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Sinal de alerta

O branqueamento de corais avança com celeridade no Nordeste brasileiro, advertem pesquisadores

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Contraste. Acima, um coral saudável. Abaixo, um adoecido. Ambas as imagens foram captadas em Abrolhos, na Bahia – Imagem: Roberto Costa Pinto e PELD Abrolhos/CNPq
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A passagem do verão para o outono, registrada no Brasil na quarta-feira 20, dá início a um período de grandes impactos na vida marinha, em especial nos recifes de corais. Devido ao aquecimento das águas dos oceanos provocado pelas mudanças climáticas e à superluminosidade solar, a espécie passa por um nível de estresse agudo, levando ao que os cientistas chamam de branqueamento de corais. Esse fenômeno acontece porque os animais cnidários vivem em associação com microalgas, as zooxantelas, que realizam a fotossíntese e fornecem nutrientes essenciais para o metabolismo da espécie. Quando há excesso de luz e de calor, as zooxantelas passam a produzir compostos reativos de oxigênio, que causam estresse oxidativo e, ao atingir limiares extremos, levam ao branqueamento dos corais, podendo até chegar à morte do organismo, como aconteceu entre 2019 e 2020, quando foi registrada uma mortandade em massa no litoral nordestino.

“As zooxantelas têm pigmentos. A maior parte da cor do coral que a gente vê é dada por essas microalgas. Quando ocorre o estresse oxidativo por conta do excesso de luz e de calor, os corais tentam livrar-se desses organismos que estão fazendo muita fotossíntese e produzindo compostos reativos de oxigênio”, explica o biólogo Ronaldo Francini Filho, professor do Centro de Biologia Marinha da USP, acrescentando que, sem o pigmento das zooxantelas, os corais ficam transparentes e o que se vê são esqueletos carbonáticos brancos. “O coral fica desprovido de microalgas, tentando evitar o estresse oxidativo, mas ao mesmo tempo começa a sofrer com a falta de nutrientes que são produzidos pelas zooxantelas, o que pode ter efeitos subletais, como crescer menos e reproduzir-se mal, ou até morrer.”

O fenômeno está associado ao aquecimento dos oceanos

O branqueamento de corais não é algo novo nem é um fenômeno exclusivo do Brasil. Acontece em nível global. No Caribe, na região da Flórida e na Austrália, por exemplo, os danos são incalculáveis e vêm piorando a cada temporada de altas temperaturas. Nessas localidades, devido à transparência das águas, a mortalidade da espécie acontece em grande escala, como foi registrado no verão passado do Hemisfério Norte. Por aqui, a situação também é complicada, mas o Brasil possui muitos rios, que tornam as águas do mar mais turvas, minimizando um pouco o efeito. O fenômeno é sazonal, todo verão os corais perdem um pouco de suas microalgas, e muitas vezes é possível a regeneração. Mas, com o aumento incontrolável da temperatura global, a sazonalidade está cada vez menos espaçada. O aquecimento dos oceanos tornou-se constante, não dá tempo de os corais se recuperarem.

Segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, se o aumento da temperatura alcançar 1,5 grau Celsius até o fim do século, como previa inicialmente o acordo de Paris, é possível uma perda de 70% a 90% dos corais no mundo todo. Se chegar a 2 graus Celsius, como já se cogita, a estimativa é de uma mortalidade de 99%. “Isso representa a maior extinção em massa de espécies do nosso tempo e tem um efeito em cascata, porque 25% da vida marinha está vinculada em algum momento do seu desenvolvimento aos recifes de corais. Estão ali se alimentando, reproduzindo… No Brasil, 60% da população vive nas zonas costeiras. O impacto é gigantesco. Se os corais morrerem ou começarem a perder tamanho, isso pode levar à diminuição da linha de costa”, destaca o biólogo marinho Vinícius Nora, gerente de clima e oceanos da ONG Instituto Arayara. Ele acrescenta que o grande vilão da mortandade da vida marinha é o aquecimento global, “empurrado pelos combustíveis fósseis”.

Efeito cascata. O fenômeno, já observado em Maragogi, pode levar ao declínio dos pescados na região – Imagem: iStockphoto e Pedro Pereira/Projeto Conservação Recifal

Segundo dados atualizados, o aumento da temperatura já está na casa de 1,2 grau Celsius, o que tem levado ao aquecimento dos oceanos acima do normal. E se essa temperatura ficar acumulada ao longo de algumas semanas, os corais começam a branquear. Muitos chegam a sofrer o estresse e conseguem sobreviver, mas precisam de um tempo para se restaurar. “Se vem uma onda de calor, depois outra e mais outra, mesmo que a última não seja tão intensa, haverá um grande impacto. Essas ondas tinham oito, seis, quatro anos de espaçamento. Agora, surgem quase todo ano. Assim como acontece com a Amazônia, a gente se aproxima cada vez mais desse lugar de não retorno”, destaca Nora.

Desde o ano passado, sob o efeito do El Niño, a onda de calor está mais intensa e se prolongou por mais tempo. E o período mais crítico para a saúde dos corais é exatamente na estação do outono, quando o calor acumulado na água chega ao máximo. A região de Abrolhos, por exemplo, já está sob alerta 1, dado conferido pela Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos EUA (NOAA, na sigla em inglês), que faz um monitoramento global da temperatura do mar. “É como se a parte mais quente do ano começasse agora, uma espécie de prolongamento do verão. O calor acumulado na água é máximo nesse momento, dando início a episódios de branqueamento. Nossa equipe que está em campo já observa isso. Muitas colônias tendem a ficar doentes, começam a desenvolver necroses, perder tecido e, quando essa situação se prolonga, o coral perde a capacidade nutricional e morre”, ressalta o pesquisador Rodrigo Moura, professor da UFRJ e coordenador do Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração em Abrolhos, financiado pelo CNPq.

O fenômeno começou a ser notado na década de 1990, mas os episódios de 2016 e 2019-2020 são apontados como os mais devastadores. Algumas regiões, como Abrolhos, Porto de Galinhas e Fernando de Noronha, chegaram a perder 90% do coral-fogo, uma espécie comum na região e que é visto com frequência na parte mais rasa, a sofrer maior incidência do sol. Também nesse período, Maragogi, em Alagoas, perdeu 18% da cobertura total de corais, evento que coincidiu com um derramamento de óleo em larga escala no litoral nordestino. “Temos muitas evidências de que os recifes estão sofrendo um declínio catastrófico. Não há uma estratégia de mitigação que se possa aplicar, não há fórmula mágica. Se não reduzirmos as emissões, a temperatura vai continuar aumentando, com graves conse­quências para todas as espécies”, diz Moura.

Se o aquecimento global ultrapassar 2 graus Celsius, como já se cogita, 99% dos corais serão dizimados

Em Fernando de Noronha, além dos impactos sobre os corais, as altas temperaturas interferem no desenvolvimento das tartarugas marinhas. Segundo Ricardo Araújo, coordenador da pesquisa Monitoramento e Manejo do ICMBio do arquipélago, as mudanças climáticas fazem com que nasçam mais tartarugas fêmeas do que machos. “Também há maior propensão ao aparecimento de determinados tipos de algas em detrimento de outros.”

No arquipélago de Noronha, o ICMBio deu início a uma campanha de monitoramento com a participação da população local e dos turistas. Trata-se do Projeto Ciência Cidadã, em que mergulhadores são estimulados a fazer registros fotográficos do fundo do mar e, caso se deparem com corais embranquecidos, a enviar uma mensagem de alerta para o ­e-mail pesquisa.noronha@icmbio.gov.br. Araújo explica que esses seres vivos exercem papel semelhante ao de uma floresta. “Os corais são a base de outras estruturas. Se você pegar um banco de coral, vai ver peixes, esponjas, algas, várias espécies vivendo em simbiose, um ajudando o outro, um se alimentando do outro. A morte de um coral causa um dano colossal à biodiversidade.”

No litoral que liga Pernambuco a Alagoas, a ONG Projeto Conservação Recifal conta com uma equipe em campo para monitorar o avanço do branqueamentos dos corais. A entidade também lançou uma campanha para identificar o fenômeno com o engajamento da população, o projeto Monitoramento Participativo, e pede a quem encontrar corais embranquecidos para fazer o registro fotográfico e enviar para o WhatsApp

(81) 99500-9241. Segundo Pedro ­Pereira, diretor da ONG, a temperatura da água nos 120 quilômetros da Área de Preservação Ambiental entre Pernambuco e ­Alagoas chegou a 33 graus em meados de março.

“A gente está no meio do processo. A água vai esquentar ainda mais. As previsões apontam para a maior mortalidade de corais já vista no Nordeste”, ressalta Pereira. “Provavelmente, daqui a quatro semanas, entre meados ou fim de abril, a situação vai ficar mais delicada. Quanto mais longo for esse processo de estresse, maior será a extensão do branqueamento e menor será a chance de o coral se recuperar.”

Fonte: Com base em dados do IPCC – Arte: Regina Assis

A pesquisadora Beatrice Padovani, professora do Departamento de Oceanografia da UFPE e coordenadora do Sítio Ecológico de Longa Duração de Tamandaré, explica que o branqueamento dos corais também é potencializado por problemas locais, como poluição, pesca ilegal e turismo predatório. “Quando o coral sofre o estresse da temperatura, a capacidade de recuperação é proporcional à saúde do ambiente. Se estiver contaminado com esgoto, fungos, poluentes químicos ou mesmo agrícolas, a regeneração é prejudicada.”

Um grupo de pesquisadores, muitos deles brasileiros, desenvolve um projeto que produz uma espécie de probiótico para minimizar os efeitos do fenômeno. “O que a gente faz é estimular a reprodução de microrganismos já existentes no coral, mas que têm capacidade antioxidante, para protegê-lo dos impactos das mudanças climáticas”, explica Gustavo ­Duarte, do AquaRio Corais, ressaltando que a pesquisa foi desenvolvida no Brasil entre 2015 e 2023 e, agora, o grupo está atuando no Mar Vermelho, em convênio com uma universidade da Arábia Saudita.

O Ministério do Meio Ambiente diz acompanhar o fenômeno, mas alega não existir um método capaz de detê-lo. Ana Paula Prates, diretora de Oceano e Gestão Costeira na Secretaria de Mudança do Clima, vinculada à pasta, diz que está sendo construída uma estratégia nacional de conservação dos corais. “O Brasil pretende incluir na nova versão do Plano do Clima, a ser apresentada na COP-30, a problemática dos oceanos e costeiras marinhas.” •

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sinal de alerta’

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