Política

Tereza Campello: “O Brasil não pode esquecer a tragédia neoliberal”

Analisar a evolução da pobreza nas últimas décadas é fundamental para prever os resultados danosos das reformas de Temer, diz a ex-ministra

"O Brasil já viveu sob a égide do neoliberalismo, e foi desastroso", alerta Tereza Campello
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Se hoje o Brasil tem 80% dos idosos cobertos pela seguridade, no futuro próximo esse porcentual pode cair drasticamente, semelhante ao que ocorreu no México, onde apenas 23% dos cidadãos com mais de 65 anos recebe aposentadoria. O alerta é de Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma Rousseff.

“A elevação da idade mínima da aposentadoria e do tempo de contribuição vai, naturalmente, jogar uma grande parcela dos idosos no Benefício de Prestação Continuada, o que já acontece com muitos cidadãos que trabalharam a maior parte da vida na informalidade”, diz. Isso não significa, porém, que os mais pobres estarão protegidos. 

O BPC é pago a portadores de graves deficiências e a cidadãos com mais de 65 anos que possuem renda inferior a um quarto de salário mínimo. O problema é que o governo Temer pretende aumentar para 70 anos a idade mínima para a concessão do provento.

“Atualmente, o beneficiário usufrui do BPC por seis anos em média, até falecer. Com a mudança proposta por Temer, ele teria apenas um ano, embora seja improvável a sua sobrevivência sem dinheiro para comprar comida ou remédios”, lamenta Campello. “Voltaremos a ver no Brasil legiões de idosos em situação de rua, a exemplo do ocorre no México. Em qualquer cidade de lá, você se depara com idosos abandonados nas ruas”.

Os dados não deixam dúvidas sobre o pífio desempenho do governo FHC no combate à miséria

Campello ressalta que o Brasil já viveu sob a égide do neoliberalismo, com retrocessos no campo social. Ela atualizou a evolução das linhas da pobreza (renda inferior a 2,5 dólares por dia) e de extrema pobreza (até 1,25 dólar por dia) para um artigo acadêmico em elaboração. O gráfico não deixa dúvidas sobre a pífia atuação do governo FHC, entusiasta do Consenso de Washington, no combate à miséria.

A evolução da pobreza multidimensional também foi atualizada por Campello, hoje pesquisadora da Fiocruz, com base em uma metodologia proposta pelo Banco Mundial, que também considera indicadores educacionais, de saneamento, entre outros. “Só avançamos graças ao fortalecimento da rede de proteção social no Brasil, mas tudo isso está ameaçado pela excludente reforma da Previdência proposta por Temer e pelo estrangulamento de gastos com saúde, educação e assistência social devido ao congelamento dos gastos públicos por 20 anos”, diz a ex-ministra. 

CartaCapital: Após congelar os gastos públicos por 20 anos, o governo Temer diz que a reforma da Previdência é imprescindível para reconquistar a confiança dos investidores privados. Tal receituário será capaz de produzir crescimento aliado à inclusão?
Tereza Campello: De forma alguma. Precisamos lembrar que o Brasil já viveu sob a égide do neoliberalismo, e foi desastroso. Esse remédio não apenas não curou o paciente, como piorou a situação do País. O diagnóstico que está sendo feito hoje é idêntico ao dos anos 1990: entende-se que o Estado é grande demais e gasta muito, essa seria a razão da crise.

É uma análise absolutamente equivocada. Cortaram despesas públicas, criaram programas de demissão voluntária, enxugaram a máquina, venderam o patrimônio público para garantir o pagamento das dívidas. Houve um processo de desregulamentação do mercado, porque se dizia que o Estado interferia demais na economia.

“Cortar aposentadorias e benefícios do BPC significa retirar o poder de compra da população, destruir o mercado doméstico

Seguimos à risca as medidas propostas pelo Consenso de Washington para a América Latina. Essa receita foi implantada ao longo da década de 1990 e nada do que foi prometido foi entregue. Tivemos um crescimento pífio no Brasil (no governo FHC, a economia nacional cresceu a uma média anual de 2,2%). O bolo não cresceu, e quem era pobre continuou pobre. O País perdeu uma década.

Temer insiste nesse receituário. Reduzir a renda dos mais pobres, achatar o salário mínimo, cortar aposentadorias e benefícios do BPC significa retirar o poder de compra da população, destruir o mercado doméstico. É prejudicial para a indústria, para o comércio, diminui a dinâmica da economia nacional.

CC: O que mudou após a eleição de Lula?
TC: Experimentamos outra receita. O Estado assumiu o seu papel no processo de distribuição de renda. Isso é importante não apenas para os mais pobres, que têm acesso a essa renda, mas para todos. O maior patrimônio do País são os 205 milhões de brasileiros.

Trata-se de um mercado interno poderoso, principalmente em um momento de crise como o de agora, no qual há uma retração da economia mundial, os Estados Unidos se fecham, a China cresce a uma velocidade muito menor do que antes, a Europa também. No governo Lula, a economia cresceu bem mais (média anual de 4%), e isso veio acompanhado de queda sistemática da pobreza e da extrema pobreza.

CC: Muitos atribuem esse feito ao chamado “boom das commodities”, que permitiu ao Brasil crescer e gastar mais graças às exportações.
TC: Isso é balela. Criaram muitos mitos para desmerecer os avanços que tivemos na última década. Primeiro, diziam que a pobreza já vinha caindo no governo FHC. Não é verdade, o gráfico mostra claramente isso. Depois, falavam que a redução era apenas por conta do Bolsa Família, mas os brasileiros saiam da miséria e caíam na pobreza. Também não é verdade. A pobreza caiu mais intensamente do que a extrema pobreza.

“Com a crise de 2008 e 2009, o valor das commodities despencou, mesmo assim a pobreza continuou caindo”

Não foi só o Bolsa Família. Houve valorização do salário mínimo, aumento da formalização dos trabalhadores e dos microempreendedores, elevação do crédito, fortalecimento agricultura familiar, aumento do número de beneficiários do BPC e da aposentadoria rural.  Aí falam do tal “boom das commodities” para desmerecer as iniciativas do governo Lula, dizendo que foi um avanço conjuntural. Com a crise financeira de 2008 e 2009, o valor das commodities despencou. As exportações tiveram uma queda expressiva e mesmo assim a pobreza continuou caindo.

CC: Qual foi o papel do Bolsa Família nesse cenário?
TC: O Bolsa Família veio para fechar o ciclo da proteção social no Brasil, pois se destina a quem está em idade ativa, mas tem uma renda muito baixa, por vezes incerta, são pessoas que vivem na informalidade. Quem não está mais em idade ativa conta com a Previdência ou com o Benefício de Prestação Continuada, destinado a portadores de graves deficiências e idosos em situação de pobreza. Essas pessoas sempre tiveram o direito constitucional de receber ao menos um salário mínimo, e isso está em risco hoje no País.

CC: Por quê?
TC: A elevação da idade mínima da aposentadoria e do tempo de contribuição vai, naturalmente, jogar uma grande parcela dos idosos no BPC, o que já acontece com muitos cidadãos que trabalharam a maior parte da vida na informalidade. Só que o governo Temer pretende aumentar para 70 anos a idade mínima para a concessão do provento aos idosos pobres. Atualmente, o beneficiário usufrui do BPC por seis anos em média, até falecer. Com a mudança proposta por Temer, ele teria apenas um ano, embora seja improvável a sua sobrevivência sem dinheiro para comprar comida ou remédios.

Voltaremos a ver no Brasil legiões de idosos em situação de rua, a exemplo do ocorre no México. Em qualquer cidade de lá, você se depara com idosos abandonados nas ruas.

CC: A pobreza voltou a crescer em 2015, ainda no governo Dilma.
TC: A partir de 2008 o Brasil adotou uma série de medidas anticíclicas. Elas foram bem sucedidas por certo tempo, tanto que resistimos à crise internacional. Houve, porém, uma leitura equivocada de que a crise seria menos duradoura. Acreditava-se que a partir de 2013 ela começaria a arrefecer, mas se manteve nos anos seguintes. Algumas iniciativas, como as desonerações e os subsídios para as empresas, não tiveram o efeito esperado, além de ter impacto negativo nas receitas públicas.

“As despesas sociais não aumentaram em 2015. O que houve foi uma queda brutal da arrecadação”

Muita gente culpa as despesas sociais pelo déficit de 2015, mas isso não é verdade. Elas não aumentaram. O que houve foi uma queda brutal da arrecadação. Tivemos, sim, um desajuste fiscal. Ele é real. No entanto, a redução dos gastos públicos não cumpriu o objetivo de reduzir o déficit. Sem as medidas anticíclicas, a economia retraiu ainda mais. Aumentamos o nível de desemprego, com impacto nos indicadores de pobreza.

CC: Então o erro de Dilma foi ter apostado na austeridade fiscal?
TC: Deveríamos rever as políticas fiscais de 2015, esse seria o caminho natural do governo Dilma. Quando você lida com a economia, pode mexer em diversas variáveis, como o câmbio, a taxa de juros, o orçamento de cada setor. Vê o que pode melhorar. O cúmulo da burrice é pegar uma receita que não deu certo, o congelamento dos gastos públicos, e colocar isso na Constituição, perenizar por duas décadas, como fez Temer.

Apesar da sensível queda na renda da população, com impacto nos indicadores sociais, a pobreza multidimensional continuou no patamar de 1% em 2015. Atualizei a curva desse indicador, com base na metodologia desenvolvida pelo Banco Mundial, que leva em conta dados relacionados à escolarização, acesso à saúde, ao saneamento, entre outros.

“Os avanços estão ameaçados pela excludente reforma da Previdência e pelo estrangulamento de gastos sociais”

Isso prova que nossas políticas tiveram enorme êxito. Só avançamos graças ao fortalecimento da rede de proteção social no Brasil, mas tudo isso está ameaçado pela excludente reforma da Previdência proposta por Temer e pelo estrangulamento de gastos com saúde, educação e assistência social devido ao congelamento dos gastos públicos por 20 anos.

Fico espantada ao ler notícias sobre “sinais de melhora da economia”, enquanto o desemprego avança. Em um País com 200 milhões de habitantes, celebrar a redução do mercado interno, quando o mundo se fecha, é não enxergar um passo além do nariz.

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