Política
Somos ou não a Casa do Povo?
O Congresso precisa voltar sua agenda para o interesse nacional


Fui presidente do Congresso Nacional por quatro vezes e em períodos sensíveis. Em todas as crises, mais ou menos graves, sempre coloquei o interesse público acima de tudo e priorizei a afirmação do Legislativo, sem nos divorciarmos da Constituição. Ultrapassamos muitas crises, políticas e institucionais, pelo diálogo, premissa inafastável das democracias. Tenho uma vivência como deputado e senador por Alagoas. Já vi e ouvi coisas impensáveis. Mas nunca presenciei uma tentativa interna de impedir o livre funcionamento do Poder usando métodos de chantagem e coerção, travando as pautas da sociedade em troca de regalias indefensáveis.
Nas democracias representativas, o parlamentar tem a delegação para expressar o desejo da sociedade. Estamos testemunhando, lamentavelmente, um desprezo com quem nos delegou os mandatos, notadamente em reiteradas iniciativas a partir de alguns deputados, que optaram por um divórcio litigioso do interesse nacional. Há uma estridente desconexão da pauta de interesse do Brasil real para favorecer interesses de indivíduos, minorias e apetites inconfessáveis. As agendas que interessam ao País vinham sendo rebaixadas, mergulhadas em um limbo do esquecimento inaceitável.
A Constituição tem suas próprias vacinas para punir eventuais excessos de quem recebeu a delegação popular para um mandato legislativo. As impropriedades não podem ser normalizadas ou vistas como manifestações legítimas. Há muito de ilegítimo nesses movimentos recentes. O abuso das prerrogativas parlamentares é incompatível com o decoro parlamentar. Assim como aprovamos uma lei para punir abuso de outras autoridades, devemos observar o exemplo em nossa casa: não legislar em causa própria, não criar modelos ilegais de semideuses, punir transgressores e não desprezar a sociedade.
Temos o urgente debate sobre isenção do Imposto de Renda para quem ganha 5 mil reais, que priorizei na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado para vigorar já em 2026. A proposta foi aprovada em apenas uma semana e por unanimidade. O projeto original ficou congelado na Câmara dos Deputados por sete longos meses e só andou a partir da decisão dos senadores. O conteúdo beneficia 90% da sociedade e representa um décimo quarto salário no bolso do trabalhador. Subordinar uma proposta desta magnitude a conchavos e sinecuras é um tapa na cara da sociedade. A cúpula da Câmara dos Deputados preferiu pautar a “PEC da Blindagem” e sinalizou vincular, novamente, a isenção do IR a uma anistia/dosimetria, flagrantemente inconstitucional.
A “PEC da Blindagem” seria a impunidade ilimitada. Ela implodiria o conceito sagrado de igualdade e criaria uma casta de intocáveis, uma estratificação feudalista anacrônica. Um vale-crime que funcionaria como um habeas corpus eterno. Entre 1988 e 2001, quando vigorou a licença prévia, foi concedida apenas uma autorização entre 253 pedidos. E o caso envolvia um traficante que se homiziava no mandato. Se ela prosperasse, o Parlamento seria o valhacouto de narcotraficantes, contrabandistas, terroristas, chefes do crime organizado, de líderes de facções e outros delinquentes. Grupos com algum poder financeiro comprariam mandatos populares para se esquivar da Justiça.
A face mais sombria dessa PEC contribuiria para erodir perigosamente a democracia e promover um desequilíbrio entre os poderes. Alguns parlamentares, sob a égide dessa blindagem espúria, ficariam mais desinibidos para perseguir, por exemplo, ministros do STF, hoje um dos fortes alicerces da democracia brasileira. O Senado Federal, por unanimidade, recusou-se a chocar este novo ovo da serpente. Fiz um pronunciamento da tribuna condenando a PEC e onde, entre outros argumentos, lembrei que a captura do Judiciário alemão foi determinante para o nazismo prosperar e pisotear a humanidade. Foi fundamental o papel do MDB no Senado, cuja bancada foi a primeira a fechar questão contra a Emenda Constitucional.
O Brasil quer anistia de impostos para quem ganha até 5 mil reais
Causa um estranhamento incômodo observar que essa anomalia, de 2021, brotasse agora em meio ao aprofundamento das investigações sobre impropriedades no orçamento secreto e ações policiais desbaratando grandes conglomerados financeiros em santuários agora profanados por atividades ilegais. Enterrada a “PEC do PCC”, como em uma convulsão autoritária sem fim, segmentos minoritários voltaram a sussurrar com a tese ilegal da anistia. Não há perdão judicial, anistia congressual ou indulto presidencial para crimes contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito.
O mandamento constitucional é solar. A jurisprudência já foi firmada pelo STF, em maio de 2023, que derrubou o indulto presidencial conferido a um deputado, depois de condenado por atentar contra a democracia. O próprio regimento do Senado confere ao presidente da Casa o poder de arquivar propostas inconstitucionais no artigo 48, inciso 11. A mesma inconstitucionalidade inviabiliza a nova flor malcheirosa do autoritarismo. Os anistiados de ontem são os golpistas de hoje. Abrandar, reduzir ou contemporizar com golpistas é pré-datar um novo golpe, anarquizar o nosso Código Penal e comprometer a efetividade das decisões judiciais. A blindagem protegeria os crimes futuros e a anistia, os crimes consumados. É a mesma impunidade.
Vamos passar o pano para os extremistas que depredaram os Três Poderes? Vamos perdoar terroristas que iriam explodir o aeroporto de Brasília e matar inocentes? Vamos esquecer o sniper que tinha o ministro Alexandre de Moraes na mira? Perdoar quem, armada, perseguiu adversários pelas ruas? Libertar quem trocou tiros e jogou granadas na polícia? Amenizar para os conspiradores do Punhal Verde e Amarelo? Esquecer o sequestro de aparelhos de Estado e a Abin paralela para perseguir adversários? Aliviar àqueles que, com dinheiro público, forjaram relatórios fajutos sobre as urnas? Esquecer os que imaginavam até campos de concentração? Vamos cometer essa insanidade e cancelar o Poder Judiciário e suas decisões? Com o meu voto e o meu silêncio, jamais. A discussão é sobre crimes graves e criminosos extremistas. Esta pauta não pertence mais à política, mas à polícia.
Em todos os casos (blindagem, anistia e dosimetria), desejo antecipar, de maneira enfática, que casuísmos ilegais não vão prosperar com a minha aquiescência. O Congresso precisa voltar sua agenda para o interesse nacional, e não o de grupos. O Brasil quer anistia de impostos para quem ganha até 5 mil reais, dosimetria tributária para quem recebe entre 5 mil e 7,35 mil reais. O resto é anomalia. Quanto mais estáveis as regras democráticas, mais seguros estaremos. •
*Senador pelo MDB–AL.
Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Somos ou não a Casa do Povo?’
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