
A primeira ação penal da fila é a de Bolsonaro e mais sete acusados, a 2668. Está na fase de entrega das alegações finais pelos advogados dos réus. A Procuradoria entregou a sua em 14 de julho. Pediu a condenação do capitão por cinco crimes, os mesmos imputados a ele na denúncia de fevereiro e que compuseram uma trama entre julho de 2021 e janeiro de 2023: liderar quadrilha armada, tentar golpe, tentar abolir com violência ou grave ameaça o Estado Democrático de Direito, danificar patrimônio público e deteriorar bem tombado. As penas, somadas, vão de um mínimo de 12 anos a um máximo de 34 anos, sem contar agravantes. “A denúncia é bem-posta, uma espécie de romance em cadeia, na qual uma coisa se encadeia a outra. É o que se chama de crime de empreendimento, cada acusado tinha uma missão”, afirma Lenio Streck, procurador de Justiça aposentado e advogado. Para ele, se não houver imprevistos ou um pedido de vista no julgamento, a sentença sai até outubro. Sua aposta é de 22 a 26 anos de cadeia para Bolsonaro.
Por ser ex-presidente, o capitão de 70 anos terá direito a uma detenção especial. Uma sala no Comando do Exército em Brasília ou na Superintendência da Polícia Federal na cidade, explica Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e ex-subprocurador-geral da República. Deixá-lo entre militares seria bastante impróprio, na visão de Aragão. A capital do País tem sido a residência de Bolsonaro desde a volta ao Brasil, após ter viajado para os EUA na antevéspera de concluir o mandato. Segundo Aragão, o capitão poderia pedir para ficar na PF do Rio de Janeiro, cidade onde construiu carreira política e possui três imóveis declarados à Justiça Eleitoral na última campanha. Aí caberia ao STF concordar. Lula teve a opção de escolher a PF paulista na época da Lava Jato e preferiu o cárcere curitibano.
Bolsonaro usa os filhos Carlos, Flávio e Eduardo para manter os ataques ao Judiciário. No Parlamento, a claque bolsonarista não perde oportunidade de se expor ao ridículo – Imagem: Saulo Cruz/Agência Senado e Redes Sociais
Há ainda a possibilidade de Bolsonaro vir a cumprir pena em um presídio comum em Brasília, a Papuda, que é dotado de uma ala para autoridades. Será, ao fim e ao cabo, uma decisão de Moraes, o relator do processo. Em abril, o magistrado havia mandado o ex-presidente Fernando Collor para uma penitenciária comum de Alagoas, para cumprir pena de dez anos por corrupção. Voltou atrás uma semana depois, por questões de saúde invocadas por Collor, e concedeu-lhe prisão domiciliar.
Bolsonaro vive a situação de Collor desde 4 de agosto. Na primeira vez que havia desobedecido uma medida cautelar do Supremo e usado redes sociais de terceiros, Moraes fez vista grossa. Ao repetir a dose em uma manifestação bolsonarista em 3 de agosto, o juiz não foi mais condescendente. “A Justiça é cega, mas não é tola. A Justiça não permitirá que um réu a faça de tola, achando que ficará impune por ter poder político e econômico”, diz a ordem de prisão. O cárcere do ex-presidente é uma casa de 400 metros quadrados, dois andares e piscina, em uma área nobre de Brasília. Tem sido o lar dele, da esposa Michelle e da filha do casal, Laura, de 14 anos, desde 2024. O aluguel é pago pelo PL. Ao reagir à prisão, o chefe do partido, Valdemar da Costa Neto, divulgou uma nota sucinta e involuntariamente cômica: “Estou inconformado! O que mais posso dizer?”
A reação do PL no Congresso nada teve de cômica. Unida a bolsonaristas de outras legendas, a bancada criou o caos. Na Câmara e no Senado, tomou conta das mesas diretoras, que é o lugar ocupado pelos presidentes das Casas durante as sessões plenárias. Resultado: muita confusão, pouco trabalho e nada de votação nos dois primeiros dias após o recesso legislativo de julho. Feito um sequestrador, a oposição apresentou uma lista de exigências para soltar o refém. Impeachment de Moraes, anistia a golpistas e fim do foro privilegiado, uma forma de esvaziar inquéritos de congressistas em curso no Supremo. Os comandantes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, serão capazes de driblar a oposição e devolver logo o Legislativo ao batente?
Os amotinados no Congresso exigem votação de anistia e o impeachment de Moraes
Motta conseguiu sentar na marra na cadeira da Presidência por volta das 22h20 de 6 de agosto, após ameaçar suspender por seis meses o mandato dos amotinados. Estes juram que só lhe deram passagem porque ele teria topado colocar a anistia para votar. Motta e Alcolumbre podem vir a sofrer represálias dos EUA tal qual Moraes. O deputado por segurar a votação da anistia e o senador por fazer o mesmo com pedidos de impeachment do juiz. Eduardo Bolsonaro, outro filho parlamentar do capitão, não faz segredo do plano. Do autoexílio na terra de Tio Sam, disse ao Globo que “trabalha, sim” por mais medidas de Donald Trump contra o Brasil.
O Tio Sam saiu em defesa de Bolsonaro após a prisão domiciliar. Através do ex-Twitter, a repartição diplomática norte-americana responsável por assuntos ocidentais criticou Moraes. Apelou àquele blablablá hipócrita e delirante de que o juiz desrespeita os direitos humanos – motivo invocado, aliás, para os EUA enquadrá-lo na Lei Magnitsky, concebida para punir estrangeiro violador dos direitos humanos e metido em corrupção. Que tal usar essa legislação para sancionar o premier de Israel, Benjamin Netanyahu, pelo massacre de palestinos na Faixa de Gaza? O patrono da lei, o investidor britânico William Browder, diz que a aplicação em Moraes é uma “deturpação”. O número 2 da diplomacia ianque, Christopher Landau, falou de viva voz a favor de Bolsonaro. Para ele, não há obstrução da Justiça pelo capitão, e Moraes arrasta o Brasil para uma “ditadura judicial”.
“O rito processual do Supremo Tribunal Federal vai ignorar as sanções praticadas. Este relator vai ignorar as sanções que foram aplicadas e continuará trabalhando”, havia dito Moraes na retomada dos trabalhos da Corte, em 1º de agosto, após as férias de julho. Dois dias antes, os EUA o haviam incluído na Lei Magnitsky, daí que a sessão do STF combinou desagravo ao sancionado e reafirmação da independência para decidir sobre os acusados de golpe. “Todos os réus serão julgados com base nas provas produzidas, sem qualquer tipo de interferência, venha de onde vier”, afirmou na sessão o presidente do STF, Luís Roberto Barroso.
Motta e Alcolumbre tiveram dificuldade para reassumir o comando das mesas diretoras da Câmara e do Senado – Imagem: Jonas Pereira/Agência Senado
Em setembro, haverá troca de comando no STF. Barroso será sucedido por Edson Fachin, atual vice-presidente, cuja posse está marcada para o dia 29 do mês que vem. Nada mudará, porém, quanto ao julgamento dos réus golpistas. “Não vamos nos assombrar com esses ventos que estão soprando vindos do Norte, por mais fortes que sejam”, declarou Fachin em uma palestra em São Paulo. Segundo ele, a punição norte-americana a Moraes “é um péssimo exemplo de interferência indevida, ainda mais quando vem de país estrangeiro em relação a um país soberano” e funciona como “ameaça”.
Apesar da postura pública em defesa de Moraes e da independência do Supremo, a Corte entrou em ebulição interna após a prisão domiciliar de Bolsonaro. Há quem tenha visto um passo em falso do juiz-relator, por causa das reações. Os jornais Folha e Estado de S. Paulo publicaram editoriais contrários à prisão. No meio acadêmico e da advocacia criminal, a decisão do magistrado esteve longe da unanimidade. Recorde-se o enredo que desembocou na decretação da prisão.
Em 17 de julho, Moraes mandou a PF botar tornozeleira eletrônica em Bolsonaro, proibiu-o de sair de casa à noite, aos fins de semana e nos feriados, e de chegar perto de redes sociais e embaixadas. Em 21 de julho, o capitão posou para fotos com a tornozeleira e discursou no Congresso a apoiadores, tudo reproduzido em redes sociais de aliados. O juiz viu desobediência das medidas cautelares, mas deixou passar e consignou que o ex-presidente poderia dar entrevistas, desde que não fossem usadas por milícias digitais na web. Em 3 de agosto, um domingo, houve um ato bolsonarista na Avenida Paulista, em São Paulo, do qual o capitão participou através de rede social do filho Flávio. O senador tirou o conteúdo do ar em seguida, devido ao risco para o pai.
Trump quer um “governo fantoche” no Brasil, avaliam especialistas
Moraes viu ação “pré-fabricada” entre Bolsonaro e os três filhos: Flávio, Eduardo e Carlos. Este último chegou a escrever que as pessoas deveriam seguir a página do pai no Instagram, que em tese está inoperante. Aí o ministro togado foi duro e decretou sua prisão domiciliar. Só a família pode ver Bolsonaro sem autorização judicial prévia. “Moraes poderia ter tomado uma decisão diferente, o Brasil está em polvorosa, os bolsonaristas sabotam o País, fazem chantagem no Congresso. Agora só restou a prisão preventiva antes de uma prisão definitiva para cumprir pena”, afirma Eugênio Aragão. O ex-ministro observa, no entanto, que o ex-presidente já está em prisão preventiva na prática. A diferença entre a situação atual de Bolsonaro e uma preventiva seria o local da detenção.
Apesar das queixas internas no STF, não há nenhuma chance de Moraes rever a própria decisão ou de esta ser revertida pelos colegas, segundo um observador privilegiado dos bastidores do tribunal. E o fator Casa Branca? “A Suprema Corte nossa não está dando a mínima para o que fala o Trump”, declarou Lula em 6 de agosto à agência Reuters. Foi mais uma entrevista agendada pelo Palácio do Planalto para mandar recado aos EUA, repetição do que havia ocorrido uma semana antes via New York Times. O presidente disse que não telefonará para Trump, pois tem a “intuição” de que o líder norte-americano não está disposto a conversar. “E eu não vou me humilhar.” Irá procurá-lo somente quando chegar a hora de convidá-lo para a COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, programada para novembro, em Belém. Foi o que contou no Itamaraty, em 5 de agosto, durante um evento no qual preferiu ler um discurso, em vez de falar de improviso, por causa da “seriedade do momento político” e do desejo de “medir cada palavra”.
No congresso petista realizado dias antes, Lula tinha dito que não pode falar tudo o que tem vontade sobre os EUA. “Não queremos brigar, mas não pensem que nós temos medo.” Como mostrou CartaCapital na edição anterior, ele espera uma luta de longo prazo com Trump, por crer que o objetivo do norte-americano é interferir na próxima eleição brasileira e levar ao poder um político que afaste o Brasil da China e dos BRICS. Daí que ainda haverá tempo para novas retaliações ianques, não só em razão da prisão domiciliar de Bolsonaro, mas também após o julgamento do capitão. Sanções a outros juízes do Supremo e ministros do governo, por exemplo.
Moraes mantém o rigor. A troca de comando no STF, com Fachin no lugar de Barroso, não muda o rumo do julgamento. E Lula resiste ao tarifaço – Imagem: Roberto Jayme/TSE, Sergio Lima/AFP e Arquivo/STF
Um colaborador diplomático do presidente vê risco de Trump não reconhecer o resultado da eleição, em caso de triunfo de Lula. Professor de Relações Internacionais na FGV e com doutorado no assunto, Vinicius Rodrigues Vieira concorda. Para ele, Trump quer um “governo fantoche” no Brasil. “Vamos viver uma queda de braço, e o resultado não está claro”, diz o professor, a acrescentar que o governo deveria costurar desde já com democracias europeias uma forma de neutralizar a presumível posição trumpista.
Com Bolsonaro fora do jogo eleitoral por estar inelegível, e uma das causas da inelegibilidade dele é justamente um ato de 7 de Setembro (o de 2022), existem potenciais “fantoches” trumpistas dentro do clã, como Eduardo e Michelle. Fora da família, a lista inclui quatro governadores: Ratinho Jr., do Paraná, Romeu Zema, de Minas Gerais, Ronaldo Caiado, de Goiás, e Tarcísio de Freitas, de São Paulo. O quarteto manifestou-se a favor do capitão após a prisão domiciliar. Tarcísio, frequente e imprecisamente descrito como moderado, tinha evitado o ato da Avenida Paulista de 3 de agosto com uma conveniente cirurgia, mas não aguentou calado a detenção do ex-chefe. “A prisão de Jair Bolsonaro é um absurdo. A verdade é que Bolsonaro foi julgado e condenado muito antes de tudo isso começar. Uma tentativa de golpe que não aconteceu, um crime que não existiu e acusações que ninguém consegue provar”, disse em texto e vídeo nas redes sociais.
Tarcísio é um dos que foram ao STF pedir para ver o ex-presidente em casa. Quem for autorizado a entrar no local está impedido de usar celular, gravar vídeos e tirar fotos enquanto estiver com o ex-presidente. O senador Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil do governo do capitão, esteve com ex-chefe no cárcere residencial. Saiu de lá e gravou dentro do carro um vídeo a relatar o encontro: “Não vou dizer que ele não estava triste”.
A tristeza do golpista está só no começo. •
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tic-tac’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Moraes autoriza Bolsonaro a receber médicos sem comunicação prévia
Por CartaCapital
Líder do PL diz que não houve acordo por anistia e pede perdão a Motta
Por Vinícius Nunes