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Segredos do Velho Chico

Pesquisadores identificam molusco de 140 milhões de anos em fósseis do Rio São Francisco

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Descoberta. O material foi coletado na Bacia Jatobá, no município de Floresta, em Pernambuco, onde passa um braço da transposição – Imagem: Bruno Horn, Débora Morais e Rafael Costa e Silva
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O Brasil pode ter sido o primeiro lugar do mundo onde ocorreu a evolução de uma espécie de bivalve marinho (molusco), que teria migrado para água doce no período geológico Cretáceo, em decorrência da separação dos continentes africano e sul-americano. É o que aponta um estudo desenvolvido pela Universidade ­Estadual Paulista. A partir de material coletado pelo paleontólogo Rafael Costa da Silva e pelos geólogos Bruno Horn e Débora de Moraes, do Serviço Geológico do Brasil, durante as obras da transposição do Rio São Francisco, os pesquisadores da Unesp – Débora E. Baumann, Renato Ghilardi e Luiz Ricardo Simone – conseguiram identificar dois novos gêneros de fósseis, datados de cerca de 140 milhões de anos, os registros mais antigos da família ­Iridinidae e os primeiros encontrados na América do Sul. Em um artigo publicado no periódico científico Journal of South American Earth Sciences, os especialistas trazem dados inéditos e surpreendentes sobre a evolução dessa espécie.

A descoberta dos fósseis no Brasil sugere que o grupo estava presente no supercontinente de Gondwana, antes do desmembramento ocorrido no período Jurássico, e permaneceu no lado americano após a divisão. O material foi coletado na Bacia Jatobá, no município de Floresta, em Pernambuco, onde passava um braço da transposição do São Francisco. Trata-se do achado mais antigo da família desses moluscos, superando os registros do continente africano.

Inicialmente, o material foi identificado como um bivalve da família Iridinidae, exclusivamente de água doce, mas há fortes indícios de que pode ser associado à família Trigoniidaes, majoritariamente marinho, que teria migrado para o rio. A principal hipótese do estudo, ainda em curso, é de que a fragmentação do supercontinente Gondwana, causada pela movimentação de placas tectônicas, levou muitos animais que tinham o mar como hábitat natural para os rios, promovendo importantes evoluções biológicas, muitas delas ainda desconhecidas pelos cientistas.

“A separação dos continentes não é uma coisa simplória, é algo bem complexo, e os animais respondem a esse processo. Nesse período, ocorreram várias modificações do grupo Bivalvia. É muito provável que alguns saíram da água marinha e foram para a água doce. A pesquisa procura mostrar o ponto de origem desses animais. Esse é o grande diferencial do trabalho da Débora (E. Baumann)”, salienta Ghilardi, que é orientador da pesquisadora no doutorado. “Até então, ninguém tinha visto isso ou achava que tal evolução havia ocorrido na África. Mas é muito provável que essa dispersão tenha acontecido mesmo no Brasil”, completa.

Para Luiz Simone, que também orienta a pesquisa e é vinculado ao Museu de Zoologia da USP, esse trabalho vai ajudar a reescrever a história evolutiva dos bivalves. “Achava-se que o Iridinidae estava praticamente extinto no Brasil, que existia apenas no continente africano, e a gente sabe que a única espécie viva precursora dessas espécies de água doce são os Trigonídeos. Ele era marinho, mas foi a vertente que entrou na água doce e deu origem a todos esses bivalves de água doce”, diz. “Estou desconfiando que esse é o primeiro Trigonídeo do nosso continente. Os fósseis estudados podem ser uma ligação entre os Trigonídeos e as demais famílias de água doce. Isso é fascinante, estou bastante empolgado com a pesquisa.”

São os exemplares mais antigos da família Iridinidae e os primeiros encontrados na América do Sul

“A descoberta desses fósseis na Bacia Jatobá é um forte indício de que eles surgiram no Brasil, não na África”, salienta Baumann, que estudou esse tema na iniciação científica na graduação, ampliou a pesquisa no mestrado e agora desenvolve essa tese no doutorado em Biociências pela Unesp.

Ghilardi lembra a importância dessa pesquisa para os estudos científicos sobre a evolução histórica dos bivalves. “É conhecendo o passado que a gente pode prever o futuro e entender melhor o que poderá ocorrer. Essa descoberta nos proporciona conhecer melhor como os grupos animais se movimentaram, se desenvolveram evolutivamente nesse período de abertura do continente, um momento muito importante tanto para a fauna quanto para a Geologia. Tudo indica que o Brasil tenha abrigado o precursor de todos esses bivalves de água doce que existem na atualidade.” O especialista lembra que a pesquisa rea­cende um olhar para o Nordeste brasileiro, região onde pode ter ocorrido um importante processo evolutivo.

Luiz Simone classifica os achados no Rio São Francisco como uma rara descoberta, considerando que os fósseis são tipos de conchas alongadas que, apesar da acidez da água dos rios, foram encontrados conservados. “O Brasil está redescobrindo toda uma fauna de água doce fóssil, um lugar difícil de preservar, porque o ambiente é muito ácido, proporcionando a decomposição muito rápida dessas conchas. Isso torna esse achado ainda mais raro.”

Com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São ­Paulo (­Fafesp), Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Capes, e CNPq, a previsão é de que a pesquisa seja finalizada em 2027, quando da conclusão da tese de doutoramento de Baumann. O material encontrado foi incorporado à coleção de paleontologia do Museu de Ciências da Terra (MCTer), no Rio de Janeiro. •

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Segredos do Velho Chico’

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