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Surpresa natalina

O Congresso inclui uma colônia de jabutis na reforma tributária e presenteia os brasileiros com o maior IVA do mundo

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Os especuladores fizeram a festa com a relutância do presidente da Câmara em colocar em votação as propostas econômicas do governo federal. O Banco Central precisou intervir para conter a disparada do dólar. Ao cabo, Lula e Haddad conseguiram o que queriam, mas a um custo elevado – Imagem: Mário Agra/Agência Câmara e José Cruz/Agência Brasil
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Na última semana de trabalho legislativo antes do recesso de Natal, o presidente da Câmara, Arthur Lira, portou-se como um Grinch, o anti-Papai ­Noel, exigente demais para o governo Lula e desdenhoso para o conjunto da população. Para colocar em votação a regulamentação da reforma tributária e o pacote de ajuste fiscal, os dois presentes mais desejados pelo Executivo, o deputado cobrou um “bom comportamento”, que se traduziu na liberação de 7,7 bilhões de reais em emendas parlamentares.

O enésimo episódio de chantagem política custou, porém, muito mais caro que isso aos cofres públicos. Em meio às “dúvidas do mercado financeiro” quanto à verdadeira disposição do Congresso para aprovar a proposta de ajuste fiscal do governo, o dólar disparou na terça-feira 17, ultrapassando a marca de 6,20 reais. Para conter a desvalorização da moeda nacional, o Banco Central teve de injetar 3,287 bilhões de dólares em dois leilões extraordinários. Foi o maior valor negociado nessa modalidade desde 2020 e, mesmo com as intervenções do BC, a pressão cambial continuou forte e só refreou após o início da votação do pacote na Câmara.

Não bastasse, os parlamentares deixaram uma colônia de jabutis na reforma tributária, que pode levar o Brasil a ostentar a maior alíquota de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) do mundo, acima dos 27% cobrados na Hungria, atual campeã na tributação sobre o consumo. O governo – e a sociedade brasileira – terá ainda de lidar com numerosos retrocessos aprovados na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, da anistia para armas ilegais à castração química de criminosos. Enquanto o governo tardava a liberar os 7,7 bilhões em emendas, Lira avalizou a aliança de deputados do Centrão com a bolsonarista Bancada da Bala para desfigurar o Estatuto do Desarmamento e a legislação de segurança pública.

Para destravar a votação do ajuste fiscal, Arthur Lira, o Grinch nativo, cobrou de Lula a liberação de 7,7 bilhões de reais em emendas

As votações da reforma tributária e do ajuste fiscal, realizadas terça-feira 17, só foram destravadas na Câmara depois que o governo concordou com a mudança na destinação de parte das emendas de comissão previstas para ser liberadas na reta final de 2024. Um ofício articulado por Lira e assinado por 17 líderes partidários, inclusive da base governista, pediu ao governo a execução imediata de 4,2 bilhões de reais já previstos no Orçamento deste ano, porém bloqueados por decisão do Supremo Tribunal Federal. O detalhe é que, no mesmo dia em que o documento foi enviado ao governo, Lira suspendeu as reuniões das comissões até a volta do recesso, o que na prática faz com que o nome dos autores das emendas permaneça em sigilo e fere as regras de transparência aprovadas após acordo firmado entre Lira e o ministro Flávio Dino, do STF, em novembro.

Diante da necessidade de aprovar o ajuste fiscal e a reforma tributária, o governo cedeu. Dos 7,7 bilhões liberados às vésperas das votações na Câmara, 3,2 bilhões de reais foram destinados às chamadas “Emendas Pix”, modalidade pela qual o dinheiro é depositado diretamente na conta das prefeituras. Mais uma vez ao arrepio do acordo firmado com o Supremo, o pagamento só foi possível porque, em 2 de dezembro, o Congresso aprovou novas regras para a liberação das emendas parlamentares.

“A relação do governo com o Congresso é muito complicada. Lula enfrenta um cenário de muita dificuldade porque Lira é um chantagista, não dá para chamar de outra coisa”, afirma o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV de São Paulo. Para o presidente da Câmara, acrescenta o especialista, parece ser mais interessante criar dificuldades na questão do pacote fiscal e produzir efeitos como, por exemplo, o overshooting do dólar, do que aprovar um ajuste fiscal não só factível, mas também satisfatório na medida do possível: “Ele segue chantageando o governo, nessa triangulação que acaba envolvendo o Supremo”.

Relator da proposta de regulamentação da reforma tributária, o deputado petista Reginaldo Lopes só conseguiu remover parcialmente os jabutis incluídos no Senado – Imagem: Renato Luiz Ferreira, Mário Agra/Agência Câmara e iStockphoto

Couto avalia que, diante de “um cenário tétrico”, o governo teve uma boa notícia com a aprovação da regulamentação da reforma tributária. “Diante das circunstâncias, o resultado foi positivo. Os deputados removeram parte dos jabutis aprovados no Senado, houve o avanço possível. Só o fato de ter sido aprovada e ir à sanção do presidente já é uma vitória importante”, diz. Relator do projeto na Câmara, o deputado petista Reginaldo Lopes conseguiu retirar do texto final a inclusão do setor de saneamento básico na alíquota com 60% de redução de imposto, em uma absurda equiparação com o setor de saúde. Da mesma forma, teve êxito na missão de voltar a incluir os refrigerantes e outras bebidas açucaradas no imposto seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, que também abarca bebidas alcoólicas e cigarros, tributados com uma alíquota maior. Algumas distorções permaneceram. As armas e munições, para citar um exemplo, não foram consideradas tão pecaminosas assim, e terão uma tributação menor que uma garrafa de guaraná vendida no supermercado.

Entre as mudanças feitas pelos senadores e mantidas na Câmara está a inclusão das indústrias de refino de óleo e gás do Amazonas no regime tributário especial da Zona Franca de Manaus, novidade que, na visão do governo, causará distorção na competitividade do setor. A proposta foi mantida graças a um acordo feito com o senador Eduardo Braga, do MDB, o relator da proposta de regulamentação da reforma tributária no Senado: “Fora essa questão da Zona Franca, que depois o governo terá de ver como vai resolver, a reforma ficou boa. Foi um erro o presidente Rodrigo Pacheco ter dado para Eduardo Braga essa relatoria. Ele é do Amazonas e, logicamente, tentou preservar os benefícios da região. Se ele não soltasse o relatório, não haveria a aprovação pelo Congresso antes do recesso. Então, o governo teve de aceitar aquilo ali”, resume o deputado Carlos Zarattini, do PT.

Reginaldo Lopes afirma que o texto alterado pela Câmara e encaminhado à sanção do Executivo reduz a carga tributária em 0,7%: “O texto do Senado aumentava a alíquota para toda a sociedade. Todas as mudanças que não acatamos caminham no sentido de manter a alíquota de referência em 26,5%”, disse. Mesmo com as alterações feitas na Câmara, o IVA brasileiro ficará em torno de 27%, segundo estimativas preliminares. Secretário de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy também considerou satisfatória a proposta final aprovada no Congresso: “As exceções que ficaram foram o custo político da aprovação da reforma. Para o governo, o custo-benefício desse processo foi muito positivo”.

Fora do imposto seletivo, as armas de fogo e munições terão uma alíquota menor que os refrigerantes

Após uma reunião de emergência entre Lira, Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, realizada na terça-feira 17, a Câmara aprovou também um dos projetos que baseiam o ajuste fiscal proposto pelo governo. O texto impõe travas ao crescimento de despesas com pessoal e à concessão de incentivos tributários em caso de déficit primário, além da utilização dos recursos de quatro fundos setoriais para o pagamento da dívida pública. Em outro trecho, a proposta aprovada prevê o bloqueio de até 15% dos recursos destinados a emendas parlamentares.

Essa votação também é vista como uma vitória pelo governo, mas a discussão sobre o pacote fiscal prosseguiu na quarta-feira 18, sob a tutela de Lira, tratando de pontos sensíveis como salário mínimo, abono salarial e acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC): “Vou colocar para votar, mas não garanto a aprovação de temas polêmicos que talvez não tenham votos”, disse o presidente. Na semana passada, Lira já havia deixado clara sua tática de atrelar a aprovação do pacote fiscal à liberação das emendas bloqueadas pelo STF ao afirmar que seria difícil votar o pacote fiscal antes do recesso, devido à “insatisfação pelo não cumprimento de uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República”. A sessão de votação sobre o pacote ainda não havia sido retomada até o fechamento desta edição.

Para o deputado Tarcísio Motta, do PSOL, tanto a extrema-direita quanto o Centrão tentaram chantagear o governo: “E este tem de fazer concessões para aprovar o pacote fiscal, o que mostra sua instabilidade política”. O parlamentar da base governista relativiza a sensação de vitória: “O governo conseguiu aprovar tanto a reforma tributária quanto o pacote fiscal, mas a um custo elevado. O presidente da Câmara retomou o controle sobre parte dos recursos das emendas. Entramos com mandado de segurança no STF para tentar impedir que sua ação seja desrespeitada pela decisão aprovada na Casa Legislativa. Está errado esse sistema de emendas de comissão aprovadas sem plano de trabalho e por indicação de líderes partidários. Esse esquema pernicioso precisa ser contido e reavaliado pelo conjunto da sociedade. Não é possível que o Congresso detenha a decisão sobre recursos que deveriam ser geridos pelo Executivo”.

Braga incluiu indústrias de refino e gás no regime tributário especial da capital amazonense – Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

Outra discussão que ameaça escapar ao controle do governo em 2025 diz respeito à regulação de armamentos no País. Em votação realizada em 10 de dezembro, a Câmara aprovou um pacote de segurança pública que, entre outras temeridades, autoriza o porte de armas para pessoas investigadas e estabelece um programa de anistia para armamentos ilegais. A proposta, que tramitará no Senado após o recesso, significa um recuo na política que o governo tenta aplicar para a redução das armas em circulação e fragiliza o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003. Na verdade, o resultado poderia ser até pior: “Conseguimos retirar do texto final 25 dispositivos que, se aprovados, tornariam a posse de armas no Brasil uma regra e não uma exceção”, comemorou a ­deputada Adriana Accorsi, do PT.

Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Roberto Uchôa afirma que a aprovação do pacote da segurança pode ser atribuída “a um lobby poderoso da indústria armamentista ou a uma completa desconexão com a realidade de muitos congressistas”. Ele alerta que as armas vendidas nos últimos anos deverão circular pelos próximos 50 anos em condições de uso: “Algumas dessas armas nem sequer eram vendidas a pessoas físicas que não tivessem alguma vinculação com forças de segurança, como é o caso da pistola 9 mm, que teve mais de 600 mil vendidas em quatro anos. Ou dos rifles semiautomáticos calibre .556 e o .762, padrão da Otan (a aliança militar das potências ocidentais). Foram vendidas quase 40 mil dessas armas somente aos CACs”.

O pacote da segurança pública aprovado prevê ainda a aplicação da Regra de Isenção da Providência Antecipada ­(Ripa), nome incompreensível que, na prática, garante proteção jurídica, o chamado “excludente de ilicitude”, para agentes de segurança pública. Uma nova roupagem para a velha licença para matar: “É uma ideia muito ruim e o governo deve vetar”, diz o secretário para Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira. Outros pontos do pacote preveem a interferência no trabalho do Ministério Público, a internação compulsória de inimputáveis e a castração química de criminosos sexuais. Em todos esses pontos, não houve muito o que a base governista pudesse fazer: “Nós já tínhamos perdido a votação na Câmara e perdemos de novo no Senado. Foi uma vitória da Bancada da Bala, que conseguiu aprovar o interesse dos setores que representa. É uma coisa escandalosa”, diz o deputado Zarattini.

A bolsonarizada CCJ da Câmara aprovou um pacote que desfigura o estatuto do desarmamento

Uchôa observa que, embora a Bancada da Bala seja formada por muitos deputados oriundos das forças de segurança, o pacote aprovado “não pensa nos colegas policiais” ao permitir, por exemplo, que pessoas investigadas possam adquirir armas de fogo. “Se uma pessoa que está sendo investigada e tem autorização do Estado para adquirir armas for condenada, os policiais que forem cumprir esse mandado podem ser recebidos a tiros graças às mudanças legislativas promovidas por congressistas que dizem ter interesse na melhora da segurança pública. Isso não faz sentido, ainda mais em um país que tem mais de 30 mil homicídios por arma de fogo a cada ano, onde mais de 70% das mortes violentas ocorrem com uso de armas de fogo.” Nesse contexto, acrescenta o conselheiro do FBSP, quem se dá bem é o crime organizado: “O preço das armas no mercado legal tende a cair e isso vai se refletir também no mercado ilegal. As facções criminosas agradecem ao Congresso pela medida”.

Presidida pela empedernida deputada bolsonarista Caroline de Toni, do PL, a CCJ da Câmara também resolveu jogar algumas bombas de efeito moral em direção ao governo. Em sua última sessão de 2024, a comissão aprovou projetos que impedem trabalhadores sem-terra de acessarem os benefícios sociais do governo e restabelece o voto impresso e a contagem manual nas eleições. No último trimestre, a CCJ aprovou também um projeto que altera a Constituição para “garantir a inviolabilidade do direito à vida” e, na prática, dá base para o questionamento do direito ao aborto no País. E outro que criminaliza a posse de qualquer quantidade de drogas: “A CCJ é um bunker que reúne bolsonaristas de diversos partidos. Não se pode esperar muito da comissão, ainda mais sendo tocada da forma como é por sua presidente”, diz ­Zarattini. Garantia de trabalho para a base governista no ano que vem: “No plenário, a conversa é outra, mas certamente haverá pressão dos partidos de direita e do Centrão para aprovar essas propostas.”

A reforma mantém as vantagens da Zona Franca de Manaus. Os cálculos não estão fechados, mas o Brasil deve ficar com uma alíquota de IVA igual ou superior àquela da Hungria, atual líder do ranking – Imagem: Redes Sociais/Suframa e iStockphoto

O governo também conseguiu aprovar antes do recesso parlamentar a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, com uma margem de tolerância de 0,25 ponto porcentual do PIB para o cumprimento da meta fiscal de déficit zero proposta pelo governo, o equivalente a 30 bilhões de reais. Momentos antes da votação, o relator da LDO, senador Confúcio Moura, do MDB, acrescentou um dispositivo que protege a verba dos parlamentares: “Se houver contingenciamento de despesas por parte do Executivo, ele não atingirá as emendas. Esse é o acordo firmado com o governo”.

O encerramento dos trabalhos legislativos está marcado para a sexta-feira 20, mas o ano corre o risco de acabar sem que tenha sido votada a Lei Orçamentária Anual. Relator do projeto, o senador Ângelo Coronel, do PSD, afirma ser impossível votar a nova lei em plenário antes de uma definição sobre o pacote fiscal do governo. Diante da possibilidade de não cumprimento da agenda de votações até a data-limite, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, já admite marcar uma sessão extraordinária no sábado 21, coisa rara em Brasília. •

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Surpresa natalina’

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