Política
Sem patrão?
Presos em um limbo jurídico, entregadores de aplicativos fazem nova paralisação para reivindicar direitos básicos


O “breque nacional” dos entregadores de aplicativos, realizado nos dias 31 de março e 1º de abril, é apenas o reflexo de um grave problema social e trabalhista que o Brasil vem negligenciando há tempos. Segundo o IBGE, havia 2,1 milhões de trabalhadores plataformizados no País em 2023, dos quais 1,5 milhão atuavam na área de serviços (transporte, entregas, reparos) e outros 628 mil em aplicativos de comércio, como marketplaces. A maioria tem de 25 a 39 anos, possui ensino médio completo ou superior incompleto e enfrenta longas jornadas de trabalho – 46 horas semanais, contra a média de 39,5 horas dos demais trabalhadores brasileiros.
A precarização é evidente, revela outro estudo divulgado pelo Ipea em maio do ano passado. Quase 30% desses trabalhadores cumpre jornadas entre 49 e 60 horas semanais e menos de 25% deles contribui para a Previdência Social. Essa realidade vem provocando uma enxurrada de ações acumuladas em diversas instâncias da Justiça Trabalhista, muitas delas paralisadas porque aguardam o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, de um recurso apresentado pela Uber, que questiona uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho reconhecendo vínculo empregatício entre a empresa e um motorista. A decisão terá repercussão geral e deve, portanto, servir de bússola para todas as demais instâncias do Judiciário brasileiro.
“Existe um pressuposto enganoso de que esses trabalhadores são autônomos, livres, que trabalham quando querem. Não é bem assim. São pessoas que vivem efetivamente desse trabalho. Não é um passatempo, é uma profissão. Há um vínculo jurídico duradouro que configura a existência de uma exploração do trabalho de forma organizada, contínua, típico de uma relação de emprego e que, portanto, incidem todos os direitos trabalhistas. O não reconhecimento disso é uma ilegalidade”, pontua Jorge Luiz Souto Maior, desembargador aposentado e professor da Faculdade de Direito da USP. “Se eles fossem simplesmente trabalhadores esporádicos, que fazem um bico, jamais teriam a capacidade de mobilização e de se organizarem coletivamente para lutar por melhores condições de trabalho”, completa.
O STF tarda a decidir se há ou não uma relação de emprego entre os trabalhadores e as plataformas
A paralisação dos entregadores de aplicativos aconteceu nas principais capitais do País, com impacto no serviço de delivery, principalmente no setor de alimentos. O principal alvo foi a empresa iFood, hegemônica no setor por concentrar mais de 80% dos pedidos. A categoria reivindica uma taxa mínima de 10 reais por corrida (atualmente é de 6,5 reais), aumento no valor do quilômetro adicional rodado de 1,5 real para 2,5 reais, limitação de 3 quilômetros para entregas feitas por bicicletas e garantia de pagamento integral das corridas, mesmo em entregas agrupadas na mesma rota.
“Muitas vezes os aplicativos pegam várias entregas para fazer em uma rota só, cobram esse valor integral do cliente, mas pagam para a gente de forma unitária”, explica Edgar Gringo, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativo, a Anea. “Enquanto as empresas ganham milhões, os entregadores não estão conseguindo fazer a manutenção da sua moto, não conseguem se alimentar direito, trabalham às vezes mais que 12 horas por dia, sem um tempo de descanso. O valor que ele ganha não dá para fazer uma pausa, pelo contrário, ele começa a correr para fazer cada vez mais entregas. Claro que isso gera acidentes. Está aumentando muito o número de óbitos de motoqueiros. A pressão que esses aplicativos fazem, estipulando tempo para a gente fazer entrega para não ser bloqueado, isso faz com que o trabalhador comece a correr cada vez mais, aumentando os riscos de acidentes”, destaca Gringo, lembrando que só no ano passado em São Paulo foram 485 mortes.
Para Gilberto Almeida, presidente do Sindicato dos Motoboys, Motoentregadores, Mototaxistas e Ciclistas da cidade de São Paulo, o ideal seria a assinatura de um acordo coletivo que reconhecesse os direitos trabalhistas da categoria. “Como as empresas fogem desse debate e o STF ainda não julgou o caso, então queremos que as plataformas ofereçam o básico do básico para esses trabalhadores, que é um reajuste mínimo nas taxas, para a gente ter a dignidade de conseguir manter um ganho razoavelmente perto do que um trabalhador CLT, dentro de uma jornada justa. A gente nem está entrando ainda no mérito do vínculo trabalhista, nossa pauta é enxuta, para que possa ser atendida de imediato, como se fosse um oxigênio para esses trabalhadores respirarem”, desabafa Almeida.
Imbróglio. A Rappi pode ser obrigada a contratar os entregadores como celetistas. O TST aguarda o Supremo decidir um recurso apresentado pela Uber – Imagem: iStockphoto
A demora do Supremo para analisar o recurso relacionado aos motoristas de aplicativo tem impacto sobre outras categorias profissionais. Em 2023, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região condenou a Rappi a contratar todos os entregadores inscritos em seu aplicativo como trabalhadores celetistas. Recentemente, um recurso da empresa contra essa decisão chegou ao TST, a última instância da Justiça do Trabalho, mas os ministros da Corte suspenderam a análise do caso até o STF julgar se, nessas plataformas, deve haver ou não reconhecimento de vínculo empregatício.
Depois de protestos em vários pontos da Grande São Paulo, os entregadores de aplicativos se dirigiram para a sede do iFood, onde realizaram mais um ato. “Fomos recebidos por João Sabino, diretor de políticas públicas, e Johnny, responsável pelo impacto social, mas, infelizmente, não apresentaram nenhuma contraproposta. Eles já estavam com nossa pauta há mais de um mês, mas não demonstraram interesse em dialogar. Falaram que iam conversar com a diretoria para avaliar qual a possibilidade de atender nossa demanda”, explica Junior Freitas, do comando de greve e do movimento Entregadores Antifascistas.
Antes de seguirem para a sede do iFood, os manifestantes realizaram um protesto em frente às lojas da McDonald’s e Burger King em Barueri, apontadas como os dois maiores tomadores de serviço do iFood. “Eles têm corresponsabilidade com esses trabalhadores”, dispara Almeida, acusando o iFood de se esconder por trás de uma definição equivocada de ser uma plataforma digital, quando, na verdade, não passa de uma empresa de transporte, que terceiriza mão de obra numa relação de trabalho precarizada.
Em nota, o iFood alega que analisa a viabilidade de um reajuste para 2025 e alega que nos últimos três anos os rendimentos dos entregadores aumentaram significativamente. “O ganho bruto por hora trabalhada é quatro vezes maior do que o ganho do salário mínimo-hora nacional”, diz o texto. A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que tem entre seus associados empresas como iFood, Uber, 99, Zé Delivery e Amazon, também se posicionou por meio de nota. A entidade cita uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), segundo a qual a renda média de um entregador teria crescido 5% acima da inflação entre 2023 e 2024, chegando a 31,33 reais por hora trabalhada: “As empresas associadas da Amobitec apoiam a regulação do trabalho intermediado por plataformas digitais, visando a garantia de proteção social dos trabalhadores e segurança jurídica das atividades”.
Souto Maior rebate o argumento de uma suposta autonomia dos trabalhadores: “Não é passatempo, é uma profissão”
Sobre a guerra judicial em torno do vínculo trabalhista desses empregados, a Amobitec entende que “as pessoas que se cadastram nos aplicativos são trabalhadores independentes que utilizam as plataformas para gerar ganhos financeiros com autonomia e flexibilidade. Escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens/entregas e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens/entregas, não existe superior hierárquico nem encarregado de supervisão do serviço, não há obrigação de exclusividade, não existe controle ou determinação de cumprimento de jornada mínima”.
A tese é contestada por especialistas. “A partir do momento que esses empregados dependem do trabalho das plataformas digitais para sobreviver, que se conectam nos aplicativos e passam a ter que atuar de acordo com as regras das empresas, já existe o vínculo. A CLT diz que a relação de emprego é caracterizada pela onerosidade, a não-eventualidade e a subordinação. Se a gente identifica esses elementos, há um vínculo”, explica Renan Kalil, procurador do Ministério Público do Trabalho de São Paulo e professor de Direito no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Segundo Kalil, o MPT chegou a ajuizar mais de dez ações civis públicas em face de diferentes empresas em relação ao tema, com resultados diversos. Em alguns casos, a Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo. Em outros, não. Nenhum processo transitou em julgado, com decisão definitiva.
“Precisamos da atuação da Justiça do Trabalho para assegurar uma proteção mínima para esses trabalhadores, incluindo reajustes anuais, jornada de trabalho adequada e o controle dessa grande epidemia de acidentes que se tem”, dispara Almeida. Após a paralisação dos entregadores de aplicativos, o SindimotoSP encaminhou ofícios ao MPT, ao TRT de São Paulo e ao TST solicitando uma mediação para negociar com as plataformas digitais.
“As instituições têm falhado muito, fazem vistas grossas a uma realidade explícita, uma ilegalidade nítida, do não reconhecimento da relação de emprego dessas pessoas. Essas instituições têm uma dívida muito grande com esses trabalhadores”, comenta Souto Maior. “Não tenho muita esperança em relação ao STF, que tem demonstrado, em várias decisões, falta de apreço aos direitos trabalhistas. Os ministros estão muito mais numa lógica de atender os interesses do poder econômico do que aplicar a Constituição e de modo a fazer valer os direitos dos trabalhadores. O Supremo se coloca para a sociedade como um arauto e defensor da democracia e, ao mesmo tempo, exclui milhões de trabalhadores da cidadania, negando direitos fundamentais, garantidos pela Constituição.” •
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem patrão?’
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