Política

assine e leia

Se você quer paz…

O “tarifaço” sai barato, mas o governo prepara-se para uma longa batalha contra Trump

Se você quer paz…
Se você quer paz…
Apoie Siga-nos no

Deu no New York Times: “Ninguém está desafiando Trump como o presidente do Brasil”. Na véspera, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, havia comentado num canal de tevê, não sem razão, que “a imprensa americana defende o Brasil mais do que a brasileira” no caso da chantagem política e comercial de Donald Trump. O republicano deve ter ficado contrariado com as declarações do presidente Lula ao jornal nova-iorquino. Não demorou nem 24 horas para assinar o prometido decreto tarifário a sobretaxar a entrada de produtos brasileiros nos Estados Unidos e para autorizar o secretário do Tesouro, Scott Bessent, a anunciar sanções econômicas ao juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

O tarifaço veio menor do que a encomenda, daí ter corrido mais uma vez nas redes sociais a ideia de que “Trump sempre amarela”. Taxação de 40%, a se somar a outros 10% vigentes desde abril. E para valer a partir de 6 de agosto, não no dia 1º. Em torno de 45% da pauta exportadora brasileira ficou de fora da nova sobretaxa, na forma de uma lista de quase 700 exceções, segundo cálculos tanto da Apex, a Agência de Promoção de Exportações, quanto da Amcham, a Câmara de Comércio Brasil–Estados Unidos. Para essas mercadorias serão aplicados os 10% anunciados em abril.

O Brasil faz os últimos retoques no plano de apoio aos setores afetados

O governo preparou um plano de contingência para responder ao tarifaço, mas só vai botá-lo na rua daqui a alguns dias. Seus pilares são conhecidos nos bastidores. Socorro momentâneo via linhas de crédito a exportadores prejudicados, talvez na forma de um “orçamento de guerra”, ou seja, fora das amarras do “arcabouço fiscal”, como ocorreu após as enchentes no Rio Grande do Sul em 2024. E uso cirúrgico da Lei de Reciprocidade Econômica. Cirúrgico, pois o governo não quer causar inflação por meio do encarecimento geral de produtos made in USA. Os fortes candidatos a pagar o pato são conteúdo audiovisual, na mira de taxas, e patentes de remédios, que podem ser quebradas. Em relação à ofensiva sobre Moraes, a reação de Lula veio no próprio 30 de julho, data que o petista chamou de “dia sagrado da soberania” logo após assinar uma lei em defesa de animais e correr para reuniões sobre os EUA. “É inaceitável a interferência do governo norte-americano na Justiça brasileira”, declarou o presidente em um comunicado, após receber no Palácio do Planalto alguns magistrados do STF, entre eles Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Cristiano Zanin. O juiz vítima de sanções não estava em Brasília, mas em São Paulo, onde assistiu, no estádio do Corinthians, o time do coração bater o Palmeiras por 1 a 0. “O governo brasileiro se solidariza com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, alvo de sanções motivadas pela ação de políticos brasileiros que traem nossa pátria e nosso povo em defesa dos próprios interesses”, prosseguiu Lula na nota.

O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, estava em Washington no dia da formalização do tarifaço e das sanções a Moraes e reuniu-se com seu equivalente, Marco Rubio. Ao relatar a conversa ainda nos EUA, comentou: “Enfatizei que é inaceitável e descabida a ingerência na soberania nacional, no que diz respeito a decisões do Poder Judiciário do Brasil, inclusive a condução do processo judicial no qual é réu o ex-presidente Jair Bolsonaro”. Rubio concordou em manter aberto o canal de diálogo. A investida casada entre sanções a Moraes e às exportações fazem do momento atual, possivelmente, o pior em 201 anos de relações diplomáticas entre Brasil e EUA, na avaliação de fontes do Itamaraty. Pior até do que as tensões, nos anos 1970, entre os governos do ditador Ernesto ­Geisel e de Jimmy Carter, episódio tido como a maior crise bilateral até então vista.

A Embraer livrou-se dos 40% de tarifas extras. Moraes é o alvo preferencial. Eduardo Bolsonaro prossegue na conspiração contra o Brasil – Imagem: Redes Sociais/Embraer, Arquivo/TSE e Gage Skidmore

A Advocacia-Geral da União, órgão do governo, defenderá Moraes nos EUA e até em instâncias internacionais, se necessário. O magistrado já havia sido alvo do governo Trump. Ele e a família estão proibidos de pisar em solo norte-americano desde 18 de julho, dia em que a Polícia Federal colocou a tornozeleira eletrônica em Jair Bolsonaro por ordem justamente de Moraes. O capitão e o filho Eduardo, deputado em autoexílio nos EUA, conspiram contra o Brasil. Eis os “políticos brasileiros que traem nossa pátria e nosso povo em defesa dos próprios interesses”. O objetivo de pai e filho é, claro, salvar a pele do primeiro no julgamento da tentativa de golpe. Tanto o tarifaço de Trump quanto a sanção econômica a Moraes foram justificados como resposta à situação criminal de Bolsonaro.

Lula, afirma um auxiliar direto, está convencido de que a luta com Trump é de longo prazo, não se esgota no tarifaço de agora ou nas sanções a Moraes. A batalha só começou e vai piorar. Ainda terá desdobramentos uma investigação aberta pelos EUA sobre o Pix, o comércio de rua em São Paulo e o desmatamento ilegal da Amazônia. A Casa Branca também ameaça castigar nações que de alguma forma tem auxiliado a Rússia a contornar sanções decorrentes da Guerra da Ucrânia. A Índia, de governo direitista e amistoso com os EUA, será taxada em 25%. “Estamos levando aqui um recado ao Brasil: há outra crise pior que pode atingir o Brasil nos próximos 90 dias. Eles vão criar sanções automáticas para todos os países que negociam com a Rússia”, disse, em ­Washington, o senador mineiro Carlos Viana, integrante de uma comitiva do Senado que esteve nos EUA nos últimos dias.

“É inaceitável a interferência do governo norte-americano na Justiça brasileira”, reafirmou Lula

Lula acredita, segundo o auxiliar, que Trump tem a intenção de interferir na eleição presidencial de 2026. Interessaria ao republicano recolocar Bolsonaro no poder, a fim de afastar o Brasil da China e dos BRICS. No decreto tarifário, o presidente dos EUA escreveu que pode voltar atrás, caso o governo brasileiro “se alinhe suficientemente com os Estados Unidos em questões de segurança nacional, economia e política externa”. Não custa lembrar que o secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, disse em abril à emissora trumpista de tevê Fox News, a propósito do desejo da Casa Branca de dar as cartas na América do Sul: “Vamos retomar o nosso quintal”.

Steve Bannon, estrategista por trás da primeira eleição de Trump, tem um programa de rádio online no qual dá espaço à causa bolsonarista. Eduardo foi entrevistado duas vezes nas últimas semanas. Recorde-se: após um evento da extrema-direita nos EUA em 2021, Bannon classificou Lula de “o esquerdista mais perigoso do mundo”, após Eduardo ter feito um discurso sobre a eleição brasileira de 2022. Flávio Bolsonaro, senador, afirmou recentemente que, se o pai estiver nas urnas em 2026, acaba a crise com os EUA. Diante dos objetivos geopolíticos da Casa Branca, um colaborador diplomático de Lula aposta que as tensões bilaterais vão durar ao menos mais um ano e meio, ou seja, até passar a eleição. “Vai ser uma relação de conflito permanente com ­Washington”, diz, ao apontar ainda a imprevisibilidade do presidente dos EUA como complicador extra. Para ele, Trump quer que toda a América do Sul aja como o argentino Javier Milei e caia no seu colo. Dado esse contexto, beira o risível a tentativa da oposição, da mídia e até de governistas de levar Lula a cogitar um telefonema para o norte-americano. Não havia nenhuma chance de acontecer.

Fonte: Portal Comex Stat, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

Caso a eleição fosse hoje, o fator “Trump” jogaria contra o bolsonarismo e a favor de Lula. É o que se viu em uma pesquisa de meados de julho, antes da materialização do tarifaço. Segundo levantamento do Ipespe, 61% diziam ver Trump de forma negativa, e 53% que o apoio dele a um candidato a presidente do Brasil mais atrapalha do que ajuda. Além disso, 50% da população aprovava a reação do governo brasileiro, enquanto 46% desaprovavam. São números melhores do que a atual avaliação de Lula.

Antes da formalização do tarifaço, o governo enxergava um efeito colateral positivo para o ibope presidencial. Encarecer a venda de alimentos aos EUA significaria aumentar, em tese, a oferta dos mesmos produtos no Brasil. O preço nos supermercados poderia cair. A inflação da comida tem prejudicado a popularidade de Lula. “O Brasil é um país muito frágil na indústria, daí a dificuldade de retaliar. Sou cético com qualquer medida que vier a ter impacto inflacionário. O governo tem é que tentar maximizar o efeito deflacionário do tarifaço e os dividendos políticos”, afirma um técnico que participou dos debates internos para confeccionar o plano de contingência entregue a Lula. Plano que poderia contar, inclusive, com uma espécie de “pacote soberania” a ser aprovado no Congresso, como a taxação das big techs. Proteger as plataformas digitais da punição pelo Supremo é outro argumento invocado por Trump para atacar o Brasil.

“Vai ser uma relação de conflito permanente com Washington”, diz um colaborador do presidente

Carnes e café foram atingidos pela tarifa de 40% extra decretada por Trump e são exemplos de quais produtos poderiam chegar mais baratos à mesa dos brasileiros. A lista de exceções à sobretaxa contemplou, por outro lado, suco de laranja, do qual o País é o maior produtor mundial. Outras: petróleo, celulose e aviões, artigos de peso na pauta exportadora. No ano passado, o Brasil vendeu 40,4 bilhões de dólares aos EUA, sendo 5,8 bilhões em petróleo, 2,7 bilhões em aviões e 1,7 bilhão, em celulose. O caso “aviões” era particularmente delicado, por atingir uma joia nacional, a Embraer. O presidente da companhia, Francisco Gomes Neto, viajou aos EUA para conversar com autoridades governamentais em busca de alívio. O lobby contou ainda com clientes norte-americanos da empresa.

Para Haddad, tudo somado, o tarifaço concretizado significa “um ponto de partida mais favorável do que se imaginava”, embora ainda inclua “muita injustiça”. Ex-secretário de Comércio Exterior, Welber Barral diz que, por ter alcançado quase 60% da pauta exportadora, o tarifaço terá impacto nada desprezível em certos setores. “Muita empresa média e que tem nos Estados Unidos seu mercado número 1 será afetada”, afirma. Para ele, o Brasil ganhou uma semana para negociar, pois a sobretaxa só vigorará a partir do dia 6, mas não demonstra disposição para concessões. “Não vai ser fácil essa negociação, até porque o Brasil não é prioridade para os norte-americanos.”

O mercado dos EUA é o segundo mais importante para as exportações brasileiras, mas como estas são diversificadas, para lá foram apenas 12% em 2024. Um ex-colaborador dos governos Temer e Bolsonaro, o economista Fabio Kanczuk, diretor da consultoria ASA, estimava em só 0,4 ponto porcentual a perda de PIB neste ano, no caso de um tarifaço generalizado de 50%. A consequência relativamente pequena de uma briga comercial com os EUA é uma das explicações para a pouca disposição do governo Lula de fazer concessões à Casa Branca. Segundo um diplomata, a busca de novos mercados e de melhores relações com outras nações será uma forma de o presidente tentar driblar o “efeito Trump”. Ele lembra que, quando o petista assumiu pela primeira vez, em 2003, os EUA absorviam 25% das exportações nacionais. Ter diversificado mercados de lá para cá se revela uma decisão acertada. Em outubro, o presidente visitará a Malásia e a Indonésia. No início de 2026, a Índia. Além disso, o Brasil está no comando rotativo do Mercosul, o que o coloca à frente de eventuais negociações de acordos comerciais com outros blocos.

O café, bastante consumido nos EUA, não escapou, por ora, do tarifaço. O Brasil espera, porém, que o produto entre nas exceções – Imagem: Arquivo/CNA Senar

E no caso de sanções a autoridades brasileiras? O governo acredita que podem vir mais medidas, além daquelas impostas a Moraes. O juiz foi enquadrado em uma lei de 2012 concebida para os EUA punirem estrangeiros envolvidos, segundo os critérios bastante particulares de Washington, em violação de direitos humanos e corrupção. Usar a Lei Magnitsky contra o magistrado do STF é uma completa inversão da realidade. Só golpista confunde defesa da democracia com violação de direitos humanos. O clã Bolsonaro, aliás, sempre combateu tais direitos, por considerar uma proteção a bandidos. E até hoje saúda a ditadura inaugurada no golpe de 1964, que matou e torturou compatriotas. Para essa turma, a ditadura de 21 anos teria “salvado” a democracia no País. Trump comprou a alegação bolsonarista de que haveria perseguição ao capitão. Claro, ele próprio teve seu momento golpista, a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, duas semanas antes do fim de seu mandato anterior.

A lei aplicada contra Moraes é uma espécie de “pena de morte” financeira em território norte-americano, mas sem grandes efeitos no resto do planeta. Proíbe agentes do sistema financeiro de ter os alvos como clientes e bloqueia eventuais bens dos sancionados nos EUA. Quem descumprir a ordem pode ser castigado. Em um comunicado público, o Supremo solidarizou-se com o juiz. Destacou que as decisões têm sido confirmadas por colegas da Corte e que, no âmbito da investigação da tentativa de golpe bolsonarista contra a eleição de 2022, “foram encontrados indícios graves da prática dos referidos crimes, inclusive de um plano que previa o assassinato de autoridades públicas”. O autor do plano, general Mário Fernandes, ex-vice-secretário-geral da Presidência de Bolsonaro, confessou sua existência em recente depoimento ao STF. Era esperado que, na reabertura do tribunal na sexta-feira 1º, após o fechamento desta edição, Moraes se manifestasse publicamente sobre o tiro disparado nele pelo bolso-trumpismo. •

Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Se você quer paz…’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo