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Sem amparo

A despeito das promessas, somente a Paraíba está pagando auxílio financeiro aos órfãos da Covid-19

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Tragédia. Cerca de 130 mil crianças e adolescentes perderam os pais para o coronavírus no Brasil, estima pesquisa - Imagem: Sílvio Avila/AFP
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A enfermeira obstetra Mayra Pires Lima levava uma vida tranquila com o filho de 12 anos, quando a pandemia da Covid-19 se intensificou e gerou um caos sanitário em Manaus. Em meio à crise de desabastecimento de oxigênio nos hospitais da capital amazonense, a profissional perdeu a irmã, Mariza Pires Lima, de 36 anos, que deixou quatro filhos: uma adolescente de 15, uma criança de 9 e dois gêmeos recém-nascidos. Ao assumir a responsabilidade legal dos sobrinhos, Mayra de repente se viu mãe de mais quatro crianças, e teve sua vida transformada para sempre.

O depoimento da enfermeira foi um dos momentos mais comoventes da CPI da Covid, realizada em 2021. À época, ela denunciou o descaso com os órfãos da pandemia e questionou a ausência de políticas públicas de assistência para essas famílias. Mais de um ano se passou e o Projeto de Lei que tramita no Senado para garantir um auxílio financeiro às crianças e adolescentes que perderam a mãe, o pai ou o responsável legal ainda não saiu do papel. Ou seja, os órfãos da Covid continuam desamparados.

“Já dei mais de dez entrevistas e não tive resultado algum. Mas vamos continuar tentando, né?”, afirmou Mayra à reportagem de CartaCapital, instantes antes de acrescentar: “Vai ser difícil conversar com mais tempo, porque tenho duas bebês de 7 meses, só poderei atender depois de fazer as gêmeas dormirem”. De fato, a vida da enfermeira virou de cabeça para baixo. Além dos quatro sobrinhos e do filho mais velho, recentemente ela também deu à luz gêmeas. Com sete crianças para cuidar, precisou transformar toda a sua rotina para dar conta da nova demanda.

A família cresceu, mas o salário não aumentou, obrigando Mayra a se mudar da capital para outro município da Região Metropolitana de Manaus, com o objetivo de baratear o custo de vida. Para ter tempo com as crianças, precisou abrir mão de projetos pessoais e abandonar trabalhos extras que ajudavam a complementar a renda. Hoje, ela se mantém com o salário de enfermeira e com doações de amigos, familiares e fiéis da igreja que frequenta. Do Poder Público está farta de receber apenas promessas.

A história de Mayra tornou-se um caso emblemático sobre a orfandade da Covid. Como ela, dezenas de milhares de famílias enfrentam, além do luto, a dificuldade­ de assumir a responsabilidade legal de crianças e adolescentes que perderam os pais, sem qualquer amparo do Estado para esse acolhimento. Não há um número exato de quantos são os órfãos da Covid. Um estudo publicado na revista científica Lancet estima que são mais de 130 mil no Brasil. Segundo Márcio Thadeu, promotor de Justiça da Infância de São ­Luís, no Maranhão, esse é um dos maiores empecilhos para não se avançar com políticas públicas de apoio a essas famílias. E atribui o apagão estatístico ao descaso do governo de Jair Bolsonaro.

Na maioria dos estados há projetos com essa finalidade, mas as famílias estão cansadas de esperar

O Maranhão foi o primeiro estado a começar a tratar a questão como responsabilidade do Poder Público. O projeto de auxílio para as crianças e adolescentes que ficaram órfãos está em andamento desde 2021. Mas, apesar de ter sido regulamentado, ele ainda não foi colocado em prática. O trabalho desenvolvido para coletar dados e elaborar o programa serviu de exemplo para outros estados da região e para o próprio Consórcio Nordeste, que criou um programa de acolhimento. O projeto prevê o repasse de 500 ­reais para cada órfão da pandemia, mas somente a Paraíba iniciou os pagamentos, para 53 famílias cadastradas.

De acordo com a coordenadora do programa Paraíba Que Acolhe, a assistente social Jéssica Juliana, estima-se que o estado tenha mais de 700 órfãos da Covid e a meta para o próximo período é fazer uma busca ativa em todos os municípios, a fim de encontrar, cadastrar e passar a atender essas famílias. O auxílio de 500 reais deve ser pago até o beneficiário completar 18 anos, ou 24, se ele ingressar na faculdade. Além da pensão, as famílias recebem acompanhamento psicológico para lidar com o luto. “Entendemos a gravidade do problema e decidimos agir rápido, porque essas famílias, na maioria das vezes comandadas por mulheres, passaram para uma situação de extrema vulnerabilidade social”, conta a gestora.

A iniciativa prevê o cadastramento de órfãos da Covid até abril de 2023, mas, com o recente agravamento da pandemia no Brasil, a secretaria avalia a possibilidade de ampliar esse prazo. “Enviamos a proposta ao secretário para estender o cadastramento até quando a OMS decretar o fim da pandemia. Sabemos que é uma proposta ousada, mas entendemos que essa é uma forma de garantir o auxílio a todas as famílias que possam vir a precisar. A medida está sendo avaliada e tem boa chance de ser aprovada.”

A maioria dos estados tem ao menos um projeto de lei para prestar assistência aos órfãos da Covid em tramitação na Assembleia Legislativa, mas a morosidade para aprová-los e regulamentá-los é a praxe, denuncia Renato Simões, coordenador da Associação Vida e Justiça, que acolhe famílias com vítimas da Covid. “Várias propostas foram elaboradas a partir da CPI, mas até agora nada foi colocado em prática, à exceção da Paraíba.”

A Associação Vida e Justiça também propôs a criação de um Dia Nacional em Memória das Vítimas da Covid, a ser celebrado em 12 de março. O Senado aprovou a iniciativa, mas a Câmara tarda a analisar a proposta. “Estamos procurando a equipe de transição para pedir empenho da nova gestão nessas pautas”, diz Simões. A entidade participou de duas reuniões com o time de Lula, uma no grupo de trabalho da Saúde, outra no comitê de Direitos Humanos. “Queremos que o governo federal se comprometa não apenas com o auxílio financeiro, mas também com a preservação da memória, verdade e justiça para as vítimas da Covid.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem amparo “

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