Política

Temer quer garantir seu mandato em troca de trabalho escravo

Em que momento a sociedade brasileira deu aval ao governo para tamanho retrocesso?

Temer quer garantir seu mandato em troca de trabalho escravo
Temer quer garantir seu mandato em troca de trabalho escravo
Temer faz de tudo para se manter no cargo
Apoie Siga-nos no

Michel Temer ultrapassou os limites na tentativa de salvar seu mandato e não ser investigado pelos crimes de corrupção. Ele flexibilizou as regras para combate ao trabalho escravo com a finalidade de garantir votos de deputados a seu favor e se safar das denúncias. Atendendo a um antigo pedido da bancada ruralista no Congresso Nacional, Temer reduziu o conceito de trabalho escravo através de portaria publicada, na segunda-feira 16, no Diário Oficial da União.  

Agora, os quatro elementos que podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva foram, no frigir dos ovos, reduzidos a dois. A nova portaria estabelece a necessidade de cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal e a Lei 10.803 de 2003. 

Por isto e por tudo que este governo tem feito contra o trabalhador apresentarei à OIT (Organização Internacional do Trabalho), junto a outros parlamentares da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados (CTASP), um relato das medidas que vem sendo tomadas no parlamento e que vão de encontro ao anseio da sociedade brasileira de correção de rumo no que diz respeito à normatização e execução de políticas públicas de combate ao trabalho escravo no Brasil, como o PDC 792/17 (Projeto de Decreto Legislativo) de autoria do Deputado Daniel Almeida que propõe sustar a portaria 1129 do Ministério do Trabalho, o Ciclo de Debates sobre o tema proposto pela Deputada Gorete Pereira na CTASP e outras iniciativas. 

Leia mais:
A escravidão não acabou
Reforma trabalhista dificulta combate ao trabalho escravo
 

Os ataques aos trabalhadores neste governo corrupto têm sido diários. A exoneração, no último 10 de outubro, de André Esposito Roston, chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho, acendeu o sinal vermelho para a situação e logo se percebeu que não se tratava de uma questão administrativa, como chegaram a alegar membros do Governo. As atitudes reiteradas demonstram que a falta de compromisso do governo com a erradicação do trabalho escravo não é apenas flerte com o passado, mas uma volta às raízes de um Brasil fundado na ignomínia da escravidão. 

Roston já havia denunciado o total corte de verbas que atingia especialmente os grupos móveis de fiscalização, o coração do programa de erradicação de trabalho escravo no Brasil. Ação que motivou o Ministério Público do Trabalho a entrar na Justiça para pedir a manutenção das fiscalizações. Uma das alegações do MPT foi de que o Grupo Especial de Fiscalização Móvel que faz as fiscalizações in loco corria o risco de ser paralisado pela primeira vez em 22 anos. O trabalho do grupo móvel, que ao longo de sua história resgatou 50 mil pessoas, sendo mais de 1000 só em 2015, do trabalho análogo ao escravo e que atuou intensamente nos governos Lula e Dilma, entre outras ações, havia colocado o Brasil como referência internacional. Referência desde já perdida pelo Brasil, de acordo com pronunciamento da OIT. 

Agora, com a nova portaria, passa a valer a máxima de que para ser caracterizado crime de trabalho escravo o trabalhador deverá estar impedido no seu direito de ir e vir, independente das condições de trabalho às quais a pessoa está subordinada. Além disso, os auditores fiscais do trabalho perdem autonomia do seu trabalho e o fruto de suas observações in loco só terá validade com o aval do Ministro. Um descalabro completo. 

O próprio Ministério do Trabalho sinaliza que a maior parte dos casos de trabalho forçado no Brasil está no campo e a maioria das vítimas são homens entre 18 e 44 anos. Entre 1995 e 2015, 29% dos trabalhadores libertados atuavam na pecuária e 25% na cana de açúcar. Longe de ser uma coincidência, é justamente a bancada ruralista do congresso uma das que mais pressionou o governo em período recente não só para o descumprimento de ordem judicial de divulgação da “lista suja do trabalho escravo” como para colocar em inoperância as ações de fiscalização.

Seria oportuno o governo explicitar as reais razões do retrocesso nestas políticas. Em que momento a sociedade brasileira deu aval ao governo para tamanho retrocesso? De um país que avançava em sua legislação protetiva aos trabalhadores, com progressos na sua Justiça do Trabalho, tornando-se referência internacional, passamos a figurar como um dos países que ruma à degradação dos direitos humanos mais essenciais. 

A situação me fez lembrar que há poucos dias o sociólogo e ex-presidente do Ipea, Jessé Souza, lançou o livro A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. No livro, Jessé localiza na escravidão a matriz de uma sociedade brasileira que “sem culpa e remorso, humilha e mata pobres”. 

O autor lança luz sobre a urgência de resgatarmos o Brasil interrompido por uma narrativa que atribui somente a política e ao Estado, ambos corruptos nesta visão, todos os nossos males e deixa passar em brancas nuvens os oligopólios e a elite financeira que, ao dominar as peças do jogo, nos atira a um retrocesso civilizacional contra o qual tanto havíamos avançado.

*Orlando Silva é presidente da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados e deputado federal pelo PCdoB/SP

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo