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O que o resultado das eleições argentinas tem a nos dizer

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Há muitas leituras possíveis do resultado das eleições presidenciais na Argentina: o fim do ciclo kirchnerista, depois de 12 anos no poder, que significaram avanços e retrocessos em diversas áreas; a divisão do eleitorado em duas partes quase iguais no segundo turno, que refletem um país fortemente polarizado em torno da adesão ou rejeição a Cristina Kirchner; a emergência de uma nova força política de centro-direita liberal que, pela primeira vez desde 1916, elege um presidente votado legitimamente pelo povo que não pertence a nenhum dos dois partidos que dominaram a política do país vizinho no último século; a ascensão de uma nova geração de dirigentes (de um lado e do outro) que ingressaram na política a partir da atividade privada; a derrota do peronismo na estratégica província de Buenos Aires, que não elegia um governador (no caso, governadora) de outro partido desde 1983; possíveis mudanças na política econômica e no alinhamento internacional do país. Esses e outros focos de análise podem dar lugar a interessantes conclusões nos trabalhos de jornalistas, historiadores e cientistas políticos.

Contudo, eu gostaria de me referir a outra questão: o papel da luta pelos direitos humanos na etapa histórica que se abriu com o fim da ditadura argentina em 1983 e suas repercussões no presente, em contraste com a situação do Brasil.

Diferentemente do que aconteceu em nosso país, a Argentina revogou a auto-anistia dos militares e julgou os comandantes da Junta Militar e os ditadores do “Processo de Reorganização Nacional” logo depois da redemocratização, no único “Nuremberg” da região. Embora os processos contra os subalternos da Junta, que cometeram crimes atrozes (mais de 365 campos de concentração e por volta de 30 mil desaparecidos), tenham sido interrompidos ainda na década de 1980 por pressão das Forças Armadas, que tentaram derrubar o governo Alfonsín, e os chefes da quadrilha militar tenham sido indultados por Menem na década de 1990, o movimento de direitos humanos não se calou e sua mobilização (e o apoio da sociedade) permitiu, na década seguinte, a anulação das leis de impunidade e dos indultos pelo Congresso e pela Corte Suprema e, com o apoio do governo Kirchner, todos os processos foram reabertos. Mais de 500 militares foram condenados e o ex-ditador Videla voltou à cadeia e morreu numa cela comum.

Esse processo histórico é indissociável de outros avanços que se seguiram em matéria de direitos humanos. Na última década, durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, foram reformados o Código de Justiça Militar e os planos de estudo das academias das Forças Armadas, para garantir a formação democrática dos novos oficiais; foram revogadas diversas legislações contravencionais estaduais que criminalizavam distintos grupos marginalizados, como travestis e prostitutas; foram aprovadas pelo Congresso a lei do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a lei de identidade de gênero; a Corte Suprema declarou inconstitucional a criminalização do porte de (quaisquer) drogas para consumo privado e regulamentou os casos de aborto não punível, dando lugar a uma portaria do Ministério da Saúde que, embora não tenha legalizado o aborto de forma plena, ficou bem próxima disso; foi aprovada uma nova lei de migrações muito progressista, reconhecendo os direitos dos estrangeiros que moram no país, entre muitos outros avanços democráticos.

Cada uma dessas conquistas chegou depois de uma intensa mobilização social, como a que mais recentemente protagonizaram milhões de mulheres, cobrando políticas contra a violência de gênero, que o novo governo deverá cumprir. Já na década de 1990, ainda com Menem, a Argentina tinha aprovado a cota de 30% de mulheres nos órgãos legislativos, e hoje o Parlamento tem uma amplíssima bancada feminina, que foi fundamental, por exemplo, na conquista dos direitos de LGBTs. Também durante essa década, vários tratados internacionais de Direitos Humanos, entre eles a CEDAW, foram incorporados na Constituição, permitindo que o Judiciário os aplicasse em numerosos processos de cidadãos e ONGs por diferentes direitos.

Mas o que tudo isso tem a ver com as recentes eleições presidenciais?

Vejam só: enquanto o nosso Congresso não apenas resiste em aprovar qualquer legislação sobre direitos das mulheres, LGBTs e outras minorias, mas, pelo contrário, impulsiona uma agenda ultra conservadora e reacionária de perda de direitos e atraso civilizatório, na Argentina, logo após uma vitória da centro-direita no segundo turno presidencial, esses direitos não se veem ameaçados. São política de Estado.

Dos seis candidatos presidenciais que concorreram no primeiro turno, cinco eram a favor do casamento igualitário e da lei de identidade de gênero e o sexto, Rodríguez Saá, que na época da aprovação foi contra, nem mencionou o assunto na campanha — e teve 1,6% dos votos. Na eleição presidencial anterior, em 2011, os candidatos que tinham apoiado todos os direitos LGBT somaram mais de 80% dos votos. Impensável no Brasil, não é? Hoje a Argentina tem a legislação mais avançada do mundo em direitos LGBT, e é apoiada pelos principais dirigentes de quase todos os partidos, de esquerda e direita.

Embora a discussão sobre o aborto seja ainda mais difícil (tanto Macri quanto Scioli declararam ser “pessoalmente” contra, mas deixaram em aberto a discussão que poderá acontecer ou não no Parlamento), existe na Câmara dos Deputados argentina um projeto de legalização (similar ao que eu apresentei no Brasil) assinado por mais de 50 deputados (quase 1/4 do total da Casa) de todos os partidos, inclusive os partidos de Macri e Scioli.

E eu disse antes que nada disso pode ser dissociado do julgamento dos crimes da ditadura e da valorização dos direitos humanos que esse processo provocou. Pois bem, um dia após a eleição de Macri, o conservador jornal La Nación publicou um insólito editorial exigindo que o novo presidente detenha os processos contra os militares. Macri respondeu no mesmo dia: “Os processos vão continuar”, mas a história não ficou por aí: reunidos em uma massiva assembleia, os jornalistas do La Nación repudiaram o editorial do jornal e aprovaram uma declaração unânime que saiu publicada no dia seguinte. Vocês imaginam isso nos nossos jornais?

Em tempos de redução da maioridade penal, estatuto da família, proibição da pílula do dia seguinte, cura gay e orgulho hétero, nosso Congresso poderia aprender algumas lições dos nossos vizinhos, que nem terceiro turno terão, porque o candidato derrotado parabenizou o vencedor e reconheceu a derrota. Esperemos que, diferentemente do que aconteceu aqui, o novo presidente cumpra suas promessas e também não tenha ajustes contra os mais pobres e os trabalhadores.

Essa é uma das lições que, do outro lado, Macri pode aprender dos erros da nossa Presidenta.

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